domingo, 19 de novembro de 2023

O nosso português de cada dia (Tudo normal)


"Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual..." Lembra? "Maluco beleza", sucesso inteligente de Raul Seixas. O que é ser normal? O que é uma situação normal?

Vamos ao dicionário: "1. Que é segundo a norma. 2. Habitual, natural".

Pois bem. Na última terça-feira [02/12/97], uma greve de motoristas e cobradores obrigou o prefeito de Sâo Paulo a suspender o rodízio dos carros. No rádio, um repórter disse que, "por decisão do prefeito, os automóveis de placas com final 3 e 4 podem circular normalmente". Normalmente? Ou anormalmente? Se levarmos em conta que a norma é que esses automóveis não circulem numa terça-feira, é mais do que óbvio que sua circulação foi anormal.

O fato é que existem muitas expressões que empregamos quase mecanicamente, às vezes por puro hábito, às vezes por parecerem requintadas. No caso de normalmente, expressão que - confesso — me dá arrepio, parece que as pessoas deram à palavra o sentido de "sem problema" ou algo semelhante: os carros podem circular sem problema.

Uma das expressões empregadas por quem quer ser ou parecer requintado é a ultra-intragável "a nível de", usada para tudo, quase sempre sem nenhum sentido. 

Uma funcionária de uma agência de viagens me disse que "a nível de aéreo, o senhor pode escolher entre...". Depois me disse que "a nível de hotel...". 

Um  médico afirmou que "o jogador sofreu uma contusão a nível de joelho". 

E alguém do Ministério da Agricultura garante que "a nível de feijão, a safra vai bem". Sem comentário.

Nesses casos, a expressão "a nível de" é tão útil quanto água em pó. A mesma inutilidade se vê na praga do "inclusive": "Estive na festa, inclusive vi sua prima". 

O vício é cão arraigado que as pessoas chegam a dizer que "o presidente inclusive incluiu no projeto o fim da estabilidade". 

Não é preciso muito esforço para usar adequadamente essa palavra, que — não custa lembrar — é o contrário de "exclusive": "Todos assinaram, o diretor inclusive".

Para fechar o time das pérolas, a deliciosa "enquanto". Não dá para engolir alguém dizendo "Eu, enquanto mulher, defendo...". Por que "enquanto mulher"? Será que o estado não é duradouro, definitivo? Enquanto indica basicamente ideia de simultaneidade: "Enquanto ele dorme pesado, eu rolo sozinha na esteira", diz a poética "Sem açúcar", de Chico Buarque.

Um outro vício é o de usar "enquanto que"; "O Palmeiras enfrenta o Santos, enquanto que o Atlético enfrenta o Internacional". Não caia nessa. Basta dizer "enquanto". E isso.

Por um dos mistérios que talvez nem a informática saiba explicar, em alguns exemplares da Folha de S.Paulo a última coluna [27/11/97] trazia a palavra "portanto" grafada em duas etapas (por tanto).

Boa ocasião para esclarecer o problema. Ou para não esclarecer nada, já que nem tudo em língua tem justificativa lógica. 

Como explicar que "por isso" é separado e "portanto" é junto? Grava-se a grafia e pronto. "Por isso" e "portanto" tem significado equivalente, mas grafia diferente.

Publicado na Folha de São Paulo em 04/12/97

Fonte: Pasquale Cipro Neto. Inculta & Bela. SP: Publifolha, 1999.

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