O que se vai ler passa-se num bonde. D. CLARA está sentada; vê D. AMÉLIA que procura um lugar; e oferece-lhe um ao pé de si.
D. CLA. Suba aqui, Amélia. Como passa?
D. AMÉ. Como hei de passar?
D. CLA. Doente?
D. AMÉ. (suspirando) Antes fosse doente!
D. CLA. (com discrição) Que aconteceu?
D. AMÉ. Coisas minhas! Você é bem feliz, Clara. Digo muita vez comigo que você é bem feliz. Realmente, eu não sei para que vim ao mundo.
D. CLA. Feliz, eu? (Olhando melancolicamente para as borlas do leque) Feliz! feliz! feliz!
D. AMÉ. Não tente a Deus, Clara. Pois você quer comparar-se a mim nesse particular? Sabe por que é que saí hoje?
D. CLA. E eu por que é que saí?
D. AMÉ. Saí, porque já não posso com esta vida: um dia morro de desespero. Olhe, digo-lhe tudo: saí até com ideias... Não, não digo. Mas imagine, imagine.
D. CLA. Fúnebres?
D. AMÉ. Fúnebres. Sou nervosa, e tenho momentos em que me sinto capaz de dar um tiro em mim ou atirar-me de um segundo andar. Imagine você que o senhor meu marido teve ideia... Olhe que isto é muito particular.
D. CLA. Pelo amor de Deus!
D. AMÉ. Teve ideia de ir este ano para Minas; até aqui vai bem. Eu gosto de Minas. Estivemos lá dois meses, logo depois que casamos. Comecei a arranjar tudo; disse a todas as pessoas que ia para Minas..
D. CLA. Lembro-me que me disse.
D. AMÉ. Disse. Mamãe achou esquisito, e pediu-me que não fosse, dizendo que, para ela visitar-nos de quando em quando, era-lhe mais fácil se estivéssemos em Petrópolis. E era verdade; mas ainda assim não falei logo ao Conrado. Só quando ela teimou muito é que eu contei ao Conrado o que mamãe me tinha dito. Ele não respondeu; ouviu, levantou os ombros, e saiu. Mamãe teimava; afinal declarou-me que ia ela mesma falar a meu marido; pedi-lhe que não, ela porém respondeu-me que não era um bicho de sete cabeças. Petrópolis ou Minas, tudo era passar o verão fora, com a diferença que, para ela, Petrópolis ficava mais perto. E não era assim mesmo?
D. CLA. Sem dúvida.
D. AMÉ. Pois ouça. Mamãe falou-lhe; foi ele mesmo quem me disse, entrando em casa, no sábado, muito sombrio e aborrecido. Perguntei-lhe o que é que tinha; respondeu-me com mau modo; afinal disse-me que mamãe lhe fora pedir para não ir a Minas. “Foi você quem se agarrou com ela!” — “Eu, Conrado? Mamãe mesma é que me anda falando nisto, e eu até lhe disse que não lhe pedia nada.” Não houve explicação que valesse; ele declarou que não iríamos em caso nenhum a Petrópolis. “Para mim é o mesmo, disse eu; estou pronta até a não ir a parte nenhuma.” Sabe o que é que ele me respondeu?
D. CLA. Que foi?
D. AMÉ. “Isto queria você!” Veja só!
D. CLA. Mas... não entendo.
D. AMÉ. Eu disse a mamãe que não pedisse mais nada; não valia a pena, era perder tempo e zangar o Conrado. Mamãe concordou comigo; mas, daí a dois dias, tornou a falar na mudança; e afinal ontem o Conrado entrou em casa com os olhos cheios de raiva. Não me disse nada, por mais que lhe rogasse. Hoje de manhã, depois do almoço, declarou-me que mamãe tinha ido procurá-lo ao escritório e lhe pediria pela terceira vez para não ir a Minas, mas, a Petrópolis; que ele afinal consentira em dividir o tempo, um mês em Minas e outro em Petrópolis. E depois pegou-me no pulso, e disse-me que tomasse cuidado; que ele bem sabia por que é que eu queria ir para Petrópolis, que era para andar de olhadelas com... Nem lhe quero dizer o nome, um sujeito de quem não faço caso... Diga-me se não é para ficar maluca.
D. CLA. Não acho.
D. AMÉ. Não acha?
D. CLA. Não: é um episódio sem valor. Maluca havia de ficar se desse o que se deu hoje comigo.
D. AMÉ. Que foi?
D. CLA. Vai ver. Conhece o Albernaz?
D. AMÉ. O do olho de vidro?
D. CLA. Justamente. Damo-nos com a família dele, a mulher, que é uma boa senhora, e as filhas que são muito galantes...
D. AMÉ. Muito galantes.
D. CLA. Há mês e meio fez anos uma delas, e nós fomos lá jantar. Comprei um presente no Farani, um broche muito bonito; e na mesma ocasião comprei outro para mim. Mandei fazer um vestido, e fiz umas compras mais. Isto foi há mês e meio. Oito dias depois deu-se a reunião do Baltasar. Já tinha o vestido encomendado, e não precisava mais nada; mas, passando pela Rua do Ouvidor, vi outro broche muito bonito e tive vontade de comprá-lo. Não comprei, e fui andando. No dia seguinte torno a passar, vejo o broche, fui andando, mas na volta... Realmente, era muito bonito; e com o meu vestido ia muito bem. Comprei-o. O Lucas viu-me com ele, no dia da reunião, mas você sabe como ele é, não repara em nada; pensou que era antigo. Não reparou mesmo no primeiro, o do jantar do Albernaz. Vai então hoje de manhã, estando para sair, recebeu a conta. Você não imagina o que houve; ficou como uma cobra.
D. AMÉ. Por causa dos dois broches?
D. CLA. Por causa dos dois broches, dos vestidos que faço, das rendas que compro, que sou uma gastadeira, que só gosto de andar na rua, fazendo contas, o diabo. Você não imagina o que ouvi. Chorei, chorei, como nunca chorei em minha vida. Se tivesse ânimo, matava-me hoje mesmo. Pois então... E concordo, concordo que não era preciso outro broche mas isto faz-se, Amélia?
D. AMÉ. Realmente...
D. CLA. Eu até sou econômica. Você, que se dá comigo há tantos anos, sabe se não vivo com economia. Um barulho por causa de nada, uns miseráveis broches...
D. AMÉ. Há de ser sempre assim. (Chegando à Rua do Ouvidor.) Você desce ou sobe?
D. CLA. Eu subo, vou à Glace Elegante; depois desço. Vou ver uma gravura muito bonita, inglesa...
D. AMÉ. Já vi; muito bonita. Vamos juntas.
D. CLA. Há hoje muita gente na Rua do Ouvidor.
D. AMÉ. Olha a Costinha... Ela não fala com você?
D. CLA. Estamos assim um pouco...
D. AMÉ. E... e depois...
D. CLA. Sim... mas... luvas brancas.
D. AMÉ. ..................?
D. CLA. ...................!
AMBAS (sorrindo) Uma coisa muito engraçada; vou contar-lhe...
Fonte: Publicado originalmente em A Estação, 31/3/1884. Disponível em Domínio Público
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