terça-feira, 22 de março de 2011

Epopéias da Índia Antiga (O Mahabharata) – III – História de Savitri


Havia outrora um rei chamado Asvapati, que tinha uma filha tão formosa e meiga que lhe deram o nome de Savitri, o de uma sagrada oração dos hindus.

Quando a moça chegou à idade núbil, seu pai mandou que escolhesse marido, de acordo com sua vontade, pois na antiga Índia não se conhecia nem por sombra o que hoje se chama razão de Estado nas monarquias, sendo as princesas reais donas absolutas dos seus sentimentos amorosos.

Savitri aceitou o conselho de seu pai. A carruagem real, acompanhada de brilhante escolta e antigos potentados que dela cuidaram, visitou varias cortes vizinhas e outros reinos distantes, sem que nenhum príncipe conseguisse sensibilizar seu coração.

Aconteceu que a comitiva passou por uma ermida localizada em um daqueles bosques da índia antiga, em que a caça era proibida, de sorte que os animais que ali habitavam haviam perdido todo temor ao homem e até os peixes dos lagos apanhavam com a boca as migalhas de pão que se lhes davam com as mãos.

Havia milhares de anos que não se matava nenhum ser naquele bosque; os sábios e os anciãos desgostados do mundo retiravam-se para lá a fim de viverem em companhia dos cervos, das aves, entregando-se à meditação e a exercícios espirituais pelo resto da vida.

Sucedeu que uni rei, chamado Dyumatsena, já velho e cego, vencido e destronado por seus inimigos, refugiou-se no bosque fechado com sua esposa, a rainha, os seus filhos dos quais o mais velho se chamava Satvavân, e ali passava asceticamente a vida, em rigorosa penitência.

Na antiga índia, era costume que todo rei ou príncipe, por mais poderoso que fosse, ao passar pela ermida de um varão sábio e santo, retirado do mundo, se detivesse para tributar-lhe homenagem; tal era o respeito e a veneração que os reis prestavam aos yogis e aos rishis.

O mais poderoso monarca da índia sentia-se honrado quando podia demonstrar sua descendência de algum yogi ou rishi que tivesse vivido no bosque, alimentando-se de frutas, raízes e coberto de andrajos.

Assim é que quando se aproximavam a cavalo de alguma ermida, apeavam-se muito antes de chegar a ela e andavam a pé até o local onde estava o eremita. Se iam de carro e armados, também desciam, despojavam-se de seus arreios militares e depois entravam na ermida, pois era costume que ninguém entrasse naqueles sagrados retiros ou ashram, como eram chamados, com armamentos militares, mas sim com atitude serena, pacifica, humilde.

Fiel ao costume, Savitri penetrou na ermida do bosque sagrado e, ao ver Satyavân, filho do destronado rei eremita, ficou profundamente apaixonada por ele. Ela já havia desprezado os príncipes de todas as cortes e unicamente o filho do destronado Dytimatsena lhe havia roubado o coração.

Quando a comitiva regressou à corte, o rei Asvapati perguntou à filha:

- Diz-me, Savitri, querida filha, vistes alguém digno de ser teu esposo?
- Sim, pai querido, - respondeu Savitri ruborizada.
- Qual o nome do príncipe?
– Já não é príncipe, meu pai, por que é filho do rei Dyumatsena, que perdeu o reino. Não tem patrimônio e vive como um sannyasi no bosque, colhendo ervas e raízes para alimentar-se e manter seus velhos pais, corri quem mora em uma cabana.

Ao ouvir isto dos lábios de sua filha, o rei Asvapati consultou o sábio Nârada, que se achava presente. Este declarou que aquela escolha era o mais funesto presságio que a princesa havia feito.

O rei pediu então a Nârada que explicasse os motivos de sua declaração e ele respondeu:
- Daqui a um ano esse jovem morrerá.

Aterrorizado por esse vatícinio, disse o pai à filha:
- Pensa, Savitri, quê o jovem que escolheste morrerá dentro de um ano e ficarás viúva. Desiste da escolha", filha minha, e não te cases com um jovem de tão curta Vida.

Savitri, porém, respondeu:

-Não importa, meu pai. Não me peças que me case com outro e sacrifique a castidade de minha mente, porque em meu pensamento e em meu coração amo ao valente e virtuoso Satyavân e o escolhi para esposo. Uma donzela escolhe uma só vez e jamais quebra sua fidelidade.

Ao vê-Ia tão decidida, resignou-se o pai à vontade de Savitri, que, em conseqüência, casou-se com o príncipe Satyavân e tranqüilamente deixou o palácio de seu pai para viver na cabana do bosque, com o eleito de seu coração, ajudando-o a sustentar seus velhos pais.

Embora Savitri soubesse quando seu marido ia morrer, guardou a respeito rigoroso segredo.

Diariamente Satyavân se Internava no bosque para colher frutas, flores e reunir feixes de lenha, volvendo com a carga para a cabana, onde sua esposa preparava a refeição.

Assim passou o tempo, até que três dias antes da data fatal, resolveu a moça passar três dias e três noites em completo jejum e fervorosas orações, sem deixar transparecer sua angustia e ocultando suas lágrimas.

Finalmente amanheceu o dia marcado no presságio e não querendo Savitri perder de vista, nem por um momento, a seu marido, solicitou e .obteve dos pais do mesmo permissão para acompanhá-lo, quando fosse à colheita diária de ervas, raízes e frutas silvestres no interior do bosque. Assim foi feito.

Estavam em pleno bosque, quando com voz enfraquecida Satyavân queixou-se à esposa, dizendo:

– Querida Savitri, sinto-me aturdido, meus sentidos se esvaem e o sono me invade. Deixa-me repousar um pouco ao teu lado.

Trêmula e assustada, Savitri replicou:

- Vem, meu amado e reclina a cabeça em meu colo.

Satyavân reclinou a cabeça ardente no colo de sua esposa e instantes depois exalou o último suspiro.

Abraçada ao cadáver de seu marido, desfeita em lágrimas, permaneceu a infeliz naquela solidão, sentida no chão, até que chegaram os emissários da Morte para levar a alma de Satyavân.

Nenhum deles, porém, pôde acercar-se do local em que estava Savitri com o cadáver de Satyavân, porque ardia num círculo de fogo que rodeava a união formada pela vivente e o morto.

Por isso os emissários voltaram ao rei Yama, o deus da Morte e explicaram-lhe porque não puderain levar a alma de Satyavân.

Yama, o deus da Morte, o juiz dos mortos, ocupava posição tão divina por ser o primeiro homem que havia morrido na terra e decidia se um mortal, ao morrer, merecia prêmio ou castigo.

Assim, pois, Yama foi pessoalmente ao bosque e, como era um deus, pôde atravessar sem perigo o círculo de fogo e aproximar-se do local em que estava Savitri. Chegando, disse a ela:

- Minha filha, entrega-me este cadáver, pois já sabes que a morte é o destino de todo mortal e eu sou o primeiro mortal que morreu. Desde então tudo que vive há de morrer. A morte é o irrevogável destino do homem.

Savitri deixou o cadáver de seu marido e Yama, tirando-lhe a alma, com ela se afastou; porém não havia andado muito, quando ouviu atras de si passos sobre as folhas secas. Ao volver-se a Savitri, a quem disse com paternal ternura:

- Savitri, minha filha, por que me segues? Este é o destino de todos os mortais.

Savitri respondeu:
-Não sigo a ti, senhor meu, porque o destino da mulher é ir onde seu amor a leva; a lei eterna não separa o amoroso esposo da fiel esposa.

Então disse o deus da Morte:
- Pede-me a graça que quiseres, menos a vida de teu marido.

Ao que ela respondeu:
- Se desejas outorgar-me uma graça, ó deus da Morte, peço-te que devolvas a vista a meu sogro e que ele seja feliz.

Yama replicou:

- Cumpra-se teu piedoso desejo, respeitosa filha.

E o rei da Morte seguiu seu caminho com a a alma de Satyavân. Novamente ouvindo passos, voltou-se e viu que Savitri o acompanhava.

- Savitri, minha filha, ainda me segues9

- Sim, meu senhor; nada posso fazer, pois embora me esforce em retroceder, a mente corre em pós de meu marido e o corpo a obedece. Tens a alma de Satyavân e como sua alma é também a minha, meu corpo a acompanha.

Yama disse, então:

- Agradam-me tuas palavras, formosa Savitri. Pede-me outra graça, menos a vida de teu marido.

- Se te dignares conceder-me outra graça, fazei com que meu sogro recupere seu reino e suas riquezas.

- Concedo-te, filha amorosa, mas volta para teu lugar, porque nenhum ser vivente pode andar em companhia de Yama.

E o rei da Morte seguiu seu caminho.
Savitri, porém, persistiu em acompanhá-lo e Yama volvendo-se dialogou com a mesma.

- Nobre Savitri, não me sigas com tua dor sem esperança.
- Não tenho remédio - senão ir para onde levas meu marido.
- Supõe, Savitri, que teu marido foi um perverso e que eu o levo para o inferno. Irias acompanhar teu marido?
- Iria alegre para onde ele fosse, quer na vida, quer na morte, seja no céu, seja no inferno.
- Benditas sejam tuas palavras, minha filha! Deixaste-me comovido. Pede-me outra graça que não seja a vida de teu marido.
– Pois já que me permites pedir-te, fazei com que não se quebre a régia estirpe de meu sogro e que seu reino seja herdado pelos filhos de Satvavân.

O rei da Morte sorriu e disse:

- Filha minha, teu desejo será cumprido. Aqui tens a alma de teu marido. Ele voltará a viver e será pai de teus filhos que, com o tempo, serão reis. Volta para tua casa. O amor triunfou da morte. Jamais mulher alguma amou como tu e és a prova de que até eu, o deus da Morte, nada posso contra a força de um verdadeiro e perseverante amor!
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Continua.... IV - No Desterro
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Fonte:
Vivekananda, Swami. Epopéias da Índia Antiga.

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