sábado, 12 de janeiro de 2019

Nilto Maciel (As Pontas da Estrela)


Os bêbados de Palma ainda diziam besteiras em torno do parto feliz e inesperado da Beata, quando no bar de Pedro Mateiro entrou, correndo, a figura agitada e esvoaçante de Bemtevi, suado e assustado.

– Que aconteceu, homem de Deus? Alguma desgraça?

– Diga logo: caiu alguma igreja?

O novidadeiro encostou-se na parede, acocorou-se e sentou-se no chão sujo de cusparadas e cinzas de cigarro. Deu três suspiros e se disse curado da carreira. Abriu a boca para contar as esperanças dos outros. Nenhuma palavra disse, como a deixar que as badaladas da meia-noite penetrassem no seu assombro. Os grandes relógios das igrejas e os cucos dos sobrados mais uma vez se confundiam na babel do tempo.

Nem bem o alto-falante irradiou o cântico da Ave-Maria, o sol aquela poça de sangue medonha em cima da serra, a notícia do parto da Beata encheu de luto as ladeiras de Palma. Depois, um ventinho frio inundou o ar de pedaços de bilhetes comprometedores, cartas amorosas e outras fúteis anotações, a anunciar a Pedro Mateiro mais uma rodada.

– O menino nasceu...

– De novo?

As garrafas gargalharam nas prateleiras e o polvo de Palma despertou, com seus mil braços a agitarem-se nas janelas.

– Nasceu com uma ...

– Cabeça?

– Não, uma estrela.

Pedro saltou o balcão e se uniu aos bêbados. E todos beberam e pediram cigarros a Pedro. Bem perto e bem longe do bar, janelas e portas se abriram, de repente. Alvoroçavam-se as ruelas de Palma, escura e misteriosa.

– Deixe de doidice, rapaz.

– É verdade, uma estrela bem na testa.

Nenhuma mentira durava mais de um dia na cidade e o padre toda madrugada gritava endemoninhado contra os luxuriosos e levantadores de falso. As velhinhas tremiam sobre os sofridos joelhos e desmaiavam.

Não podia ser. Explicasse a coisa direito. Quem já tinha visto nascer uma pessoa com uma estrela na testa?

– Dizem que é uma estrela de cinco pontas.

– E é ruim?

Como podia saber uma coisa daquelas? Por acaso se chamava Camões ou Cego Aderaldo? Além do mais, não tinha certeza do número exato de pontas. Uns falavam em cinco, outros em seis.

A cada palavra, mais se complicava o narrador. Quiseram saber então qual a pior das estrelas, se a de cinco ou a de seis pontas.

Também isso não sabia explicar Bemtevi. Além do mais, a cada hora nascia mais uma ponta. Sim, pela última informação, já eram dez.

– O que será isso, meu Deus?

– Não sei. Só sei que, quanto mais se contam as pontas, mais elas são.

Abandonaram os copos os bebedores, persignaram-se todos e, ajoelhados, rezaram aos pés do balcão.

– Maldição!

– Obra do Capiroto.

Na calçada, Bicudo dormia desde a boca da noite. A primeira notícia abateu-se sobre sua embriaguez como uma marretada: mais duas talagadas e a baba escorreu e os olhos se cerraram. De novo tombou sobre si mesmo, a maldizer-se. A meia-noite despertou-o do sonho de amor. E ouviu estrelas e retomou o fio perdido da meada.

– É o filho de Efigênia?

– E do gringo.

Podia ser do padre, do padre podia ser. Ou do sacristão, de algum cristão. Ou era filho do cão?

– Homem, não diga isso.

Lembraram-se do fenômeno da estrela na testa. Como podia ser essa tal estrela? Cheia de pontas, brilhante, rosário de contas, cintilante?

Um dedo apontou para o Cruzeiro do Sul e todos os olhos bêbados dançaram no céu estrelado.

– Amarela?

Não se sabia bem a cor. Falou-se primeiro na cor do ouro. Outras cores do arco-íris, porém, já andavam de boca em boca.

– Então não é uma estrela.

Quem ali sabia os mistérios do céu?

– É muito pequena?

– Do tamanho de uma testinha?

Se nada sabia Bemtevi, por que jurava ser uma estrela aquilo que podia ser uma lágrima, talvez um pingo d’água, insignificante grão de areia? Deixasse então de mistérios, ou não dissesse mais nada.

E Bicudo propôs fossem ver o menino.

Não podiam. A casa permanecia fechada a quatro chaves. Do lado de dentro, só a Beata e a parteira, e o menino com sua estrela.

Pedro coçou a cabeça, contou seus bêbados e olhou para a rua por cada uma das portas.

– Você viu o menino?

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

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