quarta-feira, 16 de março de 2011

Vicência Jaguaribe (14 de março, o Dia da Poesia)


Soube, pela Internet, que 14 de março, é o dia da poesia. E eu que, desde ontem, penso em minha mãe, cujo aniversário caía nesta data. Para mim, 14 de março era, até hoje, o dia do aniversário de minha mãe. E só.

Não sabia que havia o Dia da Poesia, como há o Dia das Mães, o Dia dos Pais, o Dia do Comerciário, o Dia do Médico, e outros dias mais. A lista deve ser imensa e não vale a pena pesquisá-la. Sei, sim, que há o Dia do Livro e o Dia do Livro Infantil. Mas o Dia da Poesia é novidade para mim. Assim, vamos acabar achando a coisa mais natural do mundo exigir — de quem, não sei — um Dia do Romance, um Dia do Conto, um Dia da Crônica. E por aí vai. Acho que os trezentos e sessenta e cinco dias e seis horas do ano não dão mais para festejar tanto Dia.

Um dia dedicado à poesia! Talvez seja por isso que o mundo anda tão sem sensibilidade, tão frio, tão carente de beleza e de calor humano. Talvez seja por isso que as pessoas não se dizem mais palavras doces — nem salgadas. As pessoas não se falam mais. Não se pode ter o “Dia da Poesia”. A poesia deve estar presente na vida humana todos os dias, para evitar-lhe o ressecamento, a robotização e a sujeição ao material, à rotina, à mesmice. Só a palavra da poesia quebra os grilões da palavra do cotidiano, que nos sujeita por estar a serviço do poder.

Na aula inaugural da cadeira de semiologia literária, do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977, Roland Barthes ensina que a língua “não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista, pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Para libertar-se dessa dominação é que o homem faz literatura, que é um “trapacear com a língua, trapacear a língua”: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura”.

Eu diria que, no interior da literatura, a palavra da poesia é a que mais trapaceia a linguagem; é a que mais a revoluciona; a palavra que mais se afasta do poder, fazendo um trabalho de deslocamento em relação à palavra do cotidiano. Não é à toa que Jean Cohen, em A plenitude da linguagem, nos diz que “a função poética não apenas tolera, mas exige mesmo a transgressão dessas normas [as normas da língua]. A linguagem ‘normal’ não é, portanto, a linguagem ‘ideal’. Muito pelo contrário, pois é na sua destruição que assenta a instauração do que Mallarmé chamava a ‘alta linguagem’”.

A palavra poética é capaz de dizer o indizível. É capaz de revelar o que está dentro da alma humana sufocando-a. A palavra poética arranca a fórceps a palavra que não quer ou não pode sair. É disso que fala a poetisa Mônica Magalhães Cavalcante no poema

Compartilhamento

Só o poeta escuta
Uma voz outra,
A dor oculta
Que a palavra insulta.

Só o poeta entende
O grito contido,
O olhar reticente
Que a rima pretende.

Só o poeta proclama
A poesia não-dita,
O amar de quem ama
Que este (re)verso reclama.

Sendo a voz daquele que não sabe ou não pode falar da sua dor, o poeta tem a capacidade de salvar do sufocamento, por meio de sua palavra mágica. Sim, a palavra da poesia é uma palavra mágica, que transforma, em um trabalho de alquimia, o vômito em essência olorosa. Sobre esse poder misterioso que se evola da poesia fala Mário Quintana em

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

e Roseana Murray em

Lamparina

mais que promessa de luz
ardendo secreta
lamparina de quebrar a noite
geografia oculta de água
e cristal
poesia é pano de forrar
a alma
no meio do vendaval

É exatamente pela capacidade mágica que tem a palavra poética de nos trazer alívio, salvar-nos do afogamento interior, tirar-nos do ambiente infecto e insalubre da rotina, libertar-nos da palavra escravizadora do cotidiano, que defendo não um Dia da Poesia, mas uma constância da palavra poética em nossas vidas. Ela nos desperta para a beleza do mundo, que nossos olhos não mais alcançam. Ela nos faz ver o mundo, a natureza, as pessoas com o olhar virgem do estrangeiro, que chama nossa atenção para o que nossos olhos cansados de olhar sem ver não conseguem enxergar.
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Fonte:
A Autora

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