“Irene preta, / Irene boa, / Irene sempre de bom humor. / Imagino Irene entrando no céu: – Licença, meu branco! / E São Pedro bonachão: / – Entra, Irene. Você não precisa pedir licença”.
O poema de Manuel Bandeira (1886-1968) apresenta Irene, uma negra humilde, pobre, talvez analfabeta, de sorriso fácil. E também santa. Como a multidão de milhões, de bilhões de seres humanos pelo mundo afora. A heróis de verdade pouco se lhes dá serem reconhecidos ou não. Topamos com eles e sequer nos damos conta. Desconhecemos seus nomes, ignoramos sua biografia, enquanto pisamos, juntos, o mesmo chão. Deixamo-nos impressionar com as notícias negativas atiradas, em voz forte e letras grandes, aos nossos olhos e ouvidos. Por obra desse bombardeio, damos por decidido que o gênero humano, por inteiro, sucumbiu a uma invencível podridão. Podemos até não dizer, mas no fundo nutrimos a impressão de que ninguém mais presta.
Contudo, a parte maior da humanidade é formada por gente boa. Gente cuja presença nos estimula a nos tornarmos melhores. Homens e mulheres que caminham ao nosso lado e tornam menos deplorável peregrinar por esta vida. E nos movem na direção de uma certeza: o mundo não está perdido.
Em Marialva, onde trabalhei por mais anos, no meio de muitas pessoas de valor, cativou-me o exemplo de uma mulher especial. Daquelas impossíveis de esquecer. De uma candura imensa. Pobre como calango de terra queimada. Embora sem estudo, irradiava profunda sabedoria. Com ela, não raro, se aconselhavam homens e mulheres. Problemas entre esposos, de educação de filhos, de venda de propriedade, de mudança de emprego, qualquer coisa. Sua lucidez emitia uma segurança que só Deus pode dar. Estou convencido de que nela o Espírito Santo derramou, em dose avantajada, os dons do conselho e da fortaleza.
Era portadora daquela fé que remove montanha (cf. Mt 17,20). Um modelo de serenidade frente à brutalidade da vida. A pobreza não conseguiu assustá-la. Nem lhe remover dos lábios o diário sorriso. A ela ou ao marido a natureza recusou o dom de gerar filhos. Mas deles não roubou a paz nem os fez desiludir da vida. Um heroísmo de que só pobres são capazes moveu-os a colocar dentro de casa não um, mas quatro filhos alheios. Nunca falaram de adoção. No entoado linguajar de Minas Gerais, as crianças foram “pegas para criar”.
Quando apareceu a doença do Tião, ela se obrigou a correr, sem dinheiro, atrás de médicos, de hospitais e de remédios. Foi uma dura carga de sofrimento, de cansaço e de paciência. Reclamação nenhuma. Nada arruinou sua tranquilidade construída sobre a fé. Nem lhe faltou o carinho da comunidade de Santa Fé do Pirapó, que a venerava. Por fim, Deus decidiu que era o momento de chamar à sua glória o companheiro de tantos anos. Da casa minúscula em que morava, ela prosseguiu fulgindo, anos a fio, o seu clarão de luz benfazeja. Seu coração sempre aberto para os que sofriam. Com o sorriso e a palavra que vinham lá de dentro. À distância, vez por outra, eu ainda conseguia vê-la.
Meses atrás, me comunicaram seu falecimento. Fui até lá. O caixão tomava, quase inteira, a sala pequenina. Difícil andar em volta. Antes de oficiar as exéquias, fui incapaz de reprimir – não me envergonha confessá-lo – um choro quente e prolongado. Dona Geralda, mestra de todos nós, estava muda.
Mas o rosto refletia a doce paz da Casa do Pai.
Fonte: Portal do Rigon. 19.11.2011.
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