(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)
Desta vez estou de verve; vou escrever um livro.
Se bem me lembro, já dei aos meus leitores um folhetim-romance, um folhetim-comédia, um folhetim em viagem, um folhetim-álbum.
Faltava-me porém dar um folhetim-livro, e por isso quero hoje realizar essa nova transformação do Proteu da imprensa.
De fato o folhetim já por si é um livro; é o livro da semana, livro de sete dias, impresso pelo tempo e encadernado pela crônica; é um dos volumes de uma obra intitulada o Ano de 1855.
Neste volume a cidade do Rio de Janeiro faz as vezes de papel de impressão, os habitantes da corte são os tipos, os dias formam as páginas e os acontecimentos servem de compositores.
Mas não é disto que se trata, e sim do projeto gigantesco que concebi de escrever hoje um livro-folhetim.
Há de ser um livro completo, precedido de um prólogo, dividido em capítulos, e escrito com toda a gravidade de um homem predestinado a visitar a posteridade envolvido em uma capa de couro e na companhia das traças, das teias de aranha e da poeira das estantes.
Preparem-se pois os meus leitores, limpem os vidros dos óculos, tomem a sua pitada de rapé, e... aí têm o livro.
por ora é apenas o título:
LIVRO DA SEMANA
ou
História circunstanciada do que se passou de mais importante
nesta
Cidade do Rio de Janeiro
desde
O dia 11 do corrente mês, em que subiu aos ares com geral admiração, o balão aerostático até o dia de hoje 18
compreendendo
todos os acontecimentos mais notáveis
da semana, não só a respeito de
teatros e divertimentos,
como em relação à política, às artes
e ciências
OBRA CURIOSÍSSIMA
em todos os sentidos
escrita
no ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo
de 1855
por
UMA TESTEMUNHA OCULAR
RIO DE JANEIRO
MDCCCLV
Tipografia do Diário do
Rio de Janeiro.
Ao título segue-se a dedicatória.
Há certas obras em que a dedicatória é um simples luxo; em outras porém, como nesta, é de rigor.
Uma dedicatória deve ser simples e verdadeira.
por exemplo:
AOS MEUS RESPEITÁVEIS LEITORES.
O. D. C.
Em sinal de consideração e preguiça de escrever o folhetim de hoje.
O AUTOR.
(Ora muito bem: quanto a título e dedicatória, estamos arranjados; passemos à terceira página, em que naturalmente deve vir o prólogo.
O prólogo é o bom dia de um escritor ao seu leitor, é o aperto de mão amigável de um sujeito que é apresentado a outro a quem não conhecia; é a cortesia do orador que cumprimenta o seu auditório antes de começar o discurso.
Vamos ver como nos saímos do prólogo: tenha o leitor a bondade de passar à outra página).
PRÓLOGO
Não é a ambição de glória que me faz dar hoje à luz este pequeno Livro da Semana, fruto de algumas horas de trabalho; é unicamente o desejo de tornar-me útil no meu país e de concorrer com um óbulo para a grande obra da nossa literatura pátria, que induziu-me a registrar os fatos importantes da semana que acabou ontem 1.
Se o público acolher bem este meu primeiro filho, talvez que animado pela sua benevolência me resolva a continuar na carreira encetada. Do contrário consolar-me-ei com a consciência de ter cumprido o meu dever.
Rio, 18 de novembro.
O AUTOR.
Depois do prólogo, o autor costuma fazer uma introdução, na qual apresenta o plano geral de sua obra, e prepara o espírito do leitor para seguir o desenvolvimento das idéias contidas na sua obra.
Passemos pois à
INTRODUÇÃO
Esta semana que acabou apresentou uma face curiosa pelo lado da insipidez.
Portanto o leitor não deve esperar uma descrição poética, nem mesmo essa variedade que encanta e deleita.
Omnis variatio delectat2.
Apenas procurarei fazer a narração fiel, não desses boatos sem fundamento que por aí correm, mas daquilo que eu próprio vi e ouvi3.
Começarei pelo começo.
Feita a introdução, passa-se ao primeiro capítulo, que é uma espécie de segunda introdução.
Alguns autores usam capítulos com sumários; outros apenas dão uma idéia geral daquilo sobre que vão tratar.
O meu autor é deste último sistema.
Eis o índice dos capítulos, que forma a 4ª página:
Cap. 1º - Em que o autor mostra por que feliz acaso lhe veio a idéia de escrever este livro.
Cap. 2º - Em que o autor, depois de refletir profundamente; resolve-se a começar pelo princípio e acabar pelo fim.
Cap. 3º - Que serve para mostrar como o domingo e a segunda-feira foram dois dias muito insípidos.
Cap. 4º - Como o autor foi ao teatro lírico terça-feira ouvir música, e voltou muito desgostoso por causa da chuva, que fez com que a casa estivesse inteiramente vazia.
Cap. 5º - No qual se contam duas viagens importantes que fez o autor esta semana, uma ao redor da baía no vapor Marques de Olinda, e outra ao redor de uma mesa de almoço ao vapor do champanha.
Cap. 6º - Em que o autor, não tendo mais nada que contar, começa a dar tratos à imaginação para descobrir alguma boa idéia e encher o resto das páginas que lhe faltam.
Cap. 7º - Como o autor, sempre à busca da sua idéia, começa a roer as unhas, indício certo de que a imaginação já vai se iluminando.
Cap. 8º - No qual o autor lembra-se finalmente que podia falar da Grua e da Charton; mas por fim resolve-se a fazer reticência.
Cap. 9º - Em que o autor trata de diversas coisas, e especialmente de encher papel.
Cap.10º - Que serve de conclusão à obra.
Agora, eu podia escrever todos estes capítulos: mas de que servia?
Todo o mundo sabe que um livro hoje em dia não é mais do que o título, o prólogo, a introdução, e o índice dos capítulos.
O leitor passa os olhos rapidamente, folheia o livro, e apenas de espaço a espaço encontra uma boa idéia, um trecho interessante.
O mais não vale a pena ler, porque reduz-se a uma meia dúzia de palavras, a uma caterva de citações.
Suponha portanto o leitor que, depois de ter lido o título, folheia o nosso livro, e lê unicamente os seguintes trechos:
Afonso Karr diz não sei onde que o elogio não tem merecimento, senão quando aquele que elogia podia dizer o contrário, e aquele que é elogiado podia consentir que se fizesse uma censura.
Eu, que não posso deixar de aceitar este preceito de mestre, que o acho muito justo e razoável, sempre que censuro é unicamente para dar valor ao elogio quando chegar a ocasião de faze-lo.
Quando censurar a Charton, é unicamente para mostrar que os elogios que lhe fizeram foram merecidos; quando fizer um reparo a respeito da Grua, é somente porque desejo ter ocasiões de lhe fazer todos os elogios.
Demais uma censura tem sua graça e seus chistes, enquanto que o elogio constante é de uma monotonia insuportável.
Quem poderia aturar um céu azul, um sol brilhante e um dia límpido e sereno, se não fosse a chuva e a temperatura de que lhe servem de contraste?
Quem admiraria as moças bonitas, se não fosse a quantidade de mulheres feias que existe neste mundo, e que se encontra a cada passo?
Quem apreciaria certas iguarias, se não fosse a pimenta, a mostarda, e o tempero de que são adubadas?
O mesmo sucede com o elogio; a censura é a pimenta que lhe dá o sainete, é a fome que o faz saboroso, é a tempestade que quando se desfaz deixa o céu mais límpido e sereno.
Acho esta teoria tão boa que estou resolvido, pelo bem de todos, a sacrificar-me e a não elogiar a mais ninguém.
De agora em diante arrogo-me o direito de crítico, e começo a fazer censuras por conta dos elogios que já fiz e dos que possa vir a fazer.
E portanto comecemos.
Censuro em primeiro lugar os admiradores das cantoras que não admitem a menor observação, por mais delicada que seja.
Parece que a força de olharem para o sol ficaram deslumbrados, e não vêem por conseguinte aquilo que salta aos olhos.
Censuro depois as próprias cantoras, porque julgam que é, exagerando-se que hão de realçar o seu merecimento.
Todos nós sabemos que isto nada vale; há bem pouco tempo que o céu mesmo nos deu uma lição mostrando-nos ao meio-dia uma estrela junto do sol.
O sol brilhava, mas a estrela derramava sua luz calma e serena.
Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao meu leitor por não ter melhor empregado o seu tempo.
Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao meu leitor por não ter melhor empregado o seu tempo.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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