Havia um instante, que, na torre pequenina da igreja, o sacristão, com a cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens amarelas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.
Hora do descanso. Alguns dos que trabalhavam mais perto recolheram-se à casa para jantar e sossegar um pedaço, durante a sesta.
Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas na nesgazinha de sombra, as galinhas dormitavam; os pássaros nos salgueirais, que sombreavam o ribeiro, tinham emudecido. No interior das casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pátios, com os varais aprumados, pareciam, como em um espreguiçamento, dispor-se para o sono.
O sol quase a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentíssimos, reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados, que pareciam em brasa, e atravessava com eles as ramarias, enchendo o ribeiro de manchas movediças, multiformes, cheias de cintilações, como pedacinhos de metal.
Era aquela a hora a que antes costumava recolher à casa o José Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quase a trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e láparos.
Ainda ele vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na frente. Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta, encostava-se à soleira, e punha-se à espera, toda risonha, feliz, fresquinha como uma flor, com o seu vestido de linho muito engomado.
Os que passavam iam lhe dando as boas tardes.
—Não tarda aí. – diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa cheia e cartucheira vazia.
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Tempos!... Tempos!
Havia quase um mês que a pobre Mariana debalde esperava o marido àquela hora. Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da janela e, com as faces incendiadas, o ouvido atento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava correr em fio as lágrimas silenciosas. E os que passavam, recolhendo-se às casas, olhavam para ela com um modo tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os outros: — Coitadinha!
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O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que passara! Para aquilo tinha casado, para mal decorrido um ano, um ano pouco mais, ali se ver sozinha, chorando o marido que lhe fugira! Porque assim fora rebelde aos conselhos do pai? Bem lhe o tinha ele pregado no próprio dia em que dera por aqueles amores!
O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, à porta da rua, viera busca-la por um braço, arrastara-a pela escada até ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas: — Senhora!
E ela começara a chorar e logo ele, terníssimo e aflito, a enchera de beijos.
Ainda não pensara naquilo...! Pois tão nova ainda, havia de assim deixa-lo? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um conquistador!
Recordara-lhe a morte da mãe que a deixara com três anos entregue a ele, o que ele sofrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera.
Era à noite, noite muito serena, cheia de murmúrios misteriosos, que se elevavam dos campos numa grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das águas do ribeiro e o rodar das azenhas (moinhos movidos por água). A janela estava aberta e lá de fora vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera.
Junto da porta crescia uma roseira, que metera para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos ninhos.
O mestre-escola aproximou-se da janela e esteve por algum tempo respirando aquele ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que recordações.
Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço muito bem torneado, o cabelo farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe a carnadura branca, sadia e forte. O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento lânguido, vergando a um suspiro da noite.
O mestre-escola tomou uma respiração profunda e fez um movimento de ombros resignado.
—É preciso casar-te, não há remédio.
Como por miúdos se lembrava de toda a cena que tivera com o pai e dos conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra ele que o José Miguel a havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que tinham sido, uma após a outra, todas as raparigas da aldeia.
Que mal empregadas lágrimas ela chorara, até que afinal o pai consentira no casamento!
Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os três comentado aquela história!
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Um dia o mestre-escola fora pelo Prior e outros convidados para uma caçada a que iria também o José Miguel.
Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe à porta.
— Pronto, sr. Eustáquio? Olhe que o Prior, há mais de um quarto de hora que está à sua espera no adro!
—Lá vou! Lá vou! – gritou de dentro o Eustáquio.
E apareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o boné de pala verde, que usava havia dez anos.
— Adeus! – disse ao José Miguel com mau modo.
— Sr. Eustáquio...! – respondeu este, cumprimentando-o, entre irônico e atarantado. E, erguendo os olhos, entreviu na única janela do primeiro andar, atrás das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe sorria por entre muitas lágrimas.
— Vamos! – disse o Eustáquio, pondo-se a caminho e olhando de revés para o outro.
— “Deixa estar, grande patife!” – ia pensando o José Miguel. Ainda hoje me hás de pagar!
Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com impaciência. Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustáquio respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a igreja era no fim da aldeia e no sopé de um monte predileto das perdizes.
Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no gatilho, esperava que as perdizes levantassem.
—Entra, cão!
Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saúde. O velho caçador fez um movimento de mau gênio. Então o José Miguel, colocado um pouco mais longe, apontou serenamente, descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um instante haverem batido convulsivamente as asas, inclinaram as cabeças e deixaram-se cair a prumo, como coisas inertes.
— Que é lá isso? – perguntou o Eustáquio.
— O sr. não vê? – disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. – São duas perdizes.
E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustáquio o não ouvisse:
—E dois bigodes. Ele que os vá contando.
E contou-os, e não foram poucos.
Felizmente o Eustáquio não era de reservas. O rapaz entusiasmou-o.
— Bravo! – dizia ele ao fim da tarde, com o olhinho a luzir, o que era também de umas beijocas a mais na borracha do Prior. E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no ombro:
— Sabes que tens quase uma riqueza nessa espingarda?
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Com que saudades a Mariana recordava esse momento em que, pela primeira vez, ouvira da boca do pai um elogio ao namorado!
— Mas isto não obsta. Não quero! – teimava ainda o Eustáquio. Aquilo é um cabeça no ar. – Um dia deixa-te e ficas pior do que viúva!
Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?
O José Miguel acirrara-se com aquela resistência e, em vez de abandonar a rapariga, como fizera às outras, cada vez se mostrava mais assíduo junto da filha do mestre-escola.
A Mariana definhava-se, que era um dó vê-la.
O Eustáquio, bem contra vontade, não teve outro remédio, consentiu.
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O bom tempo tem asas.
Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a triste chorava amargamente, lembrando-se daqueles primeiros meses de casada e das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do Valente, que voltava da caça.
Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava a mesa para defronte da janela, que uma parreira sombreava; dispunha-a com muito cuidado, o lugar dela e o dele, um defronte ao outro, o cangirão (vaso com asa para vinho) cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os pratos de fruta, que perfumavam a casa.
Então o Valente entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, querendo que lhe abrissem a porta do pátio, para onde logo saía a correr, enterrando o focinho na panela cheia de caldo e de grandes bocados de pão de munição.
O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, sorria ao ver aqueles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco, bebia-o depois, de uma vez, de olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um belo ah! de satisfação.
— Vamos a isto mulher, vamos a isto! – dizia aproximando da mesa a grande cadeira de pau santo.
E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas. Enquanto ia comendo, vinham as histórias do dia. Ela pouco podia adiantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de novo. Ele então contava façanhas do Valente, que, saciada a fome, muito sujo, muito lambuzado, sentado a um canto, de olhos semi-cerrados, esperava com paciência o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa. Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava.
Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquele calor andavam levadas da breca! O que ele andara por aqueles matos!
A mulher, sentada defronte dele, ria muito contente, mostrando-lhe os dentes muito brancos entre os lábios vermelhos, com duas covinhas aos cantos.
Pois as perdizes andavam assim como ele dizia, e estava a rede ali tão cheia!
— Mas vê lá se outro consegue o mesmo. - dizia o José Miguel todo orgulhoso. É que daquilo e destas não há outro que as tenha na aldeia.
E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas.
— São de ferro!
O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com eles à sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.
Caçador velho, muito conhecedor daqueles terrenos, gostava de dar conselhos ao genro, que o escutava atencioso.
Isto não obstava a que, saindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o sogro, matando-lhe a caça que este errava.
— Ora anda lá, meu velho. – resmungava muito alegre. – Apanha lá mais este, para a conta.
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Agora o José Miguel continuava a sair todas as manhãs, mas só recolhia alta noite. Às vezes, nem recolhia, e ela, coitadinha, levava as noites a chorar. Quando o marido saía, punha-se à janela e via-o desaparecer por detrás da igreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na clareira do pinheiral. O Valente seguia-o cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a estranhar o dono. Desapareciam depois entre os pinheiros e ela já não podia cá debaixo tornar a avista-los. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo se desfazia no azul do céu.
Ela então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsivamente.
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Nesse dia, pela uma hora, o Eustáquio entrou na casa da filha.
— O teu homem?
— Foi para a caça. - respondeu a Mariana, sentando-se no leito e às pressas limpando as lágrimas.
O mestre-escola trazia o boné de pala verde, a espingarda a tiracolo, o polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede.
— Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incomodar. Deita-te, filha, que eu vou procura– lo.
A Mariana quis retê-lo, estranhando-lhe os modos.
— Talvez o não encontre. Sabe Deus onde ele para!
—Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! – respondeu o Eustáquio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha, sabes o que vou fazer?
— Ó meu pai!... – disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo segurar-lhe os braços.
— Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não tem mais que o castigo que ambos merecem. Tu sabes quem ela é?
A Mariana disse que não com a cabeça.
Mas não havia de saber!...
—A Maria da Escusa, aquela cigana, que, não contente com ter dado cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem... e a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!
E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente.
A Mariana, cheia de susto, sem forças para seguir o pai, sem forças para gritar, deixou-se cair no leito, desmaiada quase, sem ânimo para pensar na desgraça, que lhe estava acontecendo.
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Assim esteve por muito tempo. Despertaram-na afinal uns latidos alegres, tão conhecidos dela. Sentou-se no leito. Os latidos aproximaram-se, e por fim o Valente rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar, a arranhar na porta do pátio.
Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pai e o que diziam não era coisa triste, porque ambos riam às gargalhadas. A Mariana correu, muito chorosa, até a porta, e, muito excitada, caiu soluçando nos braços do marido.
— O que é isso? O que é isso? – perguntava o Eustáquio, também com um nó na garganta. – Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o disparate, tinha o deixado lá ficar.
— Então, mulher, então? Que tens tu? – dizia o José Miguel muito comovido.
Passada meia hora, arranjado o jantar às pressas, sentaram-se todos à mesa. A curiosidade, que nem um dito, uma alusão deram motivo para saciar, sorria nos olhos vivos da Mariana. Que se haveria passado?
Mas, quase ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito animadamente, enganou-se e, querendo beber à saúde da filha, pegou no copo de água; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro desse pela distração, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.
— Não é só na caça que se apanham bigodes, sr. Eustáquio.
— Não, não. - respondeu o velho. – E tu que o sabes de hoje...!
O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um sorriso em que a malícia apagara a tristeza, levantou-se da mesa e veio beija-la muito.
— Coitada da Mariana!
— Então ela... enganou-te?
— Porque falas nisso? Que te importa? Que me importa?
A curiosidade da Mariana ainda não estava satisfeita.
— Com quem?... Dize... Dize... Com quem?
Então o mestre-escola, muito corado — era talvez da pinga? Entendeu dever deixa-los a sós, e saiu a rir, com um arzinho trocista, muito contente, a esfregar as mãos.
Fonte: João da Câmara. Contos. Lisboa: Guimrães, Libânio & Cia, 1900. Disponível em Domínio Público. Atualizado para o português brasileiro por J. Feldman
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