quarta-feira, 18 de abril de 2018

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 53 a 56


 53 — COXILHAS, LANCEIROS, ROMANCE E... PAZ!

Porto alegre caiu em poder dos legalistas. Fizemos o nosso quartel general perto de Viamão. O nosso chefe supremo era o Cel. Bento Gonçalves da Silva, uma figura impressionante. Lutei muitas vezes ao lado dele. 

Não me esqueço daquele dia... A nossa tropa ia atravessando o Rio Jacuí. Um pensamento me veio à cabeça: “Se os inimigos nos atacam agora, estamos perdidos...” Mal eu pensara isto, ouvimos um tiroteio. As balas caíram a meu redor, produzindo n’água um ruído líquido e mole. O pânico se apoderou de nossa gente. Bento Gonçalves gritava, procurando conter seus soldados. O combate se travou desigual para a Ilha do Fanfa. Bento Gonçalves foi aprisionado. Escapei por um triz. Horas depois me vi no campo aberto, molhado como um pinto, tiritando (era outubro e ainda fazia frio) e sentindo uma grande saudade de meu quarto de estudante.

Reuni-me de novo aos revolucionários. Fiquei sabendo que Bento Gonçalves seria levado prisioneiro para a Corte. Mas a guerra continuou. Havia um guerreiro que até hoje nem eu nem ninguém conseguiu compreender. Chamava-se o Cel. Bento Manuel Ribeiro. Ora estava de nosso lado; ora passava para o lado dos legalistas. Como era homem valente, astuto e conhecedor da arte da guerra, nenhum dos dois exércitos o recusava. Mas não vamos falar mais nele. O assunto é perigoso, como a Batalha de Ituzaingó e a traição de Calabar.

Obtivemos uma vitória em Caçapava, outra em Triunfo e cercamos Porto Alegre. Bento Gonçalves, bem como nos romances de Alexandre Dumas Pai (que naquele tempo tinha exatamente 35 anos de idade) fugiu do Forte do Mar, onde estava preso, e veio reunir-se à sua gente. Assumiu a Presidência da República Rio-Grandense e transferiu a capital para Caçapava.

Outro general importante era Davi Canabarro. Havia também Giuseppe Garibaldi, um italiano amigo de aventuras, que lutou ao lado dos revolucionários. Casou-se com uma brasileira, Anita, que o acompanhava nos combates, passando ambos para a História. (Só quem não passou fui eu... Em compensação, estou vivo.)

Lembro-me bem do seguinte quadro. Anoitecer. Nossa cavalaria corre. É a carga final. Os legalistas formam o quadrado. Esperam-nos de baioneta armada, pois suas balas já se acabaram. Vamos de lança estendida... O barulho das patas dos cavalos parece o pipocar dos tiroteios. Eu vou como num sonho maluco. Tonto, sentindo um frio esquisito na boca do estômago. O horizonte está vermelho, como se o sangue de todos os guerreiros mortos tivesse tingido o céu. Procotó-procotó-procotó... Os cavalos voam. Gritos. Urros. E o quadrado crescendo diante de nossos olhos, crescendo... O vento faz ondular furiosamente os nossos palas. As baionetas... E de repente o choque. Sinto uma dor aguda.

Perco os sentidos. Quando acordo estou num hospital de Caçapava. Convalescença. Deram-me notícias da Corte. O Barão de Caxias pacificara o Maranhão. Abafara uma revolta em São Paulo. Outra em Minas Gerais. Voltava o Imperador agora os olhos para o Sul. Era preciso dominar o Rio Grande.

Por esse tempo aconteceu outra coisa curiosa. A Inglaterra fazia o papel de “polícia dos mares” e votou uma lei, segundo a qual ficavam sujeitos ao julgamento dos tribunais ingleses os cidadãos brasileiros que negociassem com escravos. Recebi esta noticia com certa alegria. Era um sinal de que em breve poderíamos esperar uma lei brasileira proibindo a compra e a venda de negros. 

Saí do hospital curado. Tomei parte em alguns combates mais. O Barão de Caxias foi encarregado de pacificar o Rio Grande. Por esse tempo Bento Manuel voltava de seu exílio voluntário para lutar ao lado dos legalistas. Sofremos uma série de derrotas.

A 1.° de março de 1845 era assinada a paz. Já era tempo. Eu estava cansado. Tinha lutado durante quase dez anos. Esquecera os livros lidos, perdera o gosto pela poesia. Estava com o corpo cheio de cicatrizes e a alma amargurada. Aquela guerra entre irmãos só agora me aparecia com todo o seu pavor. Jurei a mim mesmo que não tomaria mais parte em revoluções. Uma noite Anchieta me apareceu em sonhos e pela expressão de seu rosto vi que ele não estava contente comigo.

54 — LEVAM-ME PARA O HOSPÍCIO

Fui morar em Porto Alegre, onde consegui emprego numa Soja. Às vezes eu contemplava o Guaíba e sentia saudades do mar. O tempo passava. Eu me lembrava do pajé. E me apalpava, me olhava aos espelhos e não podia compreender o mistério... A verdade era que eu estava vivo e me recordava de coisas passadas havia duzentos e muitos anos.

Uma noite encontrava-me eu em visita na casa de uma família amiga. Falava-se na última revolução. Alguém contou que rebentara em Pernambuco uma revolução (a dos Praieiros) que fora dominada depois de alguns meses. Um outro recordou episódios de nossa História, coisa aprendida em livros. Fui ficando entusiasmado de tal forma que dentro em breve tomei conta da palestra. Contei do meu encontro com Anchieta; da minha vida nas selvas; das bandeiras; da guerra contra os holandeses; da vida no quilombo dos Palmares; da fundação do Rio de Janeiro...

Todos me ouviram em silêncio. Quando terminei a narrativa vi olhos desconfiados a me fitarem. O dono da casa se ergueu, bateu no meu ombro e disse:

— Eu não sabia que o meu amigo tinha veia de romancista. A história está bem arranjada. Por que não escreve isso?

Fiquei indignado. Mas eu estava falando a verdade, a pura verdade! Estabeleceu-se discussão. Perdi a linha. Exaltei-me. As senhoras se retiraram da sala, temendo um conflito.

Sabem o resultado? Alguns homens me dominaram, me amarraram e me levaram à presença dum médico. Este me interrogou. De início pediu a data e o lugar do meu nascimento. Respondi:

— Nasci numa taba tupinambá antes do descobrimento do Brasil.

O médico olhou para mim, pensou um instante e depois disse para os homens que me cercavam:

— Está doido varrido. Podem levá-lo.

Fui internado num hospício. Parece impossível. Passei lá quase dois anos. Pedi tinta, pena e papel e comecei a escrever as minhas memórias. Se não fora esse entretimento eu não teria aguentado aquela prisão horrenda e a companhia perigosa dos loucos.

Narrei com todos os pormenores (muito melhor do que estou fazendo agora) a minha vida, desde a taba até aquela data. 0 manuscrito ia crescendo: era uma pilha de meio metro de altura.

Um dia um louco se aproximou dele e prendeu-lhe fogo com a chama duma vela. Quando eu vi o fogo havia consumido os meus papéis e passava para o lençol da cama. Dentro em pouco o incêndio se generalizava. Soaram os sinos de alarma. Os loucos começaram a cantar. Os guardas corriam dum lado para outro. Abriram as nossas celas e as portas do hospício. Aproveitei a confusão e fugi.

55 — VOLUNTÁRIO NO PRATA

Chamavam voluntários para o exército. Alistei-me. Fui aceito. Metido na farda me olhei um dia nas águas duma lagoa e disse para mim mesmo:

“Qual, Tibicuera! Tu não tens cura. O teu destino é andar às voltas com guerras.”

Mas a verdade era que como soldado eu me livrava do perigo de voltar para o hospício. Durante vários meses levei vida boa. Mas um dia tivemos ordem de marchar. O exército brasileiro ia invadir a República Oriental do Uruguai. Havia lá uma complicação tremenda. Oribe era o presidente. Mas Rivera fizera uma revolução, derrubara-o e tomara conta do governo. João Manuel de Rosas, ditador de Buenos Aires, arregalou o olho para a Banda Oriental. Podia tomar conta dela. Também não era impossível abocanhar o Rio Grande do Sul. Então ele seria o ditador de um país muito grande e poderoso. Para realizar seu sonho, apoiou Oribe, que cercou Montevidéu. Corriam perigo as fronteiras do Brasil. E por isso íamos nós para lá.

Confesso que foi bem desagradável aquela campanha. Passamos muito trabalho lutando em terra estrangeira. Mas obrigamos Oribe a levantar o cerco. Avançamos sobre Buenos Aires. Vencemos Rosas em Caseros sob o comando do gaúcho Marques de Sousa.

Voltei da campanha, estropiado. E fazendo projetos para mudar de vida. Estava resolvido a abandonar as guerras.

56 - ENTRE GALINHAS E PÉS DE MILHO...
Foi por isso que quando em 1864 se falou numa nova expedição à República Orientai, eu preferi ficar numa granja que tinha arrendado. Achei mais agradável plantar milho e criar galinhas do que ir matar gente na república vizinha. Entretanto fiquei curioso por saber o que se estava passando. Os jornais andavam cheios de notícias em torno do conflito. Os partidos que lutavam do outro lado da fronteira, repetidamente praticavam violências contra cidadãos brasileiros. Todas as reclamações diplomáticas tinham sido em vão. A anarquia continuava no Uruguai. Guerreavam-se os dois partidos rivais. Os blancos, que eram a gente de Oribe e os colorados, que eram os homens de D. Venâncio Flores. As forças brasileiras invadiram o Uruguai, uniram-se aos colorados, sitiaram Montevidéu e entraram nesta cidade, entregando o governo ao Gen. Flores (Não confundir com o Gen. Flores da Cunha.)

Acompanhei a guerra pelos jornais. O meu milharal crescia. As galinhas engordavam. Eu tinha comprado alguns livros e era de novo feliz com os meus poetas, os meus romancistas e os meus filósofos. Mas...

Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937. 

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