domingo, 5 de novembro de 2023

Estante de Livros (“As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles)


As Meninas" é um romance da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, publicado em 1973. A história se passa durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, e acompanha a vida de três amigas que dividem um quarto em uma pensão em São Paulo.

No livro, três narradoras se alternam, produzindo a polifonia de vozes: Lorena, Lião e Ana Clara. São estudantes universitárias que moram em uma pensão.

A narrativa é conduzida por Lorena, uma jovem introspectiva e solitária, que se refugia em seus próprios pensamentos para escapar da realidade opressiva que a cerca. Ela divide o quarto com a alegre e extrovertida Ana Clara, e com a misteriosa e rebelde Lia.

As três amigas são completamente diferentes entre si, mas encontram conforto e companhia na convivência. Juntas, elas criam um universo próprio, repleto de fantasia e imaginação, que as ajuda a suportar a dura realidade do mundo lá fora.

As três amigas também se envolvem em diversas aventuras, que envolvem desde a descoberta de um mistério na casa em que moram até uma viagem de férias que se revela uma grande decepção. Em meio a tudo isso, elas encontram na amizade e na cumplicidade uma forma de se apoiar e de enfrentar as dificuldades.

Por fim, as protagonistas são confrontadas com escolhas que definirão seus futuros. Lorena precisa decidir se seguirá o caminho que sua família espera dela ou se buscará sua própria independência, enquanto Lia e Ana Clara precisam enfrentar suas próprias limitações e medos para encontrar uma forma de se libertar das amarras que as prendem.

No final, cada uma das três protagonistas enfrenta um desfecho diferente.

Lorena, a estudante de direito introspectiva e sonhadora, decide abandonar seus estudos e sua vida convencional para viver uma experiência de liberdade e aventura. Ela foge de casa e se junta a um grupo de hippies, buscando novas formas de viver e de se relacionar com o mundo.

Lia, a jovem rebelde e misteriosa, enfrenta um final trágico. Ela é assassinada pelo amante mais velho e casado, em um crime que deixa as outras personagens chocadas e abaladas.

Já Ana Clara, a estudante extrovertida e alegre, encontra uma nova forma de viver a vida. Ela deixa a pensão e se muda para o apartamento de um amigo, onde passa a trabalhar em uma galeria de arte e a viver novas experiências. Ela encontra uma forma de superar sua tristeza e de se reinventar, abrindo-se para novos horizontes e possibilidades.

O final do livro oferece uma visão complexa e emocionante da juventude brasileira dos anos 70, mostrando como cada uma das protagonistas enfrenta desafios e escolhas que definirão seu futuro. A obra é marcada por uma sensibilidade poética e por uma reflexão profunda sobre a vida e a liberdade em um contexto de opressão e de luta por direitos.

As Meninas é um romance marcante da literatura brasileira, que oferece uma visão sensível e poética sobre a juventude e a resistência em tempos difíceis. A obra é considerada uma das principais contribuições de Lygia Fagundes Telles para a literatura brasileira.

ANÁLISE DO LIVRO

AÇÃO

A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no 'aparelho'; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor.

Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de autoconhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus 'fantasmas'.

PERSONAGENS

Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com frequência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca frequentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subsequente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões.

Lorena tenta 'equilibrar-se' fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas frequentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos.

Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz.

No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua 'concha' definitivamente.

Lia de Melo Schultz serve como contraponto à 'finesse' de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais [foco de agitações estudantis na década de 60], onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso.

Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o 'aparelho', e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político [doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria] e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem.

Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente.

Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes.

Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos [o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções], cheiros [do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...], sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para 'o ano que vem'.

Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.

TEMPO

Subjaz à narrativa uma sequência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente.

Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos.

Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias.

ESPAÇO

Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde 'Deus vomita os mortos'.

FOCO NARRATIVO

O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente [e inesperadamente!] para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas frequentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.

Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu 'dialeto' coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana 'Turva'.

Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado.

O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.

Fontes: 
– Análise: Algo sobre. 
– Resumo: site Resumo de Livros. 
- Imagem: criação de JFeldman com Microsoft Bing

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