terça-feira, 28 de novembro de 2023

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 10 –


FIO PARTIDO

I
Fugir à mágoa terrena
E ao sonho, que faz sofrer,
Deixar o mundo sem pena
Será morrer?

Fugir neste anseio infindo
À treva do anoitecer,
Buscar a aurora sorrindo
Será morrer?

E ao grito que a dor arranca
E o coração faz tremer,
Voar uma pomba branca
Será morrer?

II
Lá vai a pomba voando
Livre, através dos espaços...
Sacode as asas cantando:
“Quebrei meus laços!”

Aqui, n’amplidão liberta,
Quem pode deter-me os passos?
Deixei a prisão deserta,
Quebrei meus laços!

Jesus, este voo infindo
Há de amparar-me nos braços
Enquanto eu direi sorrindo:
Quebrei meus laços!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

GENTIL

Como é gracioso e lindo o pequenino louro
Que às vezes, à tardinha, eu vejo docemente
Passar junto de mim como um sorriso de ouro,
Anjo que vem do céu na luz do Sol poente.

Como é gracioso e lindo! Eu cuido ver um sonho,
— Um sonho cor da aurora e belo como o mar —
Quando os olhos sem luz entristecidos ponho
Na pupila gentil daquele meigo olhar.

O seu cabelo guarda a cor serena e doce
Da pálida estrelinha ao despontar do dia.
Talvez que um anjo diga, ao vê-lo: “desmanchou-se
O louro resplendor do filho de Maria!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

HOJE

Fiz anos hoje... Quero ver agora
Se este sofrer que me atormenta tanto
Me não deixa lembrar a paz, o encanto,
A doce luz de meu viver de outrora.

Tão moça e mártir! Não conheço aurora,
Foge-me a vida no correr do pranto,
Bem como a nota de choroso canto
Que a noite leva pelo espaço em fora.

Minh’alma voa aos sonhos do passado,
Em busca sempre desse ninho amado
Onde pousava cheia de alegria.

Mas, de repente, num pavor de morte,
Sente cortar-lhe o voo a mão da sorte...
Minha ventura só durou um dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

LUZ E SOMBRA

Vamos seguindo pela mesma estrada,
Em busca das paragens da ilusão;
A alma tranquila para o céu voltada,
Suspensa a lira sobre o coração.

Ris e eu soluço... (Loucas peregrinas!)
E em toda parte, enfim, onde passamos,
Deixo chorando os olhos das meninas,
Deixas cantando os pássaros nos ramos.

Porque elas amam tua voz canora,
Ó delicado sabiá da mata!
E eu lembro triste a juriti que chora
E a voz dorida em lágrimas desata.

Gostam de ver-te o rosto de criança
Limpo das névoas de um martírio vago,
O lábio em riso, desmanchada a trança,
No olhar sereno a candidez do lago.

Até perguntam quando sobre a areia
Em que tu pisas vão nascendo rosas:
“Bela criança, tímida sereia,
Irmã dos sonhos das manhãs radiosas.

Por que trilhando a terra dos caminhos,
Onde o teu passo faz brotar mil flores,
Esta velhinha vai deixando espinhos
E um longo rastro de saudade e dores?”

Não lhes respondas... Pela mesma estrada
Sigamos sempre em busca da Ilusão;
A alma tranquila para o céu voltada,
Suspensa a lira sobre o coração.

Vamos; desprende a doce voz canora,
Que ela afugenta da tristeza o açoite;
E, enquanto elevas o teu hino à aurora,
Eu vou rezando as orações da noite…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

LÍDIA

Feliz de quem se vai na tua idade,
Murmura aquele que não crê na vida,
E não pensa sequer na mãe querida
Que te contempla cheia de saudade.

Pobre inocente! Se alegrar quem há de
Com tua sorte, rosa empalidecida!
Branca açucena inda em botão, caída,
O que irás tu fazer na eternidade?

Foges da terra em busca de venturas?
Mas, meu amor, se conseguires tê-las,
Decerto, não será nas sepulturas.

Fica entre nós, irmã das andorinhas:
Deus fez do céu a pátria das estrelas,
Do olhar das mães o céu das criancinhas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

MORTA

Dos braços da mãe querida
Desceu Laura à sepultura:
Morreu na manhã da vida,
Criancinha ainda e tão pura!

Não viu desabrochar-lhe n’alma
A aurora dos quinze anos;
Fugiu inocente e calma
Do mundo cheio de enganos.

Temeu, pobre mariposa!
O encanto louco das brasas,
Pois, na friez de uma lousa,
O arcanjo não queima as asas.

De todo o choroso dia
Só nos resta na lembrança,
Como visão fugidia
Daquela virgem criança:

Um caixãozinho funéreo,
— Abismo de nossas dores —
Conduzido ao cemitério
Como uma cesta de flores.

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. 
Disponível em Domínio Público.

Nenhum comentário: