quarta-feira, 25 de abril de 2018

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) I

BALADA DA NEVE

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine

“A Vicente Arnoso”

Batem leve, levemente
Como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim...

É talvez a ventania;
Mas há pouco, há pouquinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...

Quem bate assim levemente
Com tão estranha leveza
Que mal se ouve, mal se sente?...
Não é chuva, nem é gente,
Nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu
Branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e quando passa
Os passos imprime e traça
Na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
Da pobre gente que avança
E noto, por entre os mais,
Os traços miniaturais
Duns pezinhos de criança...

E descalços, doloridos...
A neve deixa inda vê-los
Primeiro bem definidos,
-Depois em sulcos compridos,
Porque não podia ergue-los!...

Que quem já é pecador
Sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
Porque lhes dás tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza
Uma funda turvação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza...
– E cai no meu coração.

TOADA PARA AS MÃES ACALENTAREM OS FILHOS

“À Bertha Cayolla Gil Vianna”, minha sobrinha

Oh Desgraça! vai-te embora,
Que esta linda criancinha
Andou no meu ventre e agora
Trago-a nos braços. É minha!...

Do berço, segue-me os passos;
Onde eu vou, seus olhos vão...
E quando a aperto nos braços
-Abraço o meu coração.

Quando o seu choro receio,
Embalo-a, faço que aceite
A alegria do meu seio
Na brancura do meu leite...

E quando assim não descansa,
Que tristezas me consomem!
– Mas antes chore em criança
Que depois, quando for homem...

Se ao da-lo ao mundo sofri
Tormentos, ânsias mortais,
Desgraça, vai-te d'aqui,
O que pretendes tu mais?!

Bate as asas, mas ao voares,
Não me apagues esta estrela.
Se alguém d'aqui precisares,
– Aqui me tens, em vez dela!

Tocam ás ave-marias.
Foi-se o sol. Não vem a lua.
Luzinha que me alumias,
Que sorte será a tua?...

Riquezas tenhas tão grandes,
E tal bondade também,
Que ao redor d'onde tu andes
Não fique pobre ninguém.

Que a todos chegue a ventura:
Toda a boca tenha pão,
Toda a nudez cobertura,
Toda a dor, consolação...

Mas se o ouro é mau caminho,
– Antes tu venhas a ser
O pobre mais pobrezinho
De quantos pobres houver.

Iremos por esses montes
Altos e azuis, como os céus...
Que onde há frutos e onde há fontes,
– Está a mesa de Deus!

E, quando a neve cair
E as seivas adormecerem,
Iremos então pedir...
(Aceitar o que nos derem!)

Andaremos á mercê
Dos gênios bons, e dos falsos,
Léguas e léguas a pé,
Rotinhos, magros, descalços...

E onde houver urzes e tojos*,
Pedras que rasgam a pele,
Porei o corpo de rojos**
– Passarás por cima dele!

Dorme, dorme, meu menino,
Foi-se o sol. Nasceu a lua.
Qual será o teu destino?
Que sorte será a tua?...

Se um crime tens de fazer,
Antes fique vago um trono,
Antes um palácio a arder,
– Do que uma enxada sem dono...

Se, porém, no teu destino,
Há tão cruentos sinais,
Dorme, dorme, meu menino,
– Não tornes a acordar mais!
______________________________
NOTA:
* Urzes e Tojos = tipos de arbustos
** Rojos = de rastos
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O PASSEIO DE SANTO ANTÔNIO
“A Columbano”

     La fleur des traditions nationales est flétrie. Mais libre a tous
     de puiser, dans l'herbier cosmopolite des legendes, les admirables
     pretextes à fiction qu'il recèle.
    (Litterature à Tout á L'Heure.)

Saíra Santo Antônio do convento,
A dar o seu passeio acostumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando...

E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo...

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica d'água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.

De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,*
Ele trazia... o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O menino, porém, ouviu e disse:
– Oh Frei Antônio, o que foi aquilo?...

O santo, erguendo a manga de burel**
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
– Não sei que fosse. Eu cá não ouvi nada...

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou com timbres d'ouro no caminho.
– Ouviste, Frei Antônio? Ouviste agora?
– Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho...

– Tu não estás com a cabeça boa...
Um passarinho a cantar assim!...
E o pobre Santo Antônio de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
– Se o Menino Jesus pergunta mais,
...Queixo-me á sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: Jesus,
São horas... -E abalaram pro convento.
________________
Nota:
* Cantarinha: espécie de cântaro bastante bojudo e com boca de grande diâmetro.
** Burel: tecido grosseiro de lã, geralmente pardo, marrom ou preto, usado na vestimenta de alguns religiosos.

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. Lisboa: A Lanterna, 1909

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