VIAGEM FUTURA
Um dia aparecerão minhas tatuagens invisíveis:
marinheiro do além, encontrarei nos portos
caras amigas, estranhas caras, desconhecidos tios mortos
e eles me indagarão se é muito longe ainda o outro mundo...
JOGOS PUERIS
O que nos acontece nada tem com a gente
o que nos acontece
são simples acidentes que chegam de olhos fechados
num jogo de cabra-cega
e m
esmo a morte
é aquela conhecidíssima, aquela antiga brincadeira
de fingir de estátuas...
AH, MUNDO...
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
— rotos e felizes! —
por essas estradas do mundo.
PREPARATIVOS PARA A VIAGEM
Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
— a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor...
os próprios Anjos te invejarão.
RETRATO DO POETA NA IDADE INGRATA
A minha alma era uma paisagem hirsuta:
cactos, palmas híspidas,
estranhas flores que atemorizavam (seriam aranhas
carnívoras?) parecia
um texto obscuro com pontuação excessiva:
tudo porque me estavam apontando alguns fios de barba:
e cada fio era uma baioneta-calada contra o mundo:
só
tu
com
a graça aérea de um helicóptero ou de uma libélula
soubeste achar — naquilo — onde o campo de pouso,
soubeste ouvir onde cantava
pura
a fonte oculta...
Só tu soubeste achar-me... e te foste!
SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS
A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ª-feira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem — um dia — uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada
e inútil das horas.
A CASA GRANDE
... mas eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água
com o telhado descendo logo após as fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.
Porém nasci em um solar de leões.
(... escadarias, corredores, sótãos, porões, tudo isso...)
Não pude ser um menino da rua...
Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora.
A casa era maior do que o mundo!
E até hoje
— mesmo depois que destruíram a casa grande —
até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos...
O BAÚ
Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos... Bem no fundo,
uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino
te traz de súbito uma ideia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.
E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!
Fonte:
Mário Quintana. Esconderijos do Tempo.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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