domingo, 1 de abril de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 33 a 36

33 — VI UM NEGRO REFESTELADO...

Ontem vi um negro refestelado dentro dum automóvel. Estava bem vestido e fumava charuto. Contaram-me que é formado em Medicina. Fiquei fazendo reflexão otimista. Enfim neste bom Brasil velho não há ódios de raça e é possível a um homem de cor conseguir posição na sociedade e na política. Os negros afinal de contas são criaturas humanas como os brancos, os amarelos e os vermelhos. E eu até acho que se qualquer um de nós fosse morar na África, permanecendo todo o dia exposto àquele sol, sem qualquer defesa, no fim de alguns anos ficaria pretinho da silva.

Esta conversa vem a propósito da escravatura que por tantos anos existiu no Brasil e em outros países. E a escravatura se relaciona com a grande aventura que há pouco prometi narrar. Logo que tomaram conta do Brasil, os portugueses verificaram que não podiam contar com o índio para os trabalhos da lavoura. O indígena era andejo, não se sujeitava a ficar de sol a sol lavrando a terra. (Eu tenho sangue de índio nas veias, gosto do sol, do ar livre e das viagens; sinto-me mal dentro de quatro paredes.) Mas, como eu dizia, o índio não se sujeitava ao trabalho da lavoura. Era preciso resolver o problema. Então os portugueses pensaram em trazer negros da África e vendê-los no Brasil como escravos, experimentando-os como lavradores.

Entre as próprias tribos africanas se cultivava a escravatura. Os traficantes portugueses compravam escravos em África ou simplesmente os caçavam vivos sem pagar nada a ninguém. Os principais viveiros desse gado humano eram Moçambique, Angola, Guiné e Costa da Mina. Os pobres-diabos eram marcados a ferro em brasa, bem como se faz nas fazendas com cavalos, bois, vacas, etc..., e depois metidos nos sujos e escuros porões dos navios, onde ficavam amontoados numa mistura pavorosa. Mal alimentados, judiados, sem ar e sem luz, essa pobre carga humana, sacudida quase sempre por grandes tempestades, chegava após longos dias de sofrimento às costas do Brasil, onde era vendida. Iam os negros para as lavouras. Eram surrados quando cometiam qualquer falta. Havia senhores de escravos que surravam só pelo prazer de ver o sofrimento dos africanos. Outros, entretanto, tinham bom coração e chegavam a libertar seus escravos, dando-lhes uma vida mais ou menos decente. As vezes, cansados de sofrer, cheios de saudades da África, os pretos fugiam, ganhavam o mato. O fim dos fugitivos quase sempre era triste. Ou caíam nas garras das feras ou eram de novo capturados, sofrendo castigos cruéis.
34 - TIBICUERA ESCRAVO!

Aproveitando talvez a confusão das últimas guerras contra os holandeses, os negros fugiam e se iam reunindo em aldeias fortificadas chamadas quilombos, Havia desde o Rio São Francisco até os sertões de Pernambuco vários quilombos. Pouco a pouco os pretos se armavam, organizavam seu exército, reforçavam suas fortificações e se dispunham a não voltar para a canga: preferiam morrer lutando com as armas na mão.

Bom. Lá pelo ano de 1677, se não me falha a memória, eu andava caminhando escoteiro pelo mato, contente com aquela vida despreocupada de aventura, quando um capitão de mato cujo nome não guardei, me prendeu. Andava ele à procura de negros fugidos e trazia consigo dez homens armados. Amarraram-me as mãos fortemente às costas. Protestei, frenético, contra aquela prisão. Eu não era um escravo, não, senhores! Era um índio livre como o vento. Tinha serviços prestados ao País.

Como resposta, o capitão de mato me chicoteou o rosto. Quase estourei de ódio. Não adiantava gritar ou espernear. Segui em silêncio, com o rosto ardendo. Lembrei-me de Anchieta e duma bela história que ele me contou uma noite em Piratininga. Cristo mandava oferecer a face esquerda a quem nos tivesse batido na direita... Eu era ainda muito bronco, selvagem e fogoso para compreender o espírito da lição.

Chegamos a um engenho. Mandaram-me para a lavoura. Desde o nascer do sol até o piscar das primeiras estrelas eu ficava trabalhando num canavial. Os outros trabalhadores eram negros. Passavam o dia cantando cantigas tristes nascidas nas terras misteriosas da África. Aprendi muitas delas. Fiz inúmeras amizades. Havia um negro retinto, muito lustroso e de músculos fortes. Se ele tivesse nascido neste nosso século XX seria na certa um campeão de catch-as-catch-can, esse esporte pavoroso de pavorosa brutalidade que se justificaria no tempo do homem das cavernas mas que está fora de lugar na época do rádio e da televisão. Pois esse preto, que trabalhava quase sempre a meu lado, tinha o apelido de Rapadura. Era uma alma boa. Sabia lindas histórias. Uma noite, no leito, Rapadura me cochichou no ouvido:

— Tibicuera, precisamos fugir.

Arregalei os olhos.

— Fugir para onde?

— Para o quilombo dos Palmares. Lá somos livres. Zumbi é grande e valente.
35 — A FUGA

Combinamos o plano de fuga. Numa noite sem lua prendemos fogo nas palhas de um galpão e demos o alarme. Estávamos presos ao chão por pesadas correntes. O feitor apareceu e mandou que nos libertassem, a fim de que ajudássemos os empregados brancos a apagar o fogo que ameaçava destruir também a casa-grande.

O galpão era uma enorme fogueira, cujas línguas cor de fogo (naturalmente...) subiam para o céu, como se quisessem também incendiá-lo. Havia uma confusão tremenda. Mulheres saindo de casa aos gritos. O feitor berrando ordens. Os negros dum lado para outro, carregando baldes d’água.

Parece que só de madrugada é que conseguiram dominar o fogo. Quando tudo se acalmou de novo, fizeram a chamada dos escravos. Deram então pela falta de Tibicuera e Rapadura. Àquela hora nós já estávamos longe. Caminhamos, caminhamos, caminhamos... Passamos por mil perigos e por mil sustos. Eu estava resolvido a não tornar a cair vivo nas mãos daquela gente do engenho.

Já estávamos principiando a nos entregar ao desânimo, quando avistamos uma patrulha. Nossos corações bateram apressadamente. Sentimos um alívio quando vimos que a patrulha era formada de pretos. Fizemos sinais de paz. Eles se aproximaram de nós. Era gente dos Palmares. Poucas horas depois estávamos junto de Zumbi, o grande chefe, fazendo nosso juramento de fidelidade.

Se Rapadura era um homem agigantado, o Zumbi era um gigante completo. Tinha uma voz profunda, um ar autoritário. Senti-me pequeno perto dele.
36 — OS PALMARES

O quilombo dos Palmares era formado por vários núcleos. Passei entre os pretos daqueles aldeamentos alguns anos bem felizes. Havia ali muita ordem e muita paz. Eu gostava de ver as danças, as cantigas, as festas dos quilombolas. Eles se enfarpelavam da maneira mais curiosa, pintavam-se de jeito muito engraçado, de sorte que era um espetáculo divertido vê-los em dia de festa.

Às vezes, certas noites, eu ficava de papo para o ar, olhando para as estrelas, pensando na vida e ouvindo a cantiga arrastada, preguiçosa e tristonha dos filhos da África. Quando eles paravam, ficava só o cochicho do vento que contava segredos de outros mundos às palmeiras.

Quantos anos fiquei nos Palmares? Não me lembro com certeza. Só sei que quando eu começava a ficar nervoso por estar parado tanto tempo no mesmo lugar, lá surgia um exército de brancos para nos atacar. Travavam-se combates tremendos. Nós estávamos fortes e éramos ao todo trinta mil homens e mulheres unidos para a vida e para a morte. O governo achava que a existência dos quilombos constituía um perigo para a nação. Atirou contra nós várias expedições. Desanimados de nos vencerem pelas armas, mandaram os brancos um emissário com propostas de paz. Chegou-se a fazer um tratado. Ora, hoje neste mundo civilizado (vejam a Europa) não se respeitam os tratados. É natural que o nosso tratado de 1678 não durasse muito. Em breve estava de novo acesa a guerra. Nova expedição para nos combater. Ainda dessa vez a vitória foi dos negros.

Percebi que o Zumbi andava inquieto, apesar das vitórias. Uma noite vi-o passar pensativo, olhar o céu e meter-se na sua choça.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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