sábado, 18 de novembro de 2023

A. A. de Assis (1,5 milhão ou 1,5 milhões?)

Deve ter sido numa tarde de sábado, faz um bom tempinho. A gramática e a matemática, duas velhas amigas/rivais ou rivais/amigas, reuniram-se numa mesa de botequim para discutir um antigo problema. De logo uma disse pra outra: “Hoje só sairemos daqui depois de chegar a um consenso”.

A questão em pauta era a seguinte: o correto é dizer “1,5 milhão” ou “1,5 milhões?”. Pediram duas cervejas para lubrificar o raciocínio.

Na tentativa de já sair com vantagem, a gramática iniciou a contenda puxando a conversa para a erudição: “Temos que primeiro entender o significado das palavras ‘singular’ e ‘plural’, ambas herdadas do latim. ‘Singular’ (de ‘singularis’, derivado de ‘singulus’) significa ‘único’. ‘Plural’ (de ‘pluralis’, derivado de ‘plus’) significa ‘mais de um’. Daí temos que ‘’um’ é singular, ‘dois’ é plural”. Nisso a gramática e a matemática estavam de acordo. Um é, dois são; um milhão, dois milhões. Valeu um copo com espuma o bom começo do papo.

A briga subiu mesmo de tom foi quando entraram em jogo as frações. Se plural significa “mais de um”, então 1,5 deveria ser plural, visto que 1,5 é mais do que um. É um e meio. Um mais a metade de um. Ou seja, são duas porções – uma maior outra menor.

A discussão esquentou a tal ponto que o garçom chegou a ficar assustado, temendo que a qualquer momento as duas doutas debatentes esquecessem os bons modos e partissem para os tapas. Para abrandar os ânimos, ele por prudência serviu mais duas cervejas. Porém as duas senhoras (a gramática e a matemática) nem prestaram atenção na gentileza.

Era aquele tal de singulus, singularis, plus, pluris, pluralis... De que diabo estavam afinal falando? Uma e meia garrafa ou uma e meia garrafas? Na conta do garçom já eram quatro.

A gramática insistia: “Aquilo que vem depois de um número decimal iniciado por 1 (um) fica sempre no singular. Assim, até 1,9 dizemos ‘1,9 milhão’; daí por diante dizemos ‘2 milhões... 2,1 milhões... 3,2 milhões... 9,8 milhões...’’’

“Mas quem decidiu isso?”, quis saber a matemática.

“Eu decidi”, rebateu peremptória a gramática, sem contudo entrar em detalhes. Tá rindo?... Também eu acho empombada essa palavra “peremptória” – coisa de gente mandona. Mas se a gramática peremptou tá peremptado: “Alguém teria que dar a palavra final; então eu (a gramática), no uso das minhas milenares atribuições, resolvi que fração não conta; contam somente os números inteiros: 1,2,3,4,5... Entendeu?”.

“Entender não entendi muito bem não”, emendou a matemática, “mas vou fazer de conta que sim, visto que sua especialidade é mesmo complicar as coisas. Para mim é tudo mais simples: 2 mais 2 são 4, e ponto. Não há o que discutir”.

Resumindo: 1,5 “litro” de água “basta” para matar a sede, mas 10,5 “litros” de cerveja não “bastam” para pacificar duas cabeças sábias quando se atracam numa boa polêmica.

O garçom trouxe mais duas.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – 22.6.2023)

Fonte: Texto enviado pelo autor 

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