segunda-feira, 30 de abril de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 65 a 67 (FINAL)

65 — ACABARAM-SE OS TEMPOS ROMÂNTICOS

Não SEI SE daqui para diante vocês vão achar algum interesse na minha vida. De 1894 em diante procurei ser um homem pacato, sensato, discreto no vestir e no falar, amigo do sossego. Nem sempre, confesso, pude manter essa linha. Mas consegui milagres. Porque, no fim de contas, eu era Tibicuera, índio tupinambá.

A verdade é que os tempos românticos tinham acabado. Não havia mais lugar para aquelas aventuras malucas do passado. Os corsários já não ousavam desembarcar nas nossas costas. Não havia questões sérias de limites. Os homens civilizaram-se. Estávamos prestes a entrar num novo século! 

Minha vida corria sem incidentes dignos de nota. Eu era um homem igual aos outros. Quanto às “aventuras do Brasil”, se eu fosse descrever o que se passou entre 1894 e 1937 corria dois riscos: o de fazer vocês bocejarem e o de amanhã me ver envolvido numa polêmica pelos jornais. Porque a História do Brasil da República para cá, meus amigos, só poderá ser contada com serenidade daqui a cinquenta anos no mínimo.

Olhem. Estamos na praça central duma grande cidade... Que vemos? Pouca coisa. Mas se subirmos para o alto de um monte que fique a alguma distância dessa cidade, havemos de enxergá-la em toda a sua extensão e formar sobre ela a nossa opinião, livre da influência dos seus habitantes. Isso não impede que, recorrendo ao meu caderno de notas, eu lhes dê em poucas palavras um apanhado do que se passou de 94 para cá.

66 — O DESFILE DOS PRESIDENTES

Folhando meu caderno de notas, que vejo? Uma fila de presidentes, vice-presidentes, ministros, fatos, revoluções, heróis, visionários, escritores... e nem sei quanta coisa mais!

Quando a gente se lembra de uma pessoa, imagina a cara dela e ao mesmo tempo algum acontecimento que se passou com essa pessoa. Por exemplo: Quando recordo um presidente que tivemos, ligo à sua imagem duas datas — principio e fim de seu governo — os fatos mais importantes desse período governamental e junto a tudo isso alguns acontecimentos da minha vida particular. Eis uma maneira resumida e pitoresca de gravar na memória a História recente do Brasil.

Atenção! Vai começar o desfile.

PRUDENTE DE MORAIS. Vejo na cabeça dele os números 1894 e 1898. 
Misturo estas imagens com as seguintes: Revoltosos no pátio da Escola Militar. Bandeira branca nas coxilhas do Rio Grande: fim da revolução. 

Nos sertões da Bahia, um homem barbudo com olhos de doido: Antônio Conselheiro, um visionário, que reuniu fanáticos, formou um núcleo formidável, Canudos, que resistiu a muitas expedições de forças do Exército. A Troia de Palha, que nunca se rendeu.

Vejo também o Ministro da Guerra, Mal. Carlos Machado de Bittencourt assassinado quando defendia o Presidente duma agressão.

CAMPOS SALES. Este nome me lembra os números 1898 e 1902. 
Nesses quatro anos aconteceram coisas importantes. Eu, Tibicuera, formei-me em Medicina e montei um consultório. Vi o Presidente da Argentina que visitou o Rio de Janeiro. Campos Sales foi à Argentina, retribuindo a visita. Entramos com festas no século XX. Ao entrar 1901, não sei por que, senti uma enorme saudade do pajé. Creio que derramei umas duas lágrimas na grande madrugada.

RODRIGUES ALVES. Duas datas: 1902 a 1906. 
Em 1902 conheci um dos maiores romancistas da língua portuguesa: Machado de Assis. Era um homem calado acanhado, tímido. Seus romances fariam figura bonita em qualquer literatura do mundo. Nesse mesmo ano conheci dois poetas notáveis: Raimundo Correia e Olavo Bilac. Mas... que é que me lembra mais o nome de Rodrigues Alves?

Ah! O Brasil ganhou mais um naco de terra: o Território do Acre pela indômita bravura de um filho do Rio Grande: José Plácido de Castro. Deixei crescer uma pera Escrevi um livro: “A Vida na Taba”. A crítica lhe foi desfavorável. Disseram: “O autor desconhece o assunto.” Sorri. No fim de contas eu podia estar mesmo esquecido...

Travei relações com outro romancista notável — Aluísio de Azevedo. Outros acontecimentos: Desastre do navio “Aquidabã”. Remodelação da cidade do Rio de Janeiro.

AFONSO PENA. Se vocês gritarem este nome, eu imediatamente vejo um homenzinho de óculos, bigode e pera brancos. E vejo também desenharem-se no ar as datas de 1906 e 1910.

Em 1910 conheci três grandes personalidades da Literatura: Raul Pompeia, autor de “Ateneu”; Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões” e Graça Aranha, autor de “Canaã”. Todos grandes, tão grandes que me encheram o ano. Li esses três livros e fiquei impressionadíssimo. (Será que vocês não querem sentir as mesmas emoções que o amigo Tibicuera sentiu? Os livros estão aí...)

No governo de Afonso Pena foi decretado o serviço militar obrigatório. Um inimigo me denunciou dizendo que eu estava em idade de fazer o serviço militar. Que tolo! Eu tinha mais de quatrocentos anos. Afonso Pena morre antes de terminar o período governamental. Nilo Peçanha, vice-presidente, fica no poder.

Há poucos dias li este nome: HERMES DA FONSECA. Lembrei-me logo destas datas 1910-1914. 
E pensando nestes números, rememorei os seguintes fatos:
Fanáticos na zona do Contestado. Revolta dos marinheiros. Estado de sítio. Intervenção no Estado do Ceará. O meu casamento.

A publicação do meu livro: “O Quilombo dos Palmares”. (A crítica disse: “Fantasias de poeta.” Muito obrigado!)

Que foi que se passou entre 1914 e 1918? WENCESLAU BRÁS, presidente. 
Meti-me na política. Lutas tremendas. Guerra Europeia Os alemães torpedeiam alguns navios mercantes brasileiros. Revejo Ruy Barbosa, grande jurista, imenso orador, o homem que representou brilhantemente o Brasil na conferência de Haia. (Naquele tempo era moda dizer: “Inteligente como Ruy Barbosa.” “Meu filho vai ser um segundo Ruy.”)

Fiz amizade com um romancista delicioso: Lima Barreto. O Brasil declara guerra à Alemanha. Minha mulher se inquieta, temendo que eu embarque para a Europa. Tranquilizo-a. Um fato sensacional, assassinam pelas costas o Senador Pinheiro Machado, vulto proeminente da política.

RODRIGUES ALVES de novo no governo em 1918! 
Mas não chega a assumir. Vem para o Catete o Vice-Presidente Delfim Moreira. Houve novas eleições. Faleceu. E Epitácio Pessoa, que voltava da Europa onde representara o Brasil na Conferência de Versalhes, foi eleito presidente.

Por esse tempo conheci Coelho Neto, escritor brilhante, e Santos Dumont, o pioneiro da navegação aérea: dois ilustres brasileiros. Vi o Rei Alberto da Bélgica na Avenida Rio Branco. Festas fantásticas em honra do soberano. Conto minha vida a minha mulher. Ela ouve em silêncio minhas aventuras, desde a taba até o momento em que nos achávamos. Quando termino a narrativa, ela diz simplesmente: “Mentiroso. Que exemplo para o teu filho!”

Ah! eu me esquecia de contar que tínhamos um filho. Quis pôr-lhe o nome de Tibicuera, para não quebrar a cadeia, Minha senhora protestou. Não queria. Preferia Paulo. Resignei-me. Eu não era mais o guerreiro dos velhos tempos...

Mas... voltemos ao governo de Epitácio Pessoa. Revoltas militares. Prisão do Mal. Hermes. Em 1922, como fazia cem anos que D. Pedro I soltara o brado de independência, houve festejos monumentais. Numa solenidade pública tomei a palavra. Comecei: “Ninguém mais autorizado que eu para falar nesta data, pois, como oficial dos dragões do Império, vi com estes olhos D. Pedro erguer a espada e...” Fui interrompido por uma vaia ensurdecedora. Recebi na cara ovos, repolhos, pedradas e quase fui linchado. 

Em compensação nesse dia conheci um grande poeta e prosador: Ronald de Carvalho.

Foi no governo de ARTHUR BERNARDES— 1922 a 1926 — que cheguei ao mais alto grau de prosperidade financeira. Mudei-me para uma confortável casa. Meu filho fazia-se homem. Estava um belo rapagão. Vi-o um dia de maiô na praia. Bronzeado como um bugre. Tive saudade de mim mesmo. Oh! Eu o amo muito. Conto-lhe histórias, procuro estabelecer entre nós dois a intimidade mágica, para continuar a cadeia, para vencer o tempo e a morte. Qual! O rapaz tem outras ideias, faz troça de mim, diz que estou envelhecendo, ficando caduco.

No governo de Bernardes houve uma revolução no Rio Grande do Sul. A eterna história dos dois partidos rivais. Reforma da Constituição. Comprei um rádio. Meu rapaz me obrigou a adquirir um baratinho.

Veio o governo de WASHINGTON LUÍS: 1926 a 1930.
O presidente, prestes a terminar o seu mandato, indica o homem que deve substituí-lo. Com isso não concordam muitos Estados que formam a Aliança Liberal e fazem por todo o País uma intensa campanha eleitoral. Mas para que estar resumindo, repetindo fatos que vocês todos conhecem, pois aconteceram ontem?

O nome de Washington Luís me faz lembrar aquela avalancha de todos os pontos do País rumo ao centro. A revolução de outubro. Citar nomes? Mas vocês viram. Se não viram, peçam aos mais velhos que lhes contem. É muito cedo para escrever a História destes últimos anos — repito.

No momento em que resolvo pingar um ponto final às minhas aventuras, quem governa o Brasil é Getúlio Vargas. Mudei-me em 1930 para Copacabana. Para o apartamento do arranha-céu onde estou agora escrevendo esta história. Esta história que não sei se saiu boa ou má, agradável ou desagradável. Esta história que durou mais de 400 anos e cento e poucas páginas. 
FIM

67 — ILUSÃO

Deixo por um instante a minha máquina-portátil em que bati todo este livro. Levanto-me. Vou até a janela. Meus olhos descansam no verde bonito do mar — do velho mar onde vi as caravelas de Cabral. Volto ao passado em pensamento. E de repente sinto um sobressalto. É que vejo lá em baixo à beira d’água um vulto familiar e querido. Meu coração bate com mais força... Não pode haver engano. É ele, sim, é Anchieta. Está encurvado, escrevendo alguma coisa na areia. Talvez um novo poema à Virgem. Bem como naquele dia em Iperoig, enquanto os tamoios rugiam e faziam planos de vingança. O mar vem lamber os pés do apóstolo. Ele está indiferente aos banhistas, aos guarda-sóis de gomos coloridos. Fico por um instante deslumbrado. Procuro vencer o espaço que me imobiliza. Faço meia volta. Precipito-me para fora de meu apartamento. Impaciente, não espero o ele​vador. Lanço-me escadas abaixo. De novo me sinto ágil como o índio que corria na taba. Vou apertar a mão de meu amigo Anchieta! Vou pedir-lhe notícias de Nóbrega e dos outros. Vou pedir-lhes que voltem, pois ainda há trabalho, muito trabalho a fazer. Ainda há alguns indígenas a catequizar.

Sim, apesar dos arranha-céus, dos aviões, do rádio. Desço a escada de três em três degraus. Chego finalmente ao térreo. Atravesso o saguão como uma frecha. Saio para o sol. Corto a rua. Avanço, pela areia. Correndo sempre. Enxugo o suor. E me encontro frente a frente com um cidadão vestido de preto que risca pacientemente na areia, com a ponta de seu guarda-sol, um nome qualquer. Ele me olha, espantado. Gaguejo uma desculpa:

— Perdão... Pensei que fosse Anchieta.

Ele não compreende. Alguns banhistas que estão por ali riem da minha atrapalhação. Volto para o meu apartamento, decepcionado e infeliz.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 


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