segunda-feira, 23 de abril de 2018

Antonio Florêncio Ferreira (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.1) I

I

Vês aquele enterro humilde,
sem padre, sem cruz, sem nada?
Vês aquel'outro, pomposo,
do templo a frente enlutada?

O primeiro é d'um honrado;
talvez o do outro o não seja...
Mas ambos, de igual doutrina,
são filhos da mesma igreja.

O que me admira e me assombra
é o afeto desta mãe,
que ao rico dispensa afagos
e ao pobre atira o desdém!

II

Moram aqui uns vizinhos
que sabem quanto fazemos;
são capazes de informar-nos
se nos devem, se devemos...

Em vindo qualquer pessoa
Nossas tensões inquirir,
Manda-se lá... inteirada
Por certo que há de sair!

III

Dizer que Deus dá Castigos
eternos, que não têm fim,
é a maior das blasfêmias,
heresia, quanto a mim...

Se os homens, por maus que sejam,
tal não podem legislar,
porque a Morte aos criminosos
vem da pena libertar,

Querer que Deus os exceda
no rancor e na secura
é de embrenhar nosso espirito
nuns abismos de amargura!

IV

Deixemos, Amor, deixemos
questões de filosofia;
Pode nelas haver ciência,
mas não podem ter poesia.

V

Não são vossos meus cantares,
mulheres que festejei;
Vistes o amor em quimeras?
Nunca iludir-vos pensei!

De que servem esses gabos,
Essa ideia presunçosa?
Esquecestes esta màxima:
«Sê modesta, não vaidosa.»
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Nota: 
Gabos – pessoas excêntricas, que se acham melhor que as outras.
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VI

Peregrina luz da lua,
como é velho o teu palor!
Mas, como tu, sempre encanta,
velha embora, a luz do amor!

VII

Oh! consente-me num sono
dormido ao terno embalar
da poesia que se evola
do teu mimoso afagar!

No calor do teu regaço
que sonhos devera ter!
Nos braços de huris, de fadas
mais gôzo não pode haver!
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Nota:
Huris: São as virgens do paraíso que, de acordo com a crença islâmica, receberão os homens que foram bons na Terra após a morte.

VIII

Meu coração foi sangrado;
já se não usa a sangria...
Por isso, caso hoje raro,
ele sangra noite e dia.

Foi operante... quem amo;
A lanceta... o seu olhar;
A ligadura... seus beijos,
Que não tardei a furtar.

E assim ele está gemente,
o meu pobre coração,
à espera de que mais beijos
o estanquem e ponham são!

Fontes:
Antonio Florencio Ferreira. Trovas: canções de amor. 
Lisboa: Imprensa de Libanio Silva, 1906

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