Após perambular por ruas escuras e desertas, eu só queria dormir ou descobrir um modo de afugentar os urubus que me bicavam a solidão. Devia ser mais de meia-noite. Não se via uma só pessoa na rua e eu caminhava sem pressa. De repente pressenti que alguém me seguia. Ouvi-lhe a zoada das pisadas. Tranquilizei-me: certamente outro solitário vagabundo com quem poderia conversar por alguns minutos de caminhada. Pouco me importava fosse uma prostituta desleixada e doente, um bêbado sem rumo e delirante, um mendigo à cata de pouso e mudo. Olhei de esguelha e achei tratar-se de homem de passo firme e boa aparência. Andava na mesma vagareza com que eu passava pelas casas dormidas. Estranhei não se aproximasse um metro sequer de mim E se se tratasse de um assaltante? Deveria enfrentá-lo ou correr? Meti as mãos nos bolsos. Nada me faltava ainda: chaves, cigarros, lenço, documentos, dinheiro. Apressei o passo, por cautela. Logo, porém, mudei de ideia. Seria mesmo um mendigo e não me custava nada dar-lhe uma esmola e um boa-noite. Também logo desisti da piedade. Devia ser um estrangulador, um maníaco qualquer.
Tenho pensado, e pensei na ocasião, mil besteiras, absurdos. Um ente sobrenatural, um ser qualquer, um robô, minha sombra.
De qualquer forma, continuei de mãos enfiadas nos bolsos. Talvez até pelo simples desejo de aquecê-las, resguardá-las do frio.
Andava sem jeito, como se tivesse presos os braços, amarrados por cordas, empurrado para o abismo. Mas quem me prendia e conduzia para a morte? Lembro-me de ter retirado dos bolsos as mãos, que, crescidas, inchadas, volumosas, custaram a saltar fora. E balançando os braços, pesados, quase paralisados, numa vontade imensa de voar, fugir, correr. Tentei apressar o passo. O chão parecia grudar-se aos meus pés. O som de nossas pisadas ressoava na calçada, como se a calçássemos com força, em marcha de tropas vitoriosas. Quantos já me seguiam? Olhei para trás. O homem continuava à mesma distância de mim, lento, preguiçoso, rastejante. Acalmei-me e julguei-o apenas um coitado, um idiota acostumado a caminhar sozinho dentro da noite. E se fosse um vampiro? Saltaria, devorador, ao meu pescoço. Passei a mão trêmula pela nuca. Senti calafrios. Apressei o passo mais ainda. Ia quase correndo. Atrás de mim, passos cadenciados de quem corre. Meu coração batia sem sossego. Cansado, parei. E deixei de ouvir também as pisadas do estranho. Voltei-me e ele me deu as costas. Enchi-me de coragem e fui em sua direção. Agora eu o perseguia. E ele fez-se perseguido. De novo parei. Se continuasse, nunca chegaria a minha casa. E ele deixou também de andar. Vi, por suas costas, que se parecia comigo: os mesmos ombros caídos, a mesma cabeleira despenteada. Por que não dirigir-lhe a palavra, perguntar-lhe o que queria, quem era, por que me seguia, por que me imitava em tudo? Não o fiz, voltei-me e tomei meu caminho, devagar, desiludido.
Mais adiante, já resolvido a esclarecer o mistério, reduzi a marcha e, sem me voltar, gritei: “Que quer você?” Minha voz ecoou: “Que quer você?” Não sei, talvez ele, o estranho, me arremedasse, zombasse de mim, para me amedrontar. Com febre, eu tremia e não sabia mais em que pensava. Cuidei, me vi diante de casa. Olhei para trás. O homem havia parado a uns vinte passos de mim. Abri o portão, percorri, sonâmbulo, o jardim, abri a porta e pulei para a sala. Tirei a camisa ensopada em suor e corri ao quarto. Caí na cama como um bêbado. Não vi, não senti, não pensei mais nada. Devo ter dormido profundamente.
De manhã, mal o sol despontava, abri a porta, percorri o jardim e cheguei ao portão. Na calçada, encharcado numa poça d’água, jazia um homem. E nem sei se se tratava do mesmo que me havia seguido.
Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.
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