domingo, 22 de abril de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 57 a 60









57 — SOLANO LOPEZ NÃO GOSTOU

Mas... Francisco Solano Lopez, ditador do Paraguai não gostou de ver o Brasil metendo o bedelho nos negócios do Uruguai. Sem declarar guerra prendeu no Rio Paraguai o vapor brasileiro Marquês de Olinda que levava a bordo o presidente nomeado para o Mato Grosso. Em seguida uma força paraguaia invadiu esta Província brasileira. Outra se meteu República Argentina a dentro.

Estava acesa a guerra.

Brasil, Argentina e Uruguai uniram-se e formaram a Tríplice Aliança para guerrear o Paraguai. No Brasil criaram-se os Corpos de Voluntários da Pátria.

Tibicuera vendeu o sítio, despediu-se das galinhas, lançou um olhar de adeus para os livros e para o milharal crescido — e se alistou no Exército. 

Travou-se o combate naval do Riachuelo. Francisco Manuel Barroso da Silva, comandante da nossa divisão naval, conseguiu uma grande vitória. Estigarríbia à frente de seu Exército invadia o Rio Grande. Mas 100 dias depois, se entregava em Uruguaiana. E D. Pedro II, que tinha vindo em pessoa ao Rio Grande, assistiu à rendição do chefe inimigo.

Os aliados invadiram o território paraguaio, passando pelo Uruguai e o território argentino de Corrientes. O Brig. Manuel Luís Osório comandava nosso Exército. Que era um homem valente e impetuoso eu vi. Não li nem ouvi dizer. Vi. Vocês hoje falam na 1.ª Batalha de Tuiuti... Mas não imaginam o que ela foi na realidade. Eu estava lá, eu a sinto ainda no meu peito, nos meus ossos, no meu sangue.

Não quero contar o que foi aquela campanha que ficou na História com o nome de Guerra contra o Governo do Paraguai. Ferido duas vezes, passei muito trabalho, sofri horrores.

Curupaiti, Humaitá, Tuiuti, Itororó, Lomas Valentinas, Angostura... São nomes que lembram tiros de canhão e de espingarda, baionetas relampejando, homens gritando e caindo, sangue empapando o chão. Cada nome desses recorda uma batalha. É claro que não estive em todas elas. Mas, oh!, como desejei estar em toda a parte onde se lutava! Argentinos e uruguaios guerrearam com bravura a nosso lado. Valentes, e muito, eram também os paraguaios.

Estive no Cerro Corá com os soldados que cercaram Lopez. O ditador não se quis render. Um dos nossos o matou. A guerra terminou. Durara mais ou menos cinco anos.

Consegui ser transferido para um regimento do Rio de Janeiro. Em princípios de 1871 voltei para a Capital do Império. Tirei a farda e de novo me vi sozinho e pobre, indeciso e inquieto, diante do mar, do velho mar da minha saudade e das minhas aventuras.

58 — MOTINS...

Um dia ia caminhando por um largo, na cidade, quando vi grande aglomeração em torno de um homem que, de pé em cima dum banco, fazia um
discurso entusiasmado. Aproximei-me e escutei. Era um propagandista da República. Gostei do que ele dizia. Eram palavras bonitas. Promessas agradáveis. 

Comecei a me interessar pela República e frequentei o Clube Republicano que fora fundado no ano anterior por Saldanha Marinho, Aristides Lobo e Cristiano Otoni. Foi lá que, no decorrer dos anos da propaganda, travei relações com homens inteligentes e entusiastas, alguns deles muito jovens.

Lembro-me de Quintino Bocaiuva, Silva Jardim, Rui Barbosa, Campos Sales, Demétrio Ribeiro, Joaquim Nabuco, Assis Brasil, Eduardo Wandenkolk...

Por aquele tempo o Imperador foi fazer uma viagem à Europa. Na sua ausência a Princesa Isabel ficou como regente do Império. No clube comentamos com muita satisfação a lei do “ventre livre que declarava livres os filhos nascidos das escravas.

O tempo passou. Progredi na vida. Consegui ótima colocação. Voltei-me de novo para os livros. Em 1875 tivemos notícia de motins em algumas Províncias do Norte. Em Pernambuco o povo atacou e invadiu casas de negócios, por causa da lei do governo que mandava adotar o sistema métrico decimal. Ninguém queria saber de comprar as coisas aos quilos. Vejam que engraçado! Mas os quebra-quilos tiveram de amoitar, porque o governo agiu com energia.

No Rio as coisas não andavam boas. Fora criada uma taxa de vinte réis sobre cada passagem de bonde. Era o Imposto do Vintém!

Lopes Trovão, um jovem propagandista da República, fez comícios na rua e falou contra a odiosa taxa. No dia em que a lei ia ser posta em vigor, o povo falava em revolta. 

Comecei a ficar inquieto. E, a despeito de todos os esforços que fiz para me portar com discrição, não pude resistir ao desejo de fazer uma baderna. Foi num bonde. Quando me vieram cobrar a passagem, soltei um “Viva a República!”.

Veio a polícia. Socos, pontapés, gritos. Depois, tiros. Naquele dia houve barricadas nas ruas, travaram-se verdadeiros combates. Foram mobilizados os corpos de linha, os imperiais marinheiros, os bombeiros.. .

Cheguei a meu quarto de madrugada, empoeirado, esfolado, esfarrapado. Contemplei meus livros com tristeza. Eu era mesmo um caso perdido.

59 — ZUMBI, TEU POVO ESTÁ LIVRE!

Fiz-me amigo de José do Patrocínio. Tenho dele as melhores recordações. Não poderei mais esquecer-lhe a figura imponente. Era um negro de ombros largos, olhar chispante. Jornalista e orador, seus artigos e discursos eram vibrantes e entusiastas. Batia-se a favor do abolicionismo: queria acabar com a escravatura no Brasil. Ele próprio era neto de escravos.

Tivemos por aquela época um caso complicado conhecido como “a questão militar”. Houve discussões pela imprensa. As opiniões se dividiram. O ministro da guerra repreendeu os oficiais que haviam escrito nos jornais sem licença. Mas o Mar. Deodoro da Fonseca e o Ten. Gen. Visconde de Pelotas se manifestaram a favor desses oficiais.

Eu via o governo pouco seguro. A República não tardaria em ser proclamada. Na noite de 13 de maio de 1888 me vi na rua no meio duma multidão que, louca de alegria, gritava, cantava e ria, dando vivas à princesa regente. D. Isabel, que acabava de assinai a lei abolindo definitivamente a escravatura. Deixei-me levar pelo povo, fui arrastado, olhando para o céu, lembrando-me de meus companheiros mortos nos quilombos. E não pude deixar de dizer baixinho: “Zumbi, teu povo está livre!”

Todos os sonhos dos homens do passado se realizavam. À cabeça de Tiradentes decerto sorria lá do alto do poste infame, contemplando a pátria libertada. Quem sabe se agora lá duma estrela remota o Zumbi não estava sorrindo também para a regente do Império?

60 — 15 DE NOVEMBRO DE 1889

A todas ESTAS a questão militar continuava acesa. Aproveitando um boato de guerra entre Paraguai e Bolívia, o governo mandou ao Mato Grosso uma força comandada pelo Mar. Deodoro da Fonseca. Um meio hábil de afastá-lo do Rio…

Um dia, já ele de volta à Corte, correu pela cidade o boato de que o marechal ia ser preso juntamente com o Ten. Cel. Benjamin Constant. Uma brigada de São Cristóvão se rebelou. Deodoro e Benjamin Constant puseram-se à frente dessa força. 

O momento é de sensação. Todos os ministros — menos o da Marinha — se encontram reunidos no edifício do Ministério da Guerra. Nervosismo geral. Deodoro marcha à frente das brigadas revoltadas. O almirante Barão de Ladário, Ministro da Marinha, aproxima-se. Vem de carro, com o fim de se reunir ao Ministério. Deodoro manda prendê-lo. O barão resiste à voz de prisão e é ferido por uma descarga.

Deodoro entra no pátio do Ministério da Guerra onde se encontram as tropas do governo... Como vão recebê-lo? Como inimigo? Há momentos de terrível angústia. Deodoro entra. As forças do governo lhe prestam continência. É a revolução.

Os ministros se entregam aos revoltosos e telegrafam ao Imperador, que se acha em Petrópolis, apresentando-lhe seus pedidos de demissão. Quando vi o rebrilho das baionetas e ouvi o som das charangas, não pude deixar de acompanhar as tropas que desfilavam pelas ruas.

Naquela mesma tarde de 15 de novembro de 1889, José do Patrocínio levou ao Mar. Deodoro da Fonseca um manifesto declarando que o povo havia proclamado a República. Formou-se o governo provisório. Estava proclamada a República dos Estados Unidos do Brasil. Quatro dias depois eram adotadas uma nova bandeira e as armas nacionais. E o Imperador? Ninguém lhe queria mal. Era uma grande alma, cheia de bondade e tolerância. Eu até simpatizava com ele. O que me seduzia na ideia republicana era o que ela tinha de novo, de revolucionário, de vibrante.

D. Pedro II foi intimado a partir para a Europa. Fui ao cais espiar seu embarque. Eram três horas da madrugada. O imperador veio num carro negro, puxado por uma parelha de cavalos. Pouca gente o acompanhava. Uma lancha o conduziu até o paquete Alagoas que devia levá-lo para o exílio.

Olhei o vulto encurvado. Tive pena. Vi o vapor partir e não sei por que me lembrei daquele dia distante em que as caravelas de Pedro Álvares Cabral se fizeram ao mar.

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 

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