Naquela hora calmosa do dia, necessitava-se de muita energia para não permitir no organismo o domínio da lassidão. O aspecto marasmático da vila, de ruas sujas e desabaladas; a tepidez do vento que, depois de marombar malucamente pelos ares, vinha provocar mais exsudação pelos poros umedecidos; a monotonia estrídula das cigarras, fazendo com seu canto a apologia da sesta; o rio das Cinzas, espraiando com preguiçosa lentidão as pequenas ondas que os peixes provocam, pulando; o rechinar constante de algum carro de bois, arrastado pachorrentamente pelas estradas cheias de pedregulhos fuzilantes ao sol ardente; tudo, enfim, servia para derramar indolência ao redor da gente.
Rara a pessoa que saía de casa, ou rejeitava qualquer sombra amena. Ninguém, por vontade própria, se dispunha a afrontar o mormaço horroroso. Só faziam o sacrifício os que, por dever de ofício, tinham de andar mesmo pelas ruas. Exemplo vivo desses indivíduos-mártires era o Gumercindo Carroceiro que, naquele momento, chicoteava furiosamente o ar e descia a rua grande, frouxando as rédeas em um alarido de mil demônios.
Ao chegar em frente a uma casa que trazia nas paredes caiadas os seguintes dizeres:
CASA ADRIANO
Armazém de secos e molhados
Sofreou os animais. Desceu estrepitosamente. Ao transpor a porta, porém, fechou a carranca. É que, atrás do balcão, Adriano ressonava, deliciosamente despreocupado, com a cabeça metida entre os braços.
Gumercindo tossiu grosso. Mas o negociante continuou dormindo.
Gumercindo cruzou os braços, sacudindo a cabeça. Estalou o chicote no ar e nada de o outro se mexer. Gumercindo cruzou os braços novamente. Franziu a testa salpicada de bolhazinha de suor. Nem isso adiantou. Continuava na mesma aquela soneca beatífica.
Gumercindo, impaciente, gritou:
— Seu Adriano! Ô, seu Adriano!
O negociante, pouco a pouco, foi abrindo os olhos, levantando a cabeça, esticando os braços, até culminar em um espreguiçamento total e escandaloso.
Braços cruzados, o carroceiro contemplava inflexível o despertar daquele primata que sabia as quatro operações e era vendedor de secos e molhados nas plagas tomazinenses. E quando Adriano, depois de esfregadela nas pálpebras e escancaramento da boca em medonho bocejo, sacudiu o corpo todo para espantar a moleza, Gumercindo repreendeu:
— Onde já se viu essa pasmaceira, seu Adriano? Você não tem filhos pra dar de comer?
Vendo que o vendeiro não se importava com a descompostura gratuita, soliloquou com ares de profeta e filósofo:
— Deus pôs o homem no mundo pra trabalhar. E o mesmo Deus pedirá contas um dia aos preguiçosos. Ah! Isso pedirá. E eu quero ter o gosto de ver todos os tomazinenses bem no fundo do inferno, para castigo de tanta vagabundagem.
Adriano interrompeu o monólogo do carroceiro.
— Gumercindo. Trouxe minhas coisas?
— Como não? Eu lá perco tempo como vocês?
E começou a transportar, da carroça para o fundo do armazém, algumas sacas de açúcar. Pronto o serviço, desabafou:
— Eta, calorão! Se eu não fosse um trabalhador, até que ia tirar agora uma soneca...
Adriano nem sorriu. Encheu, apenas, dois copos de cachaça.
— Um traguinho, Gumercindo, em sua honra.
O carroceiro arqueou o busto para trás, espalmando as mãos em frente ao peito, em um gesto de recusa altiva.
— Quem? Eu? Tomar pinga? Era só o que faltava.
Adriano não se incomodou. Ingeriu, gostosamente, o líquido.
— Se você soubesse o quanto isto é bom...
Gumercindo fez como quem cede:
— Vá lá. Pra não fazer desfeita...
E esvaziou o copo num trago.
Gumercindo resolveu sentar-se. Conversou duas ou três coisas. E, em menos de dez minutos, escarrapachava-se na cadeira, na dormida mais bizarra deste mundo: — os braços largados, a cabeça encostada no balcão, a boca aberta, o busto subindo e descendo a cada movimento respiratório.
Quando Adriano o acordou, Gumercindo se pôs de pé, estremunhado. E gaguejou desenxabido:
— Uai! Não vê que quase dormi, mesmo?
Saiu do negócio. Gripou lépido na carroça. E chicoteou os cavalos. No virar a segunda esquina, fez alto.
— Boas tardes, seu Moisés. Hoje não veio nada pro senhor.
O fleumático sírio, tamborilando os dedos no balcão, nem tirou o cachimbo da boca:
— Eu não estava esperando, mesmo...
Passou nesse instante, pela calçada, uma senhora muito bem-vestida, deixando após si um rasto de perfumes caros.
Gumercindo franziu o sobrecenho:
— Tá aí uma coisa que não me entra. De jeito nenhum. Então, porque o seu Tancredo perdeu a vergonha, as mulheres honestas de Tomazina têm de aguentar uma criatura dessa laia? Que desaforo, minha Nossa Senhora!
(Seu Tancredo era o maior magnata do lugar. Capelão, major da Guarda Nacional, presidente do diretório, vice-diretor do arrebentado Tiro de Guerra, acionista forte do “Banco Popular e Agrícola Norte do Paraná” etc., etc., tudo, afinal de contas. O seu Tancredo enviuvara, já. E logo após a morte da boa da Dona Cotinha, deu pra ficar sirigaita, apesar de todos os conselhos da parentela. Uma das suas loucuras: certo dia fez uma viagem. Mas não voltou sozinho. Veio acompanhado de uma tal de Jovita, a quem presenteou com uma casa muito bem mobilhada. E daí por diante... nem é bom falar sobre a série de escândalos).
— Ah! Seu Moisés. O senhor vai ser testemunha de um juramento meu.
E Gumercindo deu sua “palavra de honra” que não sufragaria o major nas eleições próximas.
— Que esperança! Então um homem sem compostura merece alguma coisa em política?
A conversa recaiu depois sobre Jovita.
— Ela até que é bem parecida. Mas é muito semostradeira. Vive lambeteando até no jeito de andar. Perto de mim é que essa coisinha à toa não chega. Sou capaz de lhe dar na cara. Porque eu tenho uma birra de gente espoleta...
Moisés, pito dependurado, silencioso, ouviu toda aquela lenga-lenga.
O carroceiro resolveu mudar de assunto.
— Sabe de uma coisa, seu Moisés? Trabalhei hoje como nunca. Também daqui a pouco vou tocando a carroça pra fazenda do Quim, e me divertir um pouco.
E como o sírio, pela primeira vez, tirasse o cachimbo dos lábios, o carroceiro viu nisso uma pergunta. E ajuntou:
— Então não sabe? A menina do Quim casa-se hoje. O pessoal já foi pra lá cedo. Todo o mundo vai jantar com a noiva.
Chegou-se à porta. Arrebitou o nariz:
— Já refrescou bastante. Tá na hora de ir andando.
Mas não saiu do negócio do Moisés. O Tancredo entrara nesse momento, esbaforido.
— Olá, Gumercindo, é verdade que você vai até a casa do Quim?
— É, sim. – respondeu o outro, repuxando os lábios.
— Pois deu na telha da Jovita — (Gumercindo, ao ouvir este nome, fechou a carranca) — ir à festa e...
Não terminou. Jovita transpôs a porta, toda meneios no corpo e chiados na fala.
— Tancredo. Já fiquei resolvida. Vou de carroça, mesmo.
— Não, protestou o major. E os solavancos? E a poeira? Não pode ser. O Gumercindo vai dizer ao Neco que venha já com o automóvel.
— Não. Eu quero (e Jovita frisou bem o verbo), eu quero ir de carroça com ele.
Desmanchou-se, como por encanto, a carranca de Gumercindo. E foi todo meloso, curvado em escandaloso salamaleque, que proferiu:
— Oh! Pois não. Eu posso até forrar a tábua com um pelego macio.
Minutos depois, a carroça deslizava na estrada, sob os cuidados extraordinários do Gumercindo. E a seu lado, muito sim senhora, Jovita o envolvia em um círculo de perfumes caros. Na rua, sozinho, Tancredo sacudia a cabeça:
— Estas mulheres têm cada uma. Trocar uma carroça por um automóvel. Por um automóvel!
E atrás do balcão, filosofava o Moisés, amassando com a polpa do polegar o fumo do cachimbo:
— Este Gumercindo Carroceiro…
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Publicado originalmente no Correio dos Ferroviários. Curitiba, maio de 1934.
Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
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