domingo, 6 de janeiro de 2013

Ivan Pessoa (Era Uma Vez Uma Cidade Bibliofóbica)


 Era uma vez uma cidade que não lia. Não que a leitura não fosse lá seu hábito, afinal os espaços reservados para tais descobertas eram poucos e, ainda que fossem poucos, agravavam-se as reformas, os trincos e o pior das doenças populares: a desfaçatez contagiosa dos políticos. Quem passasse pelos portais dessa cidade, sabiamente diria: está doente! Mas quem por lá residisse, contagiado pela cegueira letárgica dos políticos de lá, despreocupadamente diria: “bobagem, cidade como esta, jamais encontrarás”. O pior doente, como o cego, é aquele que não quer ver.

 Os egípcios tinham tanto apreço por bibliotecas que as chamavam farmácias da alma. Por Deus, será por isso que aquela cidade encontra-se momentaneamente adoecida, sem o direito legítimo de convalescença? O traço mais característico das civilizações é certamente o hábito da conservação da memória, o que franqueia às gerações subsequentes um referencial.

 O que efetiva o ser humano é a memória de seus ancestrais que lhe inculca uma maneira de ser com consequente compreensão de si e de seus semelhantes. Em um só tempo a memória faz o homem se descobrir por meio da consciência de si mesmo e descobrir a presença constante dos outros. Tal capacidade é tanto pessoal, quanto interpessoal. Como afirmara o biólogo francês Jean Rostand, para quem a civilização do homem, diferentemente da civilização das formigas e das traças não reside propriamente no homem, mas antes em suas bibliotecas, museus e códigos. A partir daí se pode pensar que, de fato, a cultura, juntamente com a memória, são os únicos elementos que nos põem a distância dos demais insetos da natureza. O bicho homem difere das formigas e das traças, por que registra os ensinamentos de seus pais e por inscrevê-los, posterga sua sobrevida para um tempo não muito determinado, para um porvir. A expectativa de um futuro insondável, de impérios e heróis que ainda virão, de pessoas e cidades que porventura possam acontecer, é justamente o elemento humano por excelência. Para que esta expectativa se faça sustentável através dos séculos, a memória precisa ser preservada e sua preservação fica a cargo das bibliotecas.

 Ao contrário de seus contemporâneos, Aristóteles teria sido o primeiro bibliófilo da história, e sob este princípio edificaria tanto a biblioteca de seu Liceu, quanto a civilização ocidental. Com efeito, Ptolomeu II Filadelfo, que adquiriria este irrepreensível acervo, no afã de lhe conservar, construiria o maior monumento da antiguidade: a biblioteca de Alexandria.

 Segundo Ptolomeu II a biblioteca serviria para reunir os livros de todos os povos da Terra, permitindo-lhes tanto, na época, quanto nos séculos vindouros, a compreensão do mundo antigo e sua especificidade. Como me compreender em um tempo e espaço determinado se sou incapaz de dimensionar a tradição pela qual sou uma consequência temporã? A lição dos livros é esta: conservar a tradição, para que as gerações futuras possam encetar o encontro consigo mesmas e com seus semelhantes. Uma geração que não lê é no mínimo uma geração perdida, certamente porque fica alijada da compreensão de si mesma e de seu povo. O que daí se depreende é: a história de um povo é a consequência daqueles que lhe conservarão. Inimaginável e igualmente bárbaro é pensar um adolescente que desconhece um luminar de sua terra, à maneira da criança que desconhece os pais. Troçar dos luminares e desconhecer os pais atesta um estado de grave incoerência, sobretudo se se pensar que tais condições são princípios elementares para as gerações vindouras.

 Que educação um pai iletrado dará para um filho que, tão carente quanto ele, está à mercê das circunstâncias? Que mundo está em construção, se o presente não sabe remeter-se ao passado? Aquela civilização do homem, pela qual Jean Rostand sobrepunha à civilização das formigas e traças, é decerto a exaltação do passado com seus feitos imemoriais. O que é a civilização grega senão a ira incontida de Aquiles e Agamenon na eterna releitura da Ilíada? Na Eneida de Virgílio, o anfitrião Enéas antevê a criação do império romano como desdobramento heróico do povo troiano e se jacta disso. Ainda hoje a remissão dos romanos a este fato, lhes põe como herdeiros de um povo intrépido. Como pensar, por exemplo, a questão judaica sem a leitura bíblica? É tal que o poeta alemão Heinrich Heine afirmaria categoricamente que a bíblia é a pátria dos judeus, tamanha é sua importância, enquanto documento identificador de uma tradição. À maneira de Heine, o filósofo Adorno diria algo igualmente relevante por considerar que para quem não tem pátria, o livro, bem como a escrita tornam-se necessariamente a sua morada. Ora, enquanto morada, o livro é o único artifício capaz de conservar a voz ancestral daqueles que cá não estarão, como se por testamento, protelasse e assegurasse a especificidade dos conselhos, orientações e discursos que precisam se fazer ouvir em um tempo a posteriori. Não sou eu quem digo, mas é George Santayana quem assim o faz: “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo .”

 Em um passado não muito diferente dos dias atuais, em que pese a violência e a barbárie pululando ostensivamente, o imperador Júlio César convocaria os serviços intelectuais de Públio Varrão, poeta romano, para organizar as bibliotecas públicas de então. Varrão o faria. Ironicamente, a história registraria uma condenação digna de reparação por parte de César que, se pondo a perseguir Pompeu, incendiaria a cidade de Alexandria e sua suntuosa biblioteca. O mesmo homem que ordena a construção de bibliotecas públicas incendeia criminosamente uma parte do maior legado da antiguidade. O certo é que a história humana apressa qualquer insinuação de decisiva hostilidade, afinal, como pensara Schiller em suas Cartas sobre a educação estética do homem: “Então de onde vem que ainda continuemos sendo bárbaros?” Pensemos bem: se com a convivência com os livros, os homens ainda são naturalmente hostis, de modo que um quê de civilização supõe um quê de barbárie, imagine a ausência de doutos ensinamentos, a intervenção de bons parágrafos? Quando Schiller bradava tais queixas, quanto ao bárbaro alemão civilizado, tais queixumes se faziam em face de um país com 80% de analfabetos, analfabetos que leriam o mundo determinando futuramente sua escritura. Aqueles trocentos analfabetos alemães forjariam os maiores monumentos da cultura europeia dos anos seguintes, ao contrário dos nossos, que duas vezes bárbaros, na educação e nos costumes, incapazes são de passar a vista nem que seja na orelha dos livros. Se um povo como o alemão concedeu ao Ocidente um celeiro de grandes intelectuais, artistas e pensadores, ainda que fosse um povo bárbaro, o que pensar daquela cidade, em específico, que tem uma tradição olvidada em função da desfaçatez contagiosa de seus políticos? Sem o usufruto da quiromancia, aquela arte de ler as mãos, sem qualquer futurologia, o certo é que os indícios não estão nada a favor, porquanto aquela cidade, carente de toda sorte de antídoto, há algum tempo fechou as portas de sua mais importante farmácia da alma, alegando uma reforma por tempo indeterminado. E quanto às obras, por tempo indeterminado o que serão? Já sei, servirão de abrigo às sociedades e aos impérios daquelas traças tão letradas, visto que se alimentam de livros e entre livros forjam suas civilizações. Como toda civilização tem um apelo eminentemente bárbaro, até os insetos nos remedam. Ou seria o contrário?

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Ed. 240. 29 de outubro de 2011.
Imagem ; http://osonetista.blogspot.com

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