Enila acordou bem disposta e com uma ideia fixa: “ - Hoje eu vou cavalgar. E ninguém vai me impedir.” E foi o que fez após o café. Correu até o estábulo, escolheu um baio já meio antigo, mas forte, robusto. E partiu para apreciar a paisagem, que já conhecia até os detalhes, mas que agora parecia mais bela. O céu, os campos, as flores, ganharam mais cor. Esse é o efeito das novidades que agradam: parecem cintilar tudo o que está acerca da pessoa. Às vezes, quase ofuscam o olhar e fazem enxergar além do infinito. Já, em outras ocasiões, cegam, colocando vidas em iminentes riscos.
As novidades são como espelhos, portais mágicos, que podem libertar ou aprisionar. Mesmo assim, todos querem, porque rotina cansa. E não há problemas nisso, só não se pode esquecer dos perigos que podem surgir de algumas novidades...
A cavalo, Enila percorreu toda a fazenda, e fora dela. Foi até o armazém do seu Feliciano, encheu uma sacola de doces, voltou para a estrada retomando a montaria. “- O que deu nessa guria?” – pensou o dono do armazém, que não lembrava ter visto a moça a cavalo, ainda mais desacompanhada, sorridente, comprando doces.
Enila foi até um vilarejo próximo, onde viviam famílias muito carentes para presentear as crianças. O lugar ficava um pouco afastado das atividades das fazendas... Algumas crianças estavam a brincar na rua... Os meninos a jogar futebol, e as meninas a se entreter com bonecas velhas. Ao vê-la se aproximar, a gurizada pausou as brincadeiras, já que não costumavam receber visitas com aparência de gente rica.
Enila os cumprimentou, buscou saber quem eram as mães dos piazidos* e fez a distribuição dos doces, os quais receberam com brilho nos olhos e largo sorriso. Um dos meninos disse para os outros: “Acho que faz quase um ano que não ganhava doces tão gostosos.” Enila escutou, e uma lágrima de emoção escapou do seu olhar, rolando ligeira em sua face cheia de ternura. Já ouvira falar daquelas famílias, a maioria descendentes de ex-escravos, sem trabalho, sem padrinhos, viviam apenas do pouco que podiam plantar no terreno de casa. Pedaços de chão que não lhes pertenciam de fato, mas que não comprometiam o espaço ocupado pelo gado ou pelas plantações. Todavia sabiam que a qualquer hora algum dono poderia pedir que se retirassem. Então, além de conviverem com a pobreza, com a falta de estudos, já que ali não havia escola para as crianças, ainda tinham de suportar o temor de irem parar na rua, sem terem para onde ir.
De tempos em tempos algumas pessoas formavam mutirão para levar cobertores e cestas básicas aos necessitados, mas esse tipo de evento solidário era raro, portanto, pouco esperado pelos moradores do lugar.
Enila ficou perplexa com o que viu. E pensou em aliar-se à Isadora para ajudar aquelas famílias.
Ao se despedir, uma senhora, aparentemente muito idosa, com suas frágeis mãos trêmulas tomou o rosto de Enila e beijou sua testa. - “Obrigada por lembrar da gente, ‘fia’!” – disse ela, baixinho. Aquela senhora escondia, entre rugas profundas, um olhar profundo... Um poço escuro que parecia conhecer todas as dores do mundo. Com o coração acelerado e nó na garganta, Enila montou o cavalo e tomou o caminho de volta para casa. Repentinamente o animal ficou arisco. E a moça, sem conhecer as artimanhas para contê-lo, precisou fazer algumas paradas. Teve que fazer parte do trajeto a pé.
Em casa, deram por sua falta. Seus pais estavam tensos. E Vó Gorda pediu ao capataz que verificasse se todos os cavalos estavam na fazenda.
- Vá depressa, Arlindo – disse ela.
- Qual o porquê de tanta preocupação? - a patroazinha deve ter se perdido das horas conversando com a amiga, logo retorna.
- Eu vi... – disse a Vó em tom de suspense.-
– Viu o quê? - perguntou o senhor Fiore.
- A guria Enila ainda era pequena quando me veio a visão de que ela não poderia montar cavalos. Caso desobedecesse, poderia sofrer um grave acidente.
– Bobagem, Vó, esses “presságios” são alucinações. Nada disso é verdade – retrucou o capataz Arlindo.
- Isso não importa agora. O que interessa é que minha filha nunca some por longas horas. – disse dona Eliana.
- De toda forma, vamos verificar se há algum cavalo ausente. – disse o senhor Fiore a Arlindo.
Ao darem pela falta de um dos cavalos mais bravios, eles se entreolharam, pegaram o jipe e partiram em busca de Enila, que é encontrada sozinha caída no meio da estrada.
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* Piazidos: termo usado no sul do Brasil, que significa meninos pequenos, moleques, piás.
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continua…
Fonte: Texto enviado pela autora.
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