domingo, 6 de janeiro de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Dois no Corcovado)


O sol apareceu, como no primeiro dia da Criação. E tudo tinha mesmo ar de primeiro dia da Criação, com o mundo a emergir, hesitante, do caos. Três dias e três noites a tempestade esmigalhara árvores, pedras, casas, caminhos, postes, viadutos, veículos, matara, ferira, enlouquecera. Vistas do alto, as partes esplêndidas da cidade continuavam esplêndidas, mas entre elas as marcas de destruição exibiam-se como chagas de gigante. Os homens entreolharam-se.

Estavam salvos. Salvos e ilhados no alto do Corcovado.

A estrada tinha acabado, o telefone tinha acabado, a energia tinha acabado, e, por azar, não havia rádio de pilha para pegar notícias. Decerto, lá embaixo providenciavam a recuperação das estradas, mas quando se lembrariam deles, pequena fração humana junto da estátua? Daí, lá tem bar, um bar dispõe de lataria e garrafas para um ano. Não, um ano é demais, até uma hora é demais para eles que passaram meia semana isolados e fustigados pelo aguaceiro entre céu e terra.

Os mais moços não quiseram esperar, foram abrir caminho a golpes de imprudência. Mocidade pode mais o impossível do que o possível — e descer naquelas condições era mesmo coisa de doido. Com certeza chegaram a salvamento, como acontece aos doidos. Os que ficaram sentiram inveja e despeito. A turma de trabalhadores não vinha remover as barreiras caídas. O dia passou. A noite foi inquieta. Parentes lá embaixo esperavam aflitos, se é que não tinham morrido.

A mais bela paisagem do mundo — dizem os cartazes de turismo; eles também achavam que sim, mas como suportá-la na manhã seguinte, se a vista aumentava a angústia, pela impossibilidade de alcançar aqueles sítios, pura miragem?

— Evém um helicóptero! — gritou alguém, e veio mesmo, mas passou sem pousar; ia revezar a turma da torre da radiopatrulha, mais adiante. O pessoal do Cristo que se pegasse com o Cristo, a cuja sombra trabalha — pensariam talvez as pessoas que, embaixo, cuidavam de tudo.

Dos dez que ganham a vida na montanha, seis já tinham descido. Os quatro restantes, enervados, não tinham mais de que conversar. O sol brilhando, a cidade se refazendo, eles presos ali, prisão sem grade, à espera de serem lembrados. O pico virou ilha, tudo mais era oceano sem navio.

Dois não aguentaram mais; despediram-se como presidiários antes de tentar fuga. Prometeram levar notícias dos que ficaram: o gerente e o garçom do bar. Estes, por acaso, moram no mesmo subúrbio: Cachambi. Olham sempre na mesma direção, como se, por absurdo, quisessem distinguir o aceno de mão longínqua. Isto os reúne mais; desfaz um vínculo e cria outro, espontâneo. O gerente não é mais um velho patrão, o outro não é mais empregado. Vivem uma só experiência, fora das leis de trabalho. E se o garçom tentasse descer? Ainda é forte, pode tentar. “Você não tem obrigação de me fazer companhia.” Mas ele não tenta, para não abandonar o outro: “Não iria deixar o senhor sozinho”. O gerente nunca imaginara ouvir uma coisa dessas. O próprio garçom ficou espantado depois que a disse. Era pra valer. Amanhã ou depois serão recolhidos — sabemos nós, não eles. Tempo não se mede pelo relógio, mas pelo vácuo de comunicação, pela expectativa sem segurança. E nessa situação, insignificante para nós, ilimitada para eles, dois homens descobrem-se um ao outro.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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