A pergunta se justifica, não foram apenas os gatos, os cachorros e a bicharada miúda que preencheram a parte lúdica de minha vida. Os cavalos também têm grande relevância nesse setor.
Um deles até já foi citado, ou seja, o que veio buscar socorro, chegando-se, sem cerimônias, ao portão, para que cuidasse dele. E a lembrança desse cavalo ferido puxa outras que, por momentos, tiveram relevância e enfeitaram boa parte de minha existência.
Relato alguns momentos de devaneio, expressos numa outra crônica intitulada: - "Férias na Roça", também já chegada à imprensa.
FÉRIAS NA ROÇA
Quanta saudade! Saudade das minhas férias na roça! Das cavalgadas matinais na fazenda do Pinhal, cedinho, quando
O orvalho ainda brilhava nas folhas adormecidas, à espera de que o sol as viesse despertar!
Saudade da algazarra dos pássaros madrugadores... Saudade do estalar da lenha sob a chapa do fogão que amparava o bule do café, enquanto o aroma familiar se espalhava pelos cômodos do velho casarão da Fazenda do Pinhal, lá para as bandas de Itapetininga, a esgueirar-se pelas janelas, a competir com o aroma adocicado das flores do jardim.
Que saudade, também, do velho Lucrécio - passos lentos, carapinha branca, voz pausada e mansa... Nas noites embuçadas em mistério, eletrizava a criançada sentada à sua volta, olhos arregalados, a ouvir suas histórias, suspensa nos "causos" por ele contados, que envolviam sacis, lobisomens, assombrações e tanta coisa mais que acabava por perturbar a mansuetude do sono dos anjos.
Lucrécio era dessas pessoas que não podem faltar ao cenário de uma fazenda que se preze.
Alto, magro, pele curtida de sol e alma de algodão... Se Lobato o tivesse conhecido, certamente haveria um Lucrécio no "Sítio do Pica-Pau Amarelo".
Ainda garotinha, mas já com veleidades de boa amazona, pedia-lhe que encilhasse o meu cavalo, nunca o mais manso, e, Lucrécio recomendava, sério, de dedo em riste: – "Cuidado minina. Num pode galopeá... num pode, viu? I num si meta no mato, qui tem munta cobra pur lá... daquelas perigosa... cheia de veneno!" - Lucrécio arregalava os olhos para dar mais ênfase ao que dizia.
E eu apenas assentia com a cabeça, sabendo que nem tudo iria ser perfeitamente cumprido.
Ah! O velho Lucrécio, que nos ensinava a valorizar a poesia dos aboios... o canto desafinado e dolente de um carro-de-boi... O ranger festivo das porteiras, quando se abriam... E a pancada seca de um adeus, quando se fechavam por detrás de nós.
Lucrécio juntava a criançada da vizinhança e nos levava, em bando, a catar ninhos de pinhão e de ovos... A colher laranjas... E, também, aquelas jabuticabas brilhosas, que, parecendo envernizadas, enverrugavam os troncos e os galhos das jabuticabeiras.
Ensinava-nos a ouvir, bem de perto, o pipilar dos passarinhos nos ninhos, mas... sem tocá-los, já que sem esses cuidados aqueles ninhos poderiam ser abandonados e os filhotes expostos ao repúdio dos pais.
Quanta e quanta saudade da Fazenda do Pinhal, lá para os lados de Itapetininga, moldura preciosa da paisagem da minha infância! Seus proprietários - Sr. Leonardo e esposa, dona Nenê. Ela, espanhola, prima de minha mãe. Ele, de família italiana.
Lembro-me da roça viçosa, de onde vinham os verdes que enfeitavam nossa mesa... E daquela fonte gorgolejante, escondida entre a ramagem, sempre a oferecer linfa pura e fresca... Lembro-me bem do balido das cabras e dos carneiros de pernas finas, acolchoados de lã... Das vaquinhas leiteiras, que nos brindavam com bigodes de leite morno... E, também, do extenso algodoal... Semelhante a imenso campo nevado que nem o sol a pino conseguia derreter!
E me assalta, então, aquela saudade doída do meu cavalinho Expresso. Ele seria o cobiçado presente dos meus quinze anos... Negro "como a asa da graúna", lépido como um pé de vento... a correr pelos campos, onde o veneno de uma urutu-cruzeiro cruelmente o roubaria de mim!
Enfim... Quanta saudade daquelas noites forradas de estrelas, (hoje engolidas pela poluição) quando ainda era possível ouvir a brisa sussurrar suavemente entre os pinheiros a lembrar-nos que a vida passa depressa... Tão depressa quanto a água do rio, que a murmurejar segue sempre em frente... Para com certeza nunca mais voltar!
E aí está, retratado, en pasant, nesta crônica, mais um nome caro e saudoso, dono de quatro patas indóceis, o meu - Expresso!
Nome daquele querido cavalo, imaginado e amado à distância, e que, afinal, embora fruto de uma promessa cujo cumprimento fora aguardado com tanto carinho, acabou conhecido apenas através de um sonho frustrado e de uma foto que, inconscientemente, mais acirra a dor de o saber quase viável. Tudo por conta de um doloroso instante que o tornou definitivamente irrealizável.
Expresso tinha até baia garantida, já alugada por meu pai, na Hípica de São Vicente. Inteiramente negro, o pelo do "meu querido" Expresso tinha um brilho muito especial. Na testa, entre as orelhas, uma única e derradeira pincelada branca, como se o artista que o criou, feliz com a perfeição da obra, quisesse imitar aquela martelada cheia de orgulho, dada por Miguel Ângelo no joelho de uma de suas obras primas, ao dizer-lhe: - Parla! - Tal como se a perfeição daquele seu Moisés, para completar-se, exigisse apenas que falasse!
Assim era o "meu" Expresso! Pelo menos, para mim!
Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.
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