Doca engoliu a cachaça, sem uma careta sequer, repôs o copo sobre o balcão e afastou-se, a cambalear.
– Morre, desgraçado – brincou Hélvio.
Os fregueses riram e se puseram a tagarelar. Aquilo só podia ser doença.
– Doença que nada. Isso é vício mesmo.
– Ou então vontade de morrer.
O bêbado falava só, do lado de fora do boteco.
– Quantas ele tomou?
Enquanto trocava o disco da vitrola, Hélvio prognosticou:
– Se durar mais um mês, dura muito.
E pôs-se a falar de sua experiência como dono de bar. Conhecia o grau do vício de cada cachaceiro. Sabia quanto podiam durar.
– Vocês se lembram do Tiquinho?
Na vitrola, Nelson Gonçalves enchia a rua com o nome de Carlos Gardel.
– Pois bem, eu disse que aquele não passava do carnaval. Passou?
O assunto prometia render uns bons minutos. Relembrar os mortos, os antigos frequentadores do bar, os maiores consumidores de cachaça do bairro, era outra das especialidades de Hélvio.
– Essa turma pensa que cachaça é água.
Entretidos, ninguém se lembrava mais de Doca, que já ia longe, aos trambecões. Feiúra ambulante. Trapos, só trapos. Piolhento, sujo, banguela.
Relembrado numa pausa da fala de Hélvio, falaram de suas rugas precoces, de sua família, de seu passado.
Na outra esquina, tropicou e caiu. Tentou levantar-se, pôs-se de quatro, tombou para um lado, virou-se e ficou a olhar para cima. Bolinhas e fiapos brancos corriam pelo azul do céu.
Um cachorro passou desconfiado a pouca distância, enorme no seu meio metro.
– Olha onde ele foi cair, pessoal!
Hélvio só se moveu para ir virar o disco. Os fregueses, porém, correram até a porta.
Doca fechou os olhos, resmungou, remexeu-se. Não dava para se levantar. O jeito era dormir. Não deu nem pra cochilar – abriu os olhos e só viu pernas, muito longas; depois braços, pendurados, feito cachos de banana; e queixos, buracos de venta, muitos olhos.
– Morre, filho de uma égua.
– Aguenta, filho da mãe.
Tentaram erguê-lo pelos sovacos. Puseram-no sentado. E depois de pé.
– Vai embora.
Cambaleou, rodopiou como um pião, equilibrou-se na parede, sorriu, agradeceu. E seguiu, tropegamente.
Os bons amigos riam, olhos dançarinos grudados no balé do bêbado.
– Agora ele vai.
E voltaram ao bar, a convite de Nelson: Faça como eu, acostume-se à derrota...
– Não adianta, amanhã ele volta, enche a cara de novo – concluiu Hélvio.
Mais longe do bar, Doca continuava seu caminho, arrastado pelo declive da rua, amparado pela parede das casas.
Nos dias seguintes, Hélvio não deixou de falar de sua experiência como dono de bar, enquanto Nelson Gonçalves enchia a rua com o nome de Carlos Gardel.
Numa noite em que na vitrola só rodava Jingle Bells, anunciaram a nova:
– Eu não disse que Doca não passava do Natal?!
Fonte:
Nilto Maciel. Babel.
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
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