O FERNANDINHO não usava a letra “M” do alfabeto de forma alguma. Todas as palavras que contivessem a dita, fosse no início, meio ou fim, vinham divorciadas de seu uso corriqueiro. O Mangueira, um amigo metido a esperto, e sabedor desta particularidade, resolveu testar a vivacidade do colega desafiando a sua real destreza e aptidão. Sentenciou que cairia matando em cima do colega, promovendo disfarçadamente uma conversa informal para ver até onde o espertalhão metido a sagaz conseguiria se manter invicto sem cair na esparrela de pronunciar a letra que ele insistia em deixar ausente de suas conversas habituais.
Com este pensamento borbulhando em sua cabeça, resolveu que na sexta-feira, quando as aulas terminassem mais cedo, desafiaria o Fernandinho partindo como um trator desgovernado para cima dele. Outros apostadores que haviam tentado sem êxito derrubar a criatura, fizeram uma aposta. Toda a sala, num total de praticamente trinta e poucos alunos, apostou que Fernandinho não se deixaria enganar. Ficaram de fora a Bia, uma vesguinha que ninguém dava muita atenção a ela e Maíra, namoradinha do mocinho que seria trolado.
Tão logo o sino soou, a galera correu a se reunir na cantina em volta das várias mesas ali existentes e ficaram à espera da chegada do destro. O Desafiante pedira antecipadamente aos “colaboradores” que o deixassem sozinho na roda onde a batalha seria travada. Para evitar problemas futuros com as indagações e respostas que seriam dadas pelo afiado, direcionou três fedelhos que “despistadamente” gravariam vídeos de ângulos diferentes, para depois de finalizada a peleja, possíveis suspeitas viessem a ser levantadas a favor ou contra, objetivando (a verdade se consubstanciava neste pormenor) cessar a sacanagem que entraria em cena depois, deixando claro que o infeliz perdedor ou quem se safasse o sabichão viesse a ser motivo de chacota. Ficou acordado entre a turminha dos “contras e a favores, ” o que fosse vencido na contenda, pagaria uma rodada de lanche com direito a refrigerante para todos os alunos que engordavam a roda em torno. Assim, foi. Tão logo o Fernandinho entrou no recinto, todos lanchavam. Havia uma torcida de outras salas que se acomodara sem noção do que em breve teria início.
Ao ver o desafiado em cena, Mangueira o chamou para se abancar ao seu lado, oferecendo um lanche e um refri. Sem desconfiar de nada, e tendo em vista todas as mesas ocupadas, Fernandinho aceitou de pronto agradecendo antecipadamente o convite. A batalha teve, então, início:
— Fernando, você gosta da nossa professora de inglês, a tia Sofia?
— Gosto.
— E da tia Lídia, que nos ensina Matemática?
— Odeio.
— Mas por que?
— Porque os nossos santos não se dão. E você, gosta dela?
— Amo. Acho ela tri legal. E do tio Juarez, da Educação Física?
— Este eu adoro de coração. Não perco aula por nada deste planeta. Que recorde, faltei só duas vezes quando fiquei doente.
— Entendi. Fernandinho, sei que você é um muito católico. Não perde uma missa aos domingos. O que diria à Deus, se por acaso o encontrasse na sua frente?
— Pai, venha a nós o vosso Reino.
— E se fosse o tinhoso?
— Vade retro, satanás!
— Minha irmã Karem conversando com a sua namorada, me disse que você gosta de filmes antigos. Enumere alguns. Pode ser que nossos gostos coincidam.
— Claro, Dalpícolo. Sou vidrado no Zorro, no Casablanca... E o vento levou, Psicose, O Piano, Cantando na Chuva, Crepúsculo dos Deuses, A noviça Rebelde... a lista é grandiosa...
— Fernandinho, por que você me chama sempre pelo segundo nome e não usa o primeiro, como todo mundo?
— Acho fora da realidade. Prefiro o Dalpícolo.
— Você vê muito a Rede Brasil...
— Todo santo dia.
— Já assistiu Columbo?
— Infinitas vezes. A série, tira o fôlego. Adoro o artista principal que veste e encarna a pele do policial.
— Quem, o Columbo?
— Não, cara. O ator Peter Falk. Grande artista. Faleceu aos oitenta e três anos na cidade de Beverly Hills.
— Seus cantores e cantoras preferidos:
— Roberto Carlos, Vanusa, Belchior, Rita Lee, Adriana Calcanhoto, J. Quest, Cazuza, Renato Russo... cara, se eu for pontilhar todos, a noite será curta. E você, Dalpícolo? Diga alguns de sua predileção...
Maguila, em resposta, furioso e colérico, desferiu um potente soco na mesa. Derrubou as garrafas de refrigerantes e os pratos com os sanduiches:
— Filho da mãe. Maldito. Vá pro inferno...
Os colegas que se prestaram a filmar e apostaram que o Maguila sairia vencedor, bem como os cabeças em contrário, que se perdessem seriam agraciados com as despesas, dos que aceitaram filmar o desafio multiplicando o volume dos tresloucados, caíram em estrondosa gargalhada ao tempo em que a uma só voz, berraram:
— Perdeu, mano. Perdeu feio. Vai pagar as despesas de todos nós...
Maguila se virou, a face vermelha pela vergonha e mandou bala:
— Vão todos vocês “pro raio que os parta.”
Fonte: Texto enviado pelo autor
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