Quando o trem parou na estação, o sol acabava de se esconder. Uma dezena de meninos sujos me cercou. Disputavam entre si o direito de carregar minha maleta, o jornal e até o cigarro que eu fumava. Desfiz-me deste, distribuí para cada deles uma folha do jornal e entreguei a carga mais pesada a um rapaz musculoso.
Ao chegarmos à porta da pensão, acenderam-se as luzes da rua. Um poste aqui, outro acolá. Entre um e outro, notei mais tarde, parecia não haver luz nenhuma. Nem nossas sombras se projetavam ao chão.
Arrependi-me cedo de ter despedido o carregador. Vistoriei o quarto, tomei um banho e saí. Por pouco não me perdi naquele labirinto de ruelas, becos sem saída, florestas de árvores nas praças, coretos, igrejas, capelas. Sim, além da majestosa igreja matriz, outras dez se espalhavam pela cidade. Apesar disso, diziam os jornais, nem na capital se cometiam mais crimes per capita: estranhos casos de suicídio, roubos, homicídios e até estupros horrorosos. Tantas igrejas e tantos pecados, lamentavam.
Eis a razão de minha viagem.
Não, minto. Levou-me àquela aventura a história da existência de uma beata em Palma. Talvez eu conseguisse fazer a melhor reportagem do mês ou mesmo do ano e melhorar minha situação no jornal.
Chamava-se Maria Efigênia e até do nome dela me agradei. Devia contar uns trinta e poucos anos de idade. Na verdade, devia ter sido de uma beleza exuberante nos seus verdes anos, como diziam, porque ainda parecia bela, apesar da vida que levava.
Fazia uns dez anos que Efigênia se havia feito beata, dia e noite a rezar, a cuidar das igrejas, dedicada a todos os santos.
Nas ruas, a molecada se divertia quando ela passava, coberta de véus, abraçada aos missais, amarrada de terços e rosários, vestida da cabeça aos pés, silenciosa, solitária, perdida em si mesma. Divertiam-se os moleques e depois, coitados!, apanhavam como nunca. Porque os pais sabiam com quem mexiam seus filhos: Maria Efigênia era filha da mais importante família de Palma.
Além da meninada, só havia outra classe de gente que ousava dirigir-se à beata: os bêbados. Para cada igreja havia cinco bares na cidade. E a frequência destes talvez fosse maior do que a das casas de pasto espiritual.
Se os pequenos moleques causavam irritação, os frequentadores dos bares chegavam ao exagero de dirigir à beata indecorosas piadas. Ela, porém, seguia seu caminho altaneira, imune às porcarias daqueles perdidos.
Junto aos católicos não consegui nada. Ninguém quis me dar atenção. O padre fez-me um sermão, falou de escândalo. E fui bater nos bares.
No primeiro dia não encontrei um só bêbado capaz de articular meia palavra. E para mim aquilo não bastava. A reportagem da beata eu queria de mil palavras.
– Aquele conhece tudo aqui – disse-me o dono do bar, apontando para um sujeito cabeludo, que cochilava no batente. – É poeta, sabe tudo quanto é verso de cor – informou-me ainda.
– Se me contar tudo em prosa, dou-me por satisfeito – brinquei.
O homem olhou-me assustado e bebeu uma golada de cachaça.
Cheguei cedo no dia seguinte ao bar. E o poeta já havia se servido do quinto copo.
Não sei se ele me contou uma de suas histórias decoradas ou se improvisou a da beata. Não tenho dúvida, porém, de que tudo nele era rimado e metrificado.
Um dia apareceu na cidade um bonito rapaz, um estrangeiro.
E como Maria Efigênia fosse quase uma menina ainda e o tivesse conhecido, por ele apaixonou-se. Meses depois o rapaz foi expulso de Palma. Acusado de dois pecados graves: o de não ser católico e o de seduzir a formosa donzela Efigênia.
Ao saber da expulsão do namorado, a mocinha chorou muito, tornou-se triste, calada, solitária. E como fosse católica e meia, a exemplo de sua família e da maioria dos habitantes da cidade, trocou as brincadeiras por rezas, as amigas pelos santos, sua casa pelas igrejas. Sobretudo pela matriz.
Nesse trecho, o poeta calou-se, bebeu mais e riu.
– Não quer saber mais nada?
Para mim a história tinha chegado ao fim. Mas aquela pergunta me deixou intrigado.
– Conte mais então.
– Pergunte por que a beata frequentava mais a matriz.
Só havia uma explicação: a matriz é a igreja principal, a maior, a mais bonita.
O poeta chamou-me para um canto e concluiu:
– A coitada da donzela
cria que o amado dela
fosse o Cristo do altar:
quando se punha a rezar,
conversava hora por hora
co’o namorado de fora.
A reportagem não me rendeu nada e até perdi uns trocados a caminho da estação – os mesmos meninos sujos me pediram para levar a maleta. Talvez fossem aqueles que apanhavam dos pais por só terem uma diversão – a beata.
Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
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