quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Contos do Paraná (“A teoria do iceberg”, por Roberto Muggiati)

Meu protetor de tela é um iceberg, passo o dia diante dele. Nenhuma paixão especial por icebergs. Os tons azul-cobalto da foto lembram o céu de Curitiba ao entardecer. Essa imagem do iceberg veio pela internet: uma namorada queria que eu não esquecesse a cor do céu que nos protegia. A namorada passou, a imagem continuou na tela em homenagem à Teoria do Iceberg, do velho Hemingway: “Se escrever apenas a verdade, um escritor pode omitir muitas coisas. O leitor sentirá essas coisas que foram ocultadas com tanta força como se o escritor as houvesse explicitado. A dignidade de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima da água.” O autor da imagem do iceberg também tinha sua teoria. Fez uma montagem de várias fotos para ilustrar o conceito de que “nem tudo o que se vê é necessariamente real.

O céu de Curitiba me leva a outro episódio — a outro céu noturno, e outra namorada, de um tempo bem mais distante. Éramos crianças, parentes remotos, estranhos um ao outro, e de repente nos descobrimos. Numa festa de família, na janela do vigésimo andar de um dos primeiros arranha-céus da cidade, espetado solitário na paisagem. Loucos para viver e falar, nos enlaçamos, ávidos por conhecer um ao outro. (O que conversam os amantes? Eles nunca sabem, eles nunca lembram.) E então, no descampado do aeroporto, vimos  as luzes de um avião que piscavam, cortando o horizonte como notas numa pauta musical. O avião, de destino insondável, tateava com suas lanternas vermelhas o grande mistério do futuro. Comungamos em silêncio a mesma emoção. A esperança de partir para o mundo, quem sabe juntos? Foi nossa epifania — perdoem o clichê. Um biólogo definiria todo aquele cataclismo entre nós como uma mera erupção de feromônios e testosterona. Não importa, a atração era real, como nunca havíamos sentido antes.

Meia-noite com ela e as estrelas — e então a noite acabou. A nossa história seria uma crônica de amantes malsinados, atravessando décadas. Uma estória entrecortada, desencontrada, que me arrastaria por tristes oceanos de lágrimas... Desculpem esse crime de lesa-TI. Sim, a Teoria do Iceberg merece uma sigla, pertence à ciência, é um teorema, a equação que fornece le mot juste (a palavra certa). A emoção tem de estar sempre ali, mas é a maior inimiga do bom texto.

Passamos um ano e meio longe um do outro. Fui morar em Paris, quando voltei ela estava casada. Mal casada, já quase descasada. Numa escapada furtiva à Livraria Ghignone, marcamos um encontro em Guaratuba. Cheguei lá, ela não. Sumiu, desapareceu do meu mapa. Para sempre? Aprendi que nada é para sempre. Em 1968 — o mundo em chamas — eu casado, em São Paulo, dou de cara com ela na Rua Augusta, numa manhã de inverno solar e vento cortante.

— Que coisa incrível! Você por aqui?

— Trabalho na Veja. E você, como vai sua vida?

— Não vai acreditar! Sou aviadora, com brevê e tudo! Vou buscar jatinhos nos Estados Unidos. Outra noite, em Nova York, ouvindo o Gato Barbieri, pensei muito em você...

(Ela conhecia minha paixão pelo jazz. Uma vez, nos tempos inocentes de Curitiba — ela de camisola eu de porre — eu fiz serenata para ela com o saxofone tenor.)

No vento frio da Augusta, minha mulher, ciumenta, cortou o clima. Nem pudemos trocar telefones. E fiquei outros vinte anos sem saber de — não, não vou dizer seu nome... Afinal, isso não se faz num conte à clef (conto de fadas). 

Aos poucos senti toda a extensão de sua doce vingança. Eu não soube defender aquela absurda epifania adolescente, que era tudo para nós. Ela, sim, foi à luta, aprendeu a pilotar, sequestrou o nosso avião e levantou voo com suas luzes vermelhas sumindo na cerração da velha noite curitibana. Eu a via cortando a imensidão dos espaços infinitos. Pensando em mim, quem sabe?

Um amigo me ensinou um dia: não se esforce muito para lembrar as coisas boas, elas podem se desgastar e se perder. Mas, naquele meu triste fim de casamento, eu não pensava em outra coisa — na minha doce e cômica Valentina. Como doía a sua ausência nas noites suicidas do inverno paulistano.

O coração é um músculo flexível. O casamento acabou, outro casamento começou, dois filhos, até cachorros. O matrimônio que nunca sonhei ter. Eterno enquanto durou. Uma noite, livre de novo, num shopping de Curitiba, lançando um livro, ela entra de novo na minha vida, na fila de autógrafos.

— Ainda se lembra de mim?

Desta vez trocamos telefones. Não pilotava mais, estava também livre, totalmente. Marcamos um encontro no Rio. Fui esperá-la no aeroporto do Galeão. Subimos a Serra para o meu chalé em Itaipava. Jantamos no velho Farfarello, era dia 29, pedimos Gnocchi della Fortuna, al cricco e al pesto, com direito a uma nota de un dollaro debaixo de cada prato. Loucos para viver e falar, bebemos duas garrafas de vinho. Em uma hora traçamos os planos de uma vida inteira. Não lembro como dirigi o carro até o chalé. Antes de desmaiarmos na cama, ela ainda perguntou:

— Agora vamos ser felizes?

Acordou-me no meio da madrugada. Queria porque queria descer a Serra ali na hora, fazer logo nossa mudança definitiva para Itaipava. Bêbado e cansado, não resisti. Foi nossa perdição. No meio da descida, despenquei pelo despenhadeiro. Dormi na direção e acordei no fundo do socavão, preso às ferragens. Sobrevivi, com pequenos arranhões. Ela pagou a fatura. Foi jogada para fora do carro e quebrou a coluna em vários pontos. Na queda, tive a impressão de ouvi-la gritar: “Estou voando!”

O acidente aconteceu logo depois do viaduto sobre o rio Rolador. Lembrei da Serra do Rola-Moça do Mário de Andrade, que descreve um casal em fuga. “Como eles riam! E os risos também casavam com as risadas dos cascalhos.” Subitamente, “dão noiva e cavalo um salto, precipitados no abismo.” Poesia numa hora dessas?

Por minha culpa, ela iria passar o resto da vida presa a uma cadeira de rodas. Não fomos finalmente felizes. Eu conseguia suportar a dor até o escurecer, depois a coisa ficava terrível por volta da meia-noite, e às três da manhã era o grande mergulho na noite escura da alma. Pensei em suicídio: lasanha com chumbinho, como aquela atriz da TV. Ou caipivodca de lichia com carrapaticida (uma variante mais sofisticada do antigo Guaraná com formicida.) Ou um salto espetacular de um vigésimo andar: no bilhete de suicida, inverteria a frase de Eliot: “This is the way the world ends — not with a whimper, but a bang...(É assim que o mundo acaba – não com um gemido, mas com um estrondo...) Mas todas as coisas devem passar e o mundo continua.

Você recupera a maior parte de sua vida, como bens salvados de um incêndio. Eu iria continuar por mais tempo, muito tempo talvez — até a hora de cinzelarem na minha lápide o epitáfio, a definição de vida que tomei emprestada de Cole Porter: “It was great fun, but it was just one of those things.”

Ainda fui vê-la uma última vez. Era como falar com uma estátua. Seu olhar parado não dizia nada. Saí para o dia ofuscante, os olhos cegados por uma cortina de lágrimas e sal. O sol, sem alternativa, brilhava sobre o nada novo. E a história acaba aqui. O mundo mata indistintamente os belos, os bons e os bravos. Ela morreu, você vai morrer e eu vou morrer. É tudo o que posso prometer.
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Roberto Muggiati (Curitiba, 1938) começou a carreira na redação da Gazeta do Povo — completou 60 anos de carreira em março de 2014. Estudou no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, trabalhou na BBC de Londres, colaborou no SDJB e na revista Senhor, além de editor de Manchete, Veja e Fatos e Fotos. Há 45 anos escreve sobre música e política — e a relação entre as duas: de Mao e a China (1968) a Improvisando soluções (2008), passando por Rock/O grito e o mito (1973) e pelo romance A contorcionista mongol (2000) — e mais a caminho.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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