segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) II



NO SEU TÚMULO

Sobre o seu frio berço sepulcral,
Meu espirito reza ajoelhado;
E sente-se perfeito e virginal
Na sua dor divina concentrado.

Caí, gotas de orvalho matinal!
Astros, caí do céu todo estrelado!
Secas flores do zéfiro outonal,
Vinde enfeitar-lhe o túmulo sagrado!

Ó luar da meia noite, encantamento
De sombra, vem cobri-lo! Ó doido Vento,
Dorme com ele, em paz religiosa...

Sobre ele, ó terra, sê brandura apenas;
Faze-te luz, toma o calor das penas;
Sê Mãe perfeita, boa e carinhosa.

DELÍRIO

Não posso crer na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vê-lo, a cada passo...
É ele? Não. Sou eu que desatino;
É a minha dor sofrida, o meu cansaço.

Delírio que me prendes num abraço,
Emendarás a obra do Destino?
Vê-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mãe? Verei seu rosto pequenino?

Mistério! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! jamais! Quem sabe? Tenho medo!
Que vejo em mim? A treva? a luz futura?

Ah, que a dor infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra criatura!

REMORSOS

Onde contigo, um dia, me zanguei,
É hoje um sitio escuro que aborreço;
E sempre que ali passo, eu anoiteço!...
Ah, foi um crime, sim, que pratiquei!

Quantas negras torturas eu padeço
Pelo pequeno mal que te causei!
Se, ao menos, pressentisse o que hoje sei?
Mas não; fui mau; fui bruto; reconheço!

E sofro mais, por isso, a tua morte,
E dou mais choro amargo ao vento norte,
Mais trevas se acumulam no meu rosto...

Ó vós que neste mundo amais alguém,
Seja linda criança ou pai ou mãe,
Não lhe causeis nem sombra de desgosto!

NO CREPÚSCULO

Nasce a luz do luar dos derradeiros,
Ermos, soturnos píncaros sozinhos...
Andam sombras no ar e murmurinhos
E vagidos de luz... e os Pegureiros
Descem, cantando, a encosta dos outeiros...

Tangendo amenas frautas amorosas,
Seus vultos, no crepúsculo, desmaiam
E assim como os seus cânticos, se espraiam
Em ondas de emoção. As fragorosas
Quebradas que o luar beija, misteriosas
Furnas, bocas de terra, murmurantes,
Arvoredos extáticos orando,
Rochedos, na penumbra, meditando,
Desfeitos em ternura, esvoaçantes,
Pairam também no espaço comovido,
Das primeiras estrelas já ferido,
Todo em luar e sombra amortalhado...

E eu choro sobre um monte abandonado...

E o Fantasma divino da Criança,
Sombra de Anjinho em flor,
Nos longes dos meus olhos aparece,
Como se, por ventura, ele nascesse
Da minha incerta e trémula esperança,
E não da minha firme e eterna dor!

E choro; e além das lagrimas, eu vejo
Aquele doce Vulto pequenino,
Em seu leito de morte e sofrimento;
Jesus martirizado, inda Menino...
E é como cinza morte o meu desejo
E como extinta luz meu pensamento!

Depois, a sua Imagem sofredora
Regressa á Vida, veste-se de aurora;
Os seus lábios sorriem para mim...
E aqueles verdes olhos cristalinos
Abrem-se radiosos e divinos,
E vejo-o então brincar no meu jardim!

Vejo-o como ele foi, como ele existe
No coração da Mãe por toda a vida!
Anjinho tutelar da nossa casa!
A divina Esperança florescida,
Brilhando além de tudo quanto é triste...
Longínquo Alívio, protetora Asa!

Mas de que serve? Eu choro sem descanso,
No meio da tristeza indiferente
Das Cousas que têm a alma sempre ausente...

Só eu na minha dor nunca me canso.

Ó bruteza das Coisas! No infinito
E gélido silencio, eu ouço um grito!
Na funda solidão que me rodeia,
Um ser apenas, tétrico, vagueia...

Quem grita? O meu espirito. E que importa?
É ele a errar no mundo solitário,
Sem principio nem fim, sem pai nem mãe!

Ó céu indiferente! Ó terra morta!
Ó grito de Jesus sobre o Calvário,
A subir no Infinito, cada vez
Mais cercado de trágica mudez,
Mas aflito, mais alto, mais além!...

Cousas que já fizestes companhia
A este espirito meu que, em vós, se via,
Porque me abandonastes? Ermo Vento,
Insonia do ar correndo o Firmamento,
Só vejo, em ti, loucura inanimada,
Revolta inconsciência destruidora!

Alta estrela, na noite, incendiada,
Passarinhos do céu, cantos da aurora,
Já não palpita em vós meu coração...
Sois o silencio, a treva, a solidão.

Além de mim já nada avisto. As cousas,
Arvores, nuvens, serras pedregosas,
São penumbras que á luz do meu olhar
Se dissipam, de súbito, no ar.

De tal forma meu ser se concentrou
Na visão da Criança, que além dela,
Não vejo flor ou ave ou luz de estrela,
Límpido céu azul, verde paisagem!
Dir-se-á que o seu Espectro reencarnou
Em mim, - que não sou mais que a sua Imagem!

SOBRESSALTO

Quantas horas passava contemplando
Seu pequenino Vulto. Era um Anjinho
Dentro de nossa casa, abençoando...
Era uma Flor, um Astro, um Amorzinho.

Um dia, em que ele, ao pé de mim, sozinho
Brincava, estes meus olhos inundando
De graça, de Inocência e de carinho,
De tudo o que é celeste, alegre e brando,

Vi tremer sua Imagem, de repente,
No ar, como se fora Aparição.
E para mim eu disse tristemente:

"Pertences a outro mundo, a um céu mais alto;
Partirás dentro em breve." E desde então
Eu fiquei num constante sobressalto!

ENCANTAMENTO

Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua doce e angelica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlevo perfeito e graça pura!

E á força de sorrir, de me encantar,
Diante de ti, mimosa Criatura,
Suavemente sentia-me apagar...
E eu era sombra apenas e ternura.

Que Inocência! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,

E até meu próprio espirito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!

O QUE EU SOU

Noturna e dúbia luz
Meu ser esboça e tudo quanto existe...
Sou, num alto de monte, negra cruz,
Onde bate o luar em noite triste...

Sou o espirito triste que murmura
Neste silencio lúgubre das Cousas...
Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura
De falecidas formas mentirosas.

E tu, Sombra infantil do meu Amor,
És o Ser vivo, o Ser Espiritual,
A Presença radiosa...
                        Eu sou a Dor,
Sou a trágica Ausência glacial...

Pois tu vives, em mim, a vida nova,
E eu já não vivo em ti...
                        Mas quem morreu?
Foste tu que baixaste á fria cova?
Oh, não! Fui eu! Fui eu!

Horrível cataclismo e negra sorte!
Tu foste um mundo ideal que se desfez
E onde sonhei viver apos a morte!
Vendo teus lindos olhos, quanta vez,
Dizia para mim: eis o lugar
Da minha espiritual, futura imagem...
E viverei á luz daquele olhar,
Divino sol de mistica Paisagem.

Era minha ambição primordial
Legar-lhe a minha imagem de saudade;
Mas um vento cruel de temporal,
Vento de eternidade,
Arrebatou meu sonho! E fugitiva
Deste mundo se fez minha alegria;
Mais morta do que viva,
Partiu contigo, Amor, à luz do dia
Que dourou de tristeza o teu caixão...
Partiu contigo, ao pé de ti murmura;
É magoada voz na solidão,
Doce alvor de luar na noite escura...
E beija o teu sepulcro pequenino;
Sobre ele voa e erra,
Porque o teu Ser amado é já divino
E o teu sepulcro, abrindo-se na terra,
Penetrou-a de luz e santidade...
E para mim a terra é um grande templo
E, dentro dele, a Imagem da Saudade...
E reso de joelhos, e contemplo
Meu triste coração, saudoso altar
Alumiado de sombra, escura luz...
Nele deitado estás como a sonhar,
Meu pequenino e mistico Jesus...
Lagrimas dos meus olhos são as flores
Que a teus pés eu deponho...
Enfeitam tua Imagem minhas dores,
E alumia-te, ás noites, o meu sonho.

Todo me dou em sacrifício á tua
Imagem que eu adoro.
Sou branco incenso á triste luz da lua:
Eu sou, em nevoa, as lagrimas que choro...

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

Nenhum comentário: