terça-feira, 10 de abril de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 45 a 48

45 — “DIGA AO POVO QUE FICO.”

D. João vi voltou para Portugal com sua Corte. Estávamos em 1821. D. Pedro ficou como Príncipe Regente do Brasil. Estava assim com o ar de quem tinha nas mãos uma bomba com o pavio aceso. Olhava para o lados, aflito, procurando um lugar para onde jogar a bomba. A situação era difícil. O povo estava revoltado e exigia umas tantas coisas. Havia ainda as forças portuguesas que puxavam naturalmente para o lado de Portugal.

D. Pedro andava sobre brasas. Eu via. Eu sentia. Suas noites eram de insônia. Tinham já acabado os dias despreocupados de boêmia. Agora ele era regente dum país imenso. Imenso e desorganizado. Era preciso levar a vida a sério. E o príncipe tinha apenas 23 anos...

Eu andava satisfeito com o mundo e comigo mesmo. D. Pedro me fizera oficial do regimento de dragões. Tibicuera vivia muito orgulhoso de seus alamares, de seus botões dourados, de seu capote e de sua espada. Portugal começou a inticar com o Brasil. Inticar é um termo popular que deve ficar no nosso dicionário, pois é muito expressivo. Mandou fechar os tribunais e as repartições do Rio. Tomou outras medidas desagradáveis para os brasileiros Formara-se aqui o Partido da Independência. Era composto de um grupo de patriotas, homens inteligentes e de posição.

Bem na hora mais crítica vem de Portugal uma ordem: D. Pedro deve fazer uma viagem pela Europa. Balbúrdia no Rio. “O príncipe não vai!” — berrava o povo. “O príncipe vai, sim, senhores!” retrucavam as forças portuguesas.

Eu me lembro de um certo dia que ficou na História. D. Pedro andava de um lado para outro no salão do Palácio, com as mãos às costas, o passo duro, a testa franzida. Não esqueci as palavras do pai que, ao despedir-se, lhe dissera que previa a separação do Brasil de Portugal e que ele, Pedro, não devia deixar a Coroa cair nas mãos de aventureiros. Chegou ao paço o representante do Partido da Independência. Chamava-se José Clemente Pereira. O momento era solene. Vinha ele pedir ao príncipe que não se retirasse do Brasil. Depois que ele falou, fez-se um silêncio difícil. Mas o príncipe se perfilou. Seus olhos cintilaram. E ele disse, firme:

— Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico.

E ficou mesmo. Ficou no Brasil. Ficou na História. E. depois que Clemente Pereira foi embora, ficou também a olhar perdidamente para o bico das botas polidas...

46 — FAREJO GUERRA...

Eu sentia cheiro de guerra no ar. A coisa não podia ficar assim. As tropas saíram dos quartéis, tomaram o Morro do Castelo e lá de cima intimaram o príncipe a obedecer às ordens de Portugal. Aquele dia foi para mim de agitação. Andei em cima de meu cavalo malhado de um lado para outro, servindo de ligação entre vários oficiais brasileiros. Dentro em pouco as forças nacionais que amparavam o príncipe se achavam prontas para dar combate às tropas portuguesas.

Eu estava com tanta saudade do cheiro da pólvora e do tinir da arma branca, que fiquei até triste quando nos veio a notícia de que os soldados portugueses, negando combate, iam embarcar para a Europa. O Rio estava em festa. Falava-se abertamente na independência. Eu me metia pelo meio do povo, orgulhoso do meu fardamento de dragão.

Recebemos comunicação de que em Minas, como em outras províncias, havia gente disposta a brigar. O príncipe em pessoa foi até lá, conseguindo acalmar os ânimos. Deram-lhe no Rio um título: Defensor Perpétuo do Brasil. Entusiasmado, D. Pedro resolveu convocar uma Constituinte. Chegou a pensar na nossa esquadra, dando o comando dela ao Almirante Lorde Cochrane. E foi também ao ponto de assinar uma proclamação em que convidava os brasileiros a que se unissem a fim de conseguirem sua independência.

A separação do Brasil de Portugal estava por um fio. E o Príncipe cortou esse fio com uma frase.
47 — MAL SABIA O RIACHO...

Quando fiquei sabendo que devia acompanhar o príncipe a São Paulo, numa visita de cortesia, dei pulos. Eu ia exibir naquela cidade os meus botões dourados, as minhas botas que eram um espelho, o meu peito musculoso, apertado no dólmã justo. Fomos recebidos com aclamações. Isto é: D. Pedro é que foi recebido com festas. Mas as flores e as aclamações foram tantas, que sobraram para todos nós.

Mas céu sem nuvens não dura muito — assim me dizia a experiência. Quando voltávamos de Santos, chegou-nos um comunicado do Rio: Portugal por novos decretos queria nos reduzir à condição de colônia. Os mensageiros que nos traziam a notícia nos encontraram às margens dum riacho sem importância. Era um fio d’água humilde. Tinha um nome inexpressivo: Ipiranga. Corria calmo ao sol, alheio às lutas e às paixões dos homens. Quis a sorte que fosse aquele o ponto de encontro...

D Pedro leu o comunicado. Estava montado no seu belo cavalo, que batia inquieto com as patas no chão. Primeiro o príncipe ficou muito pálido e depois seu rosto se coloriu dum vermelhão forte. Eu o contemplava, aflito. Tudo se passou rápido. De repente D. Pedro arrancou da espada e gritou: “Independência ou morte!” No primeiro momento ninguém respondeu, pois a surpresa deixava todos aturdidos. Houve alguns segundos de silêncio. Depois os outros compreenderam e romperam num viva entusiasmado.

Mais sereno, já com a espada na bainha, D. Pedro disse que as cortes de Lisboa queriam mesmo nos escravizar e que convinha declarar já a nossa independência. Terminou com estas palavras: “Estamos definitivamente separados de Portugal. De ora em diante traremos um outro laço de fitas verdes e amarelas, que serão as cores do Brasil.”

O riacho continuava a correr ao sol, sem qualquer entusiasmo. Mas, mesmo sem o saber, já estava célebre. Ipiranga! Um nome que dali por diante seria repetido como um símbolo.

Chegamos ao Rio todos cheios de laços verdes e amarelos. No paço pude ver o sorriso satisfeito e sereno de um homem que desempenhou papel importante na nossa independência. Era o Ministro José Bonifácio de Andrada e Silva. Tinha uma cabeça privilegiada. Depois de Anchieta, foi o primeiro homem que me fez duvidar da força do músculo para me fazer pensar na força do miolo.

Havia outras figuras tão importantes como a de Andrada no movimento libertador. Joaquim Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira, por exemplo. E outros, outros...

No dia em que vi Andrada com o sorriso da vitória, resolvi deixar de ser o Tibicuera valente das guerras para tratar de estudar um pouco. Em suma, queria trocar a espada pelo livro. Quando D. Pedro me disse:

— Tibicuera, pede o que queres...

...respondi:

— Um professor.

O príncipe ficou surpreendido. Eu também...
48 — EU E OS LIVROS

Deram-me um professor. Era um sujeito calvo e calado, feio e tristonho. Solteirão, seu quarto era pobre e ficava numa rua tranquila Ele me abriu as portas de um mundo maravilhoso: O mundo dos livros. Aprendi Francês, Latim, um pouco de Grego, Geografia, História, Gramática Portuguesa e outras matérias. Quando chegamos à Botânica e à Zoologia, tive discussões terríveis com o meu bom professor. Ele dizia o nome científico das plantas e dos bichos; eu lhes dava o nome indígena. O professor conhecia os bichos porque os tinha visto desenhados em livros ou empalhados e catalogadinhos nos museus. Quanto a mim eu os conhecia ao vivo ou, melhor, pessoalmente.

Fiquei tão apaixonado pelos livros, que me esqueci das guerras e das aventuras. Deixei os dragões. O Imperador me deu bom emprego numa repartição pública.

A literatura me absorveu durante muitos anos. Comecei a ler os livros dos escritores brasileiros. Gostei muito dum certo Sr. Gregório de Matos, que nasceu na Bahia em 1623. Era formado em Direito. Contam que foi um sujeito patusco, alegre e atrevido. Fez gostosos versos satíricos e também poesias líricas. Achei insuportável o Sr. Bento Teixeira Pinto, que é considerado o primeiro literato do Brasil. Mas primeiro — está claro — por ordem cronológica. Escreveu um livro de nome engraçado: Prosopopeia

Outros poetas que li: Cláudio Manuel da Costa, José Basílio da Gama, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga... Este quarteto, como vocês devem estar lembrados, tomou parte na Inconfidência Mineira. Conheci outros poetas: Frei Manuel de Santa Rita Itaparica, Frei Santa Rita Durão, Manuel Inácio da Silva Alvarenga...

Meti-me História a dentro e li Frei Vicente do Salvador, que escreveu uma História do Brasil. Quando contei a meu professor que tinha tomado parte na guerra contra os holandeses, ele me olhou com o rabo dos olhos, franziu a testa e acabou dizendo.

— Deixe-se de gracejos, rapaz.

A guerra holandesa durara de 1624 a 1654. Estávamos em 1823. 0 professor fez as contas de cabeça e achou que eu estava me fazendo de engraçado.

Conheci também as obras de Rocha Pita, de Baltasar da Silva Lisboa, de José Feliciano Pinheiro e de outros historiadores menores. Muito me encheram de entusiasmo os discursos dos dois Andradas: Antônio Carlos e Martim Francisco. Outro nome de que não me esquecerei é o de um jornalista que era padre e político. Guardo-o na memória por causa de seu nome — Frei Joaquim do Amor Divino Caneca — e porque ele tomou parte na revolução pernambucana de 1824.

Mas a minha grande admiração mesmo era por Frei Francisco de Mont’Alverne. Foi Anchieta que me converteu ao Deus Único. Foi Mont’Alverne que com seus formidáveis sermões me fortaleceu nessa fé. Outro cidadão bom cem por cento era José Bonifácio de Andrada e Silva, político e filósofo. Muito entendido em Mineralogia, Química e Matemática. Ficou o homem com o título de “Patriarca da Independência”. Ora, estas palavras em si mesmas não significam coisa alguma. Eu queria que vocês tivessem conhecido pessoalmente o homem, para terem uma ideia do que ele valia, sabia e fazia.

Andei também às voltas com os artigos de Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, sobre Matemática. Fui fã do Marquês do Maricá, o homem que escrevia pensamentos. Devorei o seu famoso: “Máximas, Pensamentos e Reflexões do Marquês do Maricá”. E andava sempre com um dito na ponta da língua. Eu devia estar mesmo insuportável!

Como eu andava fazendo a minha literaturazinha por aquela época, conheci um jornalista que muito me auxiliou na publicação de meus artigos. Chamava-se Evaristo Ferreira da Veiga. Fundou o jornal Aurora Fluminense, que surgiu lá por 1827.

Outros homens inteligentes com quem travei conhecimento: José da Silva Lisboa, entendido em Filosofia e Grego. Antônio José da Silva que escrevia para o teatro. E o primeiro dicionário que vi na minha vida foi o do brasileiro Antônio de Morais Silva. Foi publicado em 1789. Nunca ouviram falar no “Dicionário de Morais”? Pois é esse mesmo. Não abram a boca de surpresa. E esse mesmíssimo.

Tive o prazer de ler os versos de meu querido amigo Anchieta. E ninguém me dava crédito quando eu contava que ouvira alguns deles dos lábios do próprio poeta.

Mas eu não estou escrevendo um compêndio de Literatura Brasileira e sim a minha vida, as minhas aventuras!

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

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