A peste havia levado para a terra dos pés juntos quase todo o povo do lugar. Menos os filhos ingratos, sem amor ao chão, e os mais duros, de corpo fechado. Muita carniça para os urubus. Uma praga de bicho morto. Plantação nenhuma resistiu. A terra se esturricou. Quem escapou e não esperou pela morte, fugiu para bem longe, tomou o oco do mundo. Menos Sinhá. Essa ficou para enfrentar o cão. Comia raiz, qualquer coisa da terra nascida. Gafanhoto, formiga, besouro. Depois apareceram, não soube ela como, pés de pau, porco, galinha, toda sorte de bicho. Porém de quase nada disso ela se servia. Continuava a enfiar as mãos trêmulas na terra, à cata de comida do chão. Se enxergava ainda? Divertia-se a espiar as galinhas comerem minhocas, os porcos fuçarem a lama e os frutos apodrecerem em cima da terra. Sozinha no sitiozinho, na choupana velha, dos bons tempos, conversava com os bichos, a chuva, os ventos, a noite, os meninos que malinavam no terreiro e metidos no mato. Não haverá de abandonar a terrinha, porque, o que de que carecia, ela dava em abundância. Dava e levava. Nas suas falas, porém, Sinhá muito se queixava de abandono e rogava pragas aos que a deixaram só, como se estivesse leprosa. Maldizia-se dia e noite, a gritar e blasfemar em miúda voz. Talvez não a ouvissem. Certamente viviam por ali, enfiados nas cabanas escondidas ou nas roças distantes. Tangiam porcos e galinhas, que não cessavam de fuçar o chão, em tempo de derrubar as casas. Ouvia de madrugada o canto dos galos. Sim, eles viviam por ali. E nunca se mostravam. Tinham medo da lepra que ela não carregava. Orgulhosos! A terra havia de papar um a um amanhã, antes da safra, depois de São João.
Passo manso e torto, olhos nas pontas dos pés, amaldiçoava os bichos que a perseguiam, encostada na bengala lisa e ensebada. Pela primeira vez, depois de tanta solidão, pisava novos rastros. Vontade doida de dar um passeio, conversar de frente, recordar o antigamente, até aquela peste danada e tão passada, falar da chuva que sempre vinha e sempre ia. Buscou as veredas cobertas de mato, para cá e para lá, avistou a cabana de Meranda. Por que aquela criatura nunca mais havia aparecido? Oi de casa. Nem um só pio. Apurou os ouvidos. Pio, pio, pio. Escancarou a porta, passou, passou, trambecou, perguntou pelo café, nada de fogo nem de lenha. Decerto o povo andava na roça ou na cidade a comprar fazenda por mor de fazer roupa para os meninos. O mofo no canto da cozinha cobria o pote. Fogão apagado, panela nenhuma. De tamborete só a sombra. Esburacadas as paredes, furado o céu no telhado.
Sem jeito, saiu pela porta dos fundos, a tropeçar no passado. Essa Meranda! Cansada de carregar o tino, grudou-se à bengala lisa e vergou o corpo, murcho e leve, e só não conseguia voar, feito os passarinhos que beliscavam a mata branca de sua cabeça, porque nada a despegava da terra. Nem mesmo o abandono de parentes e aderentes. Fugir também? Não, não sentia medo de nada. Ora, se já ninguém existia no mundo, nada de fazer medo havia. Tudo morto, até o tempo. Fim de mundo, sim senhor. Pois donde nascer curumim, se não se via mais homem nem mulher? Ela? Não, nada daquilo era, nem mulher nem homem. Nem nunca tinha sido. Então só queria a fianga para se estender, descansar e dormir. Bem muito.
Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
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