MINHA ALEGRIA
Minha alegria foi no teu caixão;
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.
Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dor que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidão,
Meu cântico esculpido em noite escura!
Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste após a morte.
Foste tu que m'a deste, meu amor;
Agora, dou-t'a eu: é a minha flor;
Eu quero que ela sofra a tua sorte.
TRISTEZA
O sol do outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lágrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir...
Eis como a minha vida vai passando
Em frente ao seu Fantasma... E fico a ouvir
Silêncios da minh'alma e o ressurgir
De mortos que me foram sepultando...
E fico mudo, extático, parado
E quase sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade...
Só a longínqua estrela em mim atua...
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petrificada esfinge de saudade...
A MINHA DOR
Tua morte feriu-me no mais fundo,
Remoto da minh'alma que eu julgava
Já fora desta vida e deste mundo!
E vejo agora quanto me enganava,
Imaginando possuir em mim
Alma que fosse livre e não escrava!
Meu espirito é treva e dor sem fim.
Todo eu sou dor e morte. Sou franqueza.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim
Pregar a noite, a lagrima, a incerteza,
A luz que, para sempre, anoiteceu...
Esta envolvente, essencial tristeza,
Tristeza original donde nasceu
O sol caindo em lagrimas de luz,
Choro de ouro inundando terra e céu!
Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz,
Meu ilusório ser crucificado
Lembra um morto fantasma de Jesus...
E aos pés da minha cruz, no chão magoado,
A tua Ausência é a Virgem Dolorosa,
Com tenebroso olhar no meu pregado.
Ah! quanto a minha vida religiosa,
Depois que te perdeste no sol-posto,
Se fez incerta, frágil e enganosa!
Em meu ser desenhou-se um novo rosto.
Sou outro agora; e vejo com pavor
Minha máscara interna de desgosto.
Vejo sombras á luz da minha dor...
Sombras talvez de eternas Criaturas
Que vivem na alegria do Senhor...
E quem sabe se os Mortos, nas Alturas,
Vivem na paz de Deus, em sítios ermos,
Entre flores, sorrisos e venturas?...
E quem sabe se as dores que sofremos
E nosso corpo e alma, não são mais
Que as suas vagas sombras irreais?...
Ah, nós somos ainda o que perdemos...
A MÃE E O FILHO
Teu ser tragicamente enternecido,
Em desespero de alma transformado,
Vai através do espaço escurecido
E pousa no seu tumulo sagrado.
E ele acorda, sentindo-o; e, comovido,
Chora ao ver teu espirito adorado,
Assim tão só na noite e arrefecido
E todo de ermas lágrimas molhado!
E eis que ele diz: "Ó Mãe, não chores mais!
Em vez dos teus suspiros, dos teus ais,
Quero que venha a mim tua alegria!"
E só nas horas em que a Mãe descansa,
É que ele inclina a fronte de criança
E dorme ao pé de ti, Virgem Maria!
AUSÊNCIA
Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!
Tua bendita e efêmera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa boa e maternal Paisagem,
Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Cor
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!
E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.
E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se ocultou.
Quando chego à janela, vejo o inverno;
E, à luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.
Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluídos
Traços da tua Imagem, arremedo
Que a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer...
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos...
Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não ver...
A voz da minha dor, da minha queixa,
Em vão, por ti, na fria noite clama!
Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha
Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,
Embora no silêncio mais profundo,
Grita por seu amor: é voz de chama!
E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,
Para onde quer que eu olhe, aqui, além,
A tua Ausência trágica! E no fundo
De mim próprio que vejo? Acaso alguém?
Só vejo a tua Ausência, a Desventura
Que fez da noite a imagem de tua Mãe!
A tua Ausência é tudo o que murmura,
E mostra a face triste á luz da aurora,
E se espraia na terra em sombra escura...
Quem traz o outono ao meu jardim agora?
Quem muda em cinza o fogo do meu lar?
E quem soluça em mim? Quem é que chora?
É a tua Ausência, Amor, que vem turvar
Esta alegria etérea, nuvem, asa
De Anjo que, ás vezes, passa em nosso olhar!
O Sol é a tua Ausência que se abrasa,
A Lua é tua Ausência enfraquecida...
Da tua Ausência é feita a minha vida
E os meus versos também e a minha casa.
TRÁGICA RECORDAÇÃO
Meu Deus! meu Deus! quando me lembro agora
De o ver brincar, e avisto novamente
Seu pequenino Vulto transcendente,
Mas tão perfeito e vivo como outrora!
Julgo que ele ainda vive; e que, lá fora,
Fala em voz alta e brinca alegremente,
E volve os olhos verdes para a gente,
Dois berços de embalar a luz da aurora!
Julgo que ele ainda vive, mas já perto
Da Morte: sombra escura, abismo aberto...
Pesadelo de treva e nevoeiro!
Ó visão da Criança ao pé da Morte!
E a da Mãe, tendo ao lado a negra sorte
A calcular-lhe o golpe traiçoeiro!
Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.
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