Do fundo de Pernambuco, o pai mandou-lhe um telegrama:
Não saia casa 3 outubro abraços.
O rapaz releu, sob emoção grave. Ainda bem que o velho avisara: em cima
da hora, mas avisara. Olhou a data: 28 de setembro. Puxa vida, telegrama com a nota de urgente, levar cinco dias de Garanhuns a Belo Horizonte! Só mesmo com uma revolução esse telégrafo endireita. E passado às sete da manhã, veja só; o pai nem tomara o mingau com broa, precipitara-se na agência para expedir a mensagem.
Não havia tempo a perder. Marcara encontros para o dia seguinte, e precisava cancelar tudo, sem alarde, como se deve agir em tais ocasiões. Pegou o telefone, pediu linha, mas a voz de d. Anita não respondeu. Havia tempo que morava naquele hotel e jamais deixara de ouvir o “pois não” melodioso de d. Anita, durante o dia. A voz grossa, que resmungara qualquer coisa, não era de empregado da casa; insistira: “como é?”, e a ligação foi dificultosa, havia besouros na linha.
Falou rapidamente a diversas pessoas, aludiu a uma ponte que talvez resistisse ainda uns dias, teve oportunidade de escandir as sílabas de arma virumque cano, disse que achava pouco cem mil unidades, em tal emergência, e arrematou: “Dia 4 nós conversamos”.
Vestiu-se, desceu. Na portaria, um sujeito de panamá bege, chapéu de aba larga e sapato de duas cores levantou-se e seguiu-o. Tomou um carro, o outro fez o mesmo. Desceu na praça da Liberdade e pôs-se a contemplar um ponto qualquer. Tirou do bolso um caderninho e anotou qualquer coisa. Aí, já havia dois sujeitos de panamá, aba larga e sapato bicolor, confabulando a pequena distância. Foi saindo de mansinho, mas os dois lhe seguiram na cola.
Estava calmo, com o telegrama do pai dobrado na carteira, placidez satisfeita na alma. O pai avisara a tempo, tudo correria bem. Ia tomar a calçada quando a baioneta em riste advertiu: “Passe de largo”; a Delegacia Fiscal estava cercada de praças, havia armas cruzadas nos cantos. Nos Correios, a mesma coisa, também na Telefônica. Bondes passavam escoltados. Caminhões conduziam tropa, jipes chispavam. As manchetes dos jornais eram sombrias; pouca gente na rua. Céu escuro, abafado, chuva próxima.
Pensando bem, o melhor era recolher-se ao hotel; não havia nada a fazer. Trancou-se no quarto, procurou ler, de vez em quando o telefone chamava: “Desculpe, é engano”, ou ficava mudo, sem desligar. Dizendo-se incomodado, jantou no quarto, e estranhou a camareira, que olhava para os móveis como se fossem bichos. Deliberou deitar-se, embora a noite apenas começasse. Releu o telegrama, apagou a luz.
Acordou assustado, com golpes na porta. Cinco da manhã. Alguém o convidava a ir à Delegacia de Ordem Política e Social.
“Deve ser engano.”
“Não é não, o chefe está à espera.”
“Tão cedinho? Precisa ser hoje mesmo? Amanhã eu vou.”
“É hoje e é já.”
“Impossível.”
Pegaram-lhe dos braços e levaram-no sem polêmica. A cidade era uma praça de guerra, toda a polícia a postos.
“O senhor vai dizer a verdade bonitinho e logo” — disse-lhe o chefe. — “Que sabe a respeito do troço?” “Não se faça de bobo, o troço que vai estourar hoje.”
“Vai estourar?”
“Não sabia? E aquela ponte que o senhor ia dinamitar mas era difícil?”
“Doutor, eu falei a meu dentista, é um trabalho de prótese que anda abalado. Quer ver? Eu tiro.”
“Não, mas e aquela frase em código muito vagabundo, com palavras que todo mundo manja logo, como arma e cano?”
“Sou professor de latim, e corrigi a epígrafe de um trabalho.”
“Latim, hem? E a conversa sobre os cem mil homens que davam para vencer?”
“São unidades de penicilina que um colega tomou para uma infecção no ouvido.”
“E os cálculos que o senhor fazia diante do palácio?”
Emudeceu.
“Diga, vamos!”
“Desculpe, eram uns versinhos, estão aqui no bolso.”
“O senhor é esperto, mas saia desta. Vê este telegrama? É cópia do que o senhor recebeu de Pernambuco. Ainda tem coragem de negar que está alheio ao golpe?”
“Ah, então é por isso que o telegrama custou tanto a chegar?”
“Mais custou ao país, gritou o chefe. Sabe que por causa dele as Forças Armadas ficaram de prontidão, e que isso custa cinco mil contos? Diga depressa.”
“Mas, doutor…”
Foi levado para outra sala, onde ficou horas. O que aconteceu, Deus sabe. Afinal, exausto, confessou:
“O senhor entende conversa de pai pra filho? Papai costuma ter sonhos premonitórios, e toda a família acredita neles. Sonhou que me aconteceria uma coisa no dia 3, se eu saísse de casa, e telegrafou prevenindo. Juro!”.
Dia 4, sem golpe nenhum, foi mandado em paz. O sonho se confirmara: realmente, não devia ter saído de casa.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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