terça-feira, 14 de novembro de 2023

Contos das Mil e Uma Noites (Um califa estranho)

Conta-se que, certa noite, o califa Harun Al-Rachid, sofrendo de insônia, mandou chamar seu vizir Jafar Al-Barmaki e seu guarda-costas Masrur e disse-lhes: “Tenho o coração oprimido. Para me distrair, gostaria de errar pelas ruas de Bagdá e chegar ao Tigre.” 

Imediatamente, vestiram-se todos de mercadores e andaram até o rio. Lá encontraram um barqueiro velho e disseram-lhe: “Ó velho, eis um dinar. Poderias levar-nos no teu barco pelo rio para gozarmos o frescor da brisa?” 

- Qual é o objetivo de vosso pedido, senhores? E qual é a graça? Não conheceis as ordens? “É proibido a grandes e pequenos, jovens e velhos, nobres e plebeus, navegar no Tigre. Quem desobedecer terá a cabeça cortada.” Não vedes o barco do califa dirigindo-se para cá? 

Surpresos, perguntaram-lhe: “Estás certo de que o próprio califa está no barco?” 

- Existe alguém em Bagdá que não conhece o califa Harun Al-Rachid? Sim, é ele que está no barco com seu vizir Jafar e o portador de sua espada, Masrur. 

Harun Al-Rachid, que nunca dera as ordens mencionadas e ficara afastado do rio o ano todo, interrogou Jafar com os olhos. O vizir, que estava igualmente intrigado, disse ao barqueiro: “Eis dois outros dinares. Leva-nos até aquela sombra para que possamos ver o califa sem sermos vistos.” 

Após alguma hesitação, o barqueiro levou-os e escondeu-os por baixo de um arco. De lá viram o barco real passar com luzes, movimentos e escravos dançando e cantando. Num trono de ouro sentava-se um jovem, suntuosamente vestido, e tendo à sua direita um homem estranhamente parecido com Jafar e, à sua esquerda, o suposto Masrur, segurando uma espada nua. 

– Velho, perguntou o califa ao barqueiro, tens certeza de que o califa passeia no rio nesse barco iluminado todas as noites? 

- Ele tem feito isso todas as noites nos últimos doze meses. 

– Somos estrangeiros nesta cidade, disse o califa, e gostamos de ver coisas curiosas. Se eu te der dez dinares, esperarás por nós amanhã aqui nesta hora? 

O barqueiro agradeceu e prometeu ser fiel ao compromisso. Na noite seguinte, os três dignitários voltaram e, levados pelo barqueiro, esconderam-se debaixo do arco e observaram o barco iluminado passar. 

- Ó vizir, disse Harun Al-Rachid, nunca teria acreditado no que estou vendo se me tivessem contado. E virando-se para o barqueiro, disse-Ihe: “Eis outros dez dinares. Segue aquele barco e não tenhas medo de ser visto, pois estamos na escuridão e eles, em plena luz. Gostaríamos de ver aquela iluminação de mais perto e por mais tempo.”

Logo depois, viram o falso barco real atracar e seus ocupantes desembarcarem e entrarem num grande parque onde se puseram a cantar, dançar e divertir-se. O califa e seus dois companheiros também desembarcaram, entraram no parque e se misturaram com os outros. Mas alguém reconheceu-os como estranhos ao grupo e levou-os até o pseudocalifa. 

Perguntou-lhes o califa: “Como e por que viestes aqui?” 

Responderam: “Somos mercadores estrangeiros que visitamos esta cidade pela primeira vez. Estávamos passeando e entramos neste parque sem saber que era proibido entrar nele.” 

- Já que sois estrangeiros, sede nossos hóspedes, disse o estranho califa. Senão, teria que mandar cortar-vos a cabeça. 

O convite foi aceito  e entraram todos num palácio tão suntuoso quanto o palácio do califa. A festa prosseguiu com danças, canções, bebidas e guloseimas. No lado direito do salão, uma porta abriu-se e dois negros entraram carregando sobre as espáduas um trono de marfim no qual sentava-se uma jovem escrava tão brilhante quanto o sol. Estava tocando o alaúde e cantando: 

Como pudeste encontrar a paz quando eu estava longe e infeliz? 
Como pudeste encontrar bálsamo quando eu estava perto e partindo? 
Ai de mim! Vazio está o quarto perfumado onde espera em vão nossa cama colorida. 
E vazia está a sala de mármore onde morrem os ecos das canções de amor. 

Assim que o falso califa ouviu esta canção, rasgou a roupa e desmaiou. Harun Al-Rachid e seus companheiros repararam que seu corpo estava coberto de marcas de flagelo.

 - Pena que um jovem tão bonito carregue esses estigmas que o denunciam como um criminoso fugitivo, disse o califa.

Mamelucos apressaram-se em acordar o jovem e cobri-lo com vestidos tão suntuosos quanto os que rasgara. 

- Pergunta-lhe a causa dessas marcas, pediu o califa a Jafar. Mas Jafar opinou que seria melhor não se precipitar para não despertar suspeitas. 

- Pergunta, insistiu o califa. Senão teu corpo estará buscando uma cabeça quando voltarmos ao palácio. 

Jafar obedeceu. O jovem sorriu e disse: “Já que sois estrangeiros, contar-vos-ei minha história. Ela é tão estranha que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, serviria de aula a quem gosta de instruir-se.” E começou: “Meus senhores, eu não sou o Comandante dos Fiéis, mas apenas Mohamed-Ali, filho do síndico dos joalheiros de Damasco. Quando meu pai morreu, legou-me muito ouro e prata, inúmeras pérolas, rubis e esmeraldas. Legou-me também edifícios, terras, jardins, lojas e este palácio com seus escravos e escravas. 

“Um dia, estava na minha loja quando vi apear de um cavalo arreado uma jovem de beleza lunar. Entrou acompanhada de seus servidores, e perguntou-me: Não és Mohamed-Ali o joalheiro?” Respondi: “Não sou apenas Mohamed-Ali. Sou também teu escravo.”

“- Terias algum adorno bonito que possa agradar-me? 

“Mostrei-lhe os mais belos colares que tinha. Nenhum lhe agradou. Lembrei-me então que meu pai comprara certa vez um colar de inigualável beleza que guardara num cofre especial. Trouxe-o. Assim que a jovem o viu, exclamou: “É este o colar que sempre procurei, quanto custa? 

“- Meu pai pagou 100 mil dinares por ele. Se te agrada, terei prazer em oferecer-te de graça. 

“- Aceito-o pelo preço original e mais 5 mil dinares a título de juros, replicou a jovem com um sorriso. Por favor, traze-o até minha residência e lá receberás o preço. 

“Mandei meus escravos fecharem a loja e segui-a. 

“Quando cheguei, esperava-me no seu aposento sem véu, sentada num trono de ouro, com meu colar em volta de seu pescoço. Vendo-a assim, senti meus miolos fundirem e a fortaleza de meu coração desmantelar-se. 

“A senhora acenou à suas escravas para que saíssem, veio até mim e disse: “Mohamed-Ali, luz de meus olhos, amo-te; e tudo que fiz hoje era apenas uma manobra para trazer-te até aqui.”

“Deixou-se cair nos meus braços, banhando-me no langor de seus olhos. Beijei-a, enquanto ela empurrava seus seios contra mim. Compreendi que não devia recuar e quis fazer o que tinha que ser feito. Mas no momento em que o menino, já completamente acordado, clamava lascivamente pela mãe, a jovem disse-me: “Que pretendes fazer com ele, meu senhor? Guarda-o, porque minha casa não está aberta. Alguém terá que quebrar a porta. Se pensas que estás lidando com alguma mulher comum, desengana-te. Sou a filha de Yahia Ibn Khalid Al-Barmaki, irmã do vizir Jafar. E sou virgem.” 

“Ao ouvir essas palavras, meus senhores, mandei o menino voltar para seu sono e desculpei-me por ter desejado que ele participasse da hospitalidade estendida a seu pai. 

“- Nada tens que lamentar, disse a moça. Chegarás ao que queres, mas pelo caminho legal. Gostarias de casar-te comigo? 

“Respondi que nada me agradaria mais. Imediatamente, mandou chamar o cádi e as testemunhas e declarou-lhes: “Eis Mohamed-Ali, filho do síndico. Pediu-me em casamento e ofereceu-me este colar por dote. Aceitei e consinto.” Nosso contrato de casamento foi redigido e assinado na hora e fomos deixados a sós. 

“Quando a despi, vi que era realmente uma pérola não-furada, um cavalo que nenhum cavaleiro montara. Passei com ela uma noite que resumiu todas as alegrias de minha vida. “Vivemos assim um mês inteiro. No começo do mês seguinte, disse-me certa vez: “Devo ir ao hammam (banho turco) por poucas horas. Jura que não te levantarás desta cama até que volte.” Jurei, e ela saiu. 

“Ora, quis o destino que, minutos depois, chegasse uma anciã e me dissesse: “Ó Mohamed-Ali, a senhora Zubaida, a esposa do Comandante dos Fiéis, enviou-me para pedir-te que fosses imediatamente ao palácio, pois deseja falar-te.” Respondi: “Senhora Zubaida honra-me com esse pedido, mas não posso sair de casa até o regresso de minha mulher.” 

“- Meu menino, disse a velha, aconselho-te a atender sem demora a dona Zubaida em teu benefício, a menos que queiras fazer dela tua inimiga. Sua inimizade é perigosa. 

“Atendi, esperando que minha mulher compreendesse e me desculpasse. A senhora Zubaida recebeu-me com um sorriso e perguntou: “Luz de meus olhos, não és o amante da irmã do vizir?” 

“- Sou teu escravo, respondi. 

“- Em verdade, não exageraram em descrever o charme de tuas maneiras e de tua voz. Estou satisfeita. Mas quero que cantes alguma coisa para mim. 

“Quando fui libertado e voltei para casa, encontrei minha mulher dormindo. Deitei a seu lado e comecei a acariciar-lhe as pernas. Mas ela me deu um pontapé tão violento na virilha que caí da cama. 

“Traidor perjuro!”, gritou. “Quebraste teu juramento e foste visitar a senhora Zubaida! Não posso ir ensinar-lhe a não debochar dos maridos de outra mulheres. Por isso, pagarás por ambos.” E chamou o chefe de seus eunucos, o terrível Sauab, e disse-lhe: “Corta a cabeça deste traidor.” “

Nesse momento, todos os escravos da casa, que eu costumava tratar com bondade, acorreram e solicitaram sua compreensão: “Como iria ele adivinhar que uma simples visita a dona Zubaida iria desagradar-te tanto? Ele desconhecia a rivalidade e inimizade que existe entre vós duas. Por favor, trata-o com clemência. 

“Pouparei a sua vida, concedeu ela finalmente. “Mas deixarei no seu corpo uma lembrança indelével de sua traição.” E mandou infligir-me as torturas de que vedes os vestígios.

“Quando me restabeleci, vendi tudo que tinha, comprei esse grande barco e quatrocentos escravos e escravas, disfarcei-me de califa e entreguei-me à alegria de viver, ao canto e à dança. Passei assim um ano inteiro, tentando esquecer as consequências que sofri por ter-me intrometido sem querer numa briga de mulheres”.

Após ouvir esta história, o califa voltou para seu palácio, preocupado em encontrar um meio de reparar a injustiça feita àquele homem bom. No dia seguinte, revestido de sua autoridade, mandou vir Mohamed-Ali e disse-lhe:

“Gostaria de ouvir de tua própria boca a história que contaste ontem à noite a três mercadores estrangeiros.” 

Surpreso, Mohamed-Ali repetiu a história. Perguntou-lhe o califa: “Ainda amas a tua mulher e a queres de volta?” 

- Tudo que recebo das mãos do califa é bem-vindo. 

Então disse o califa a Jafar: “Traze-me tua irmã.” 

Quando a mulher chegou, disse-lhe o califa: “Ó filha de Yahia, nosso fiel emir, eis Mohamed-Ali. O que passou, passou. Neste momento, quero dar-te a ele como esposa.” 

- Os presentes de nosso senhor são sempre generosos. O califa mandou vir o cádi e as testemunhas. Os dois jovens foram casados de novo, e o califa fez de Mohamed-Ali um de seus amigos mais íntimos.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

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