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segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Contos e Lendas do Paraná – 24 -

MUNICÍPIO DE CAMPO MAGRO
A lenda da lagoa feia

Na localidade de Campo Novo, município de Campo Magro, encontramos a Lagoa Feia, cuja lenda está repleta de “causos”, que povoam o imaginário popular da região. Contam os moradores locais que há mais ou menos 150 anos existia ali uma igreja e todos os que moravam nas suas proximidades reuniam-se quinzenalmente para os cultos religiosos.

Num belo dia, algumas pessoas resolveram fazer um baile nas dependências da igreja, já que não existia outro local na região para divertirem-se. Mas, coincidentemente, o baile foi realizado numa sexta-feira santa, dia de expiação da paixão e morte de Cristo. Para os costumes cristãos tal ato é considerado um verdadeiro sacrilégio.

Não tardou a intervenção divina, exatamente à meia-noite a igreja ruiu e afundou com todos os participantes do “baile profano”, matando a todos. Não ficou vestígio algum da existência da igreja e os corpos das pessoas nunca foram encontrados. 

No local formou-se a Lagoa Feia. Dizem os moradores que nunca se achou o fundo da lagoa, e que, muitas vezes, as suas águas turvas mudam de tonalidade, ficando ora avermelhadas, ora esverdeadas e em outros momentos amareladas. 

Ainda hoje, nas noites de sexta-feira santa, à meia-noite, ouve-se o choro de crianças e murmúrios de pessoas nas proximidades da lagoa feia.
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MUNICÍPIO DE ESPERANÇA NOVA
Sanga de Urutu 

Pirangueiros e pescadores falam de muitas histórias acontecidas no Paranazão. São inúmeros os casos de crimes hediondos praticados nas proximidades do grande rio, sendo alguns de conhecimento público, outros, no entanto, sem pistas até os dias atuais. É aí que as histórias viram causos e lendas.

Por volta de 1990, lá pelos lados da Sanga do Urutu, nas proximidades da Lagoa São João, o estimado Sansão foi brutalmente assassinado a facadas e jogado no rio. Mas o corpo nunca foi encontrado. Dizem que os acusados, Sidinei e seu comparsa Dirceu, praticaram o delito por causa de pinga e mulher. Os suspeitos até foram interrogados e presos, mas por falta de provas foram inocentados.

Moradores da região e pescadores que por lá andam, relatam que quem quiser pode ir lá para constatar um fato: na Sanga do Urutu, basta cair o silêncio costumeiro do lugar para se ouvir um assombro que assovia, mexe na água, geme; enfim, espanta os peixes e provoca arrepios até nos mais destemidos. 

Pescadores distraídos punham barcos à deriva; em vez de peixes, fisgavam nas águas profundas pedaços de roupas e pertences do lendário Sansão.

Talvez, por isso, hoje os mais avisados frequentadores do rio Paraná, no trecho Altônia, São Jorge do Patrocínio, Esperança Nova e Vila Alta, evitam permanecer naquelas paragens, em respeito à visagem comentada na Sanga do Urutu.
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MUNICÍPIO DE IVATÉ
A lenda da figueira

Surgiu há mais de 40 anos, próximo à cidade em uma área rural. Contada por quase todas as pessoas que ali habitavam naquela época. Relata-se que um certo pé de figueira, muito grande, era assombrado.

Viam-se luzes nele, ouvia-se barulho, outra hora ele gemia. Isso acontecia sempre à noite, quando as pessoas passavam por ali. A figueira era tão sombria e assustadora, que ninguém queria morar por perto. 

Contam que um certo dia, irritados com tanto medo que passavam, reuniu-se um grupo de homens, compraram uma bomba potente para soltar no tronco da árvore e ver o que acontecia.
Assim fizeram, acenderam a bomba e correram para ver a explosão. Um barulho de passos veio e pisou na bomba, ninguém viu nada e ela não explodiu. Depois desse dia, ninguém nunca mais desapontou a figueira.
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MUNICÍPIO DE PLANALTO
Tiracisma

Tudo começou na década de 1950, onde próximo da ponte do rio Capanema, a cerca de um quilômetro, no município de Planalto, havia uma estrada de chão que dava aceso a todos que vinham de Realeza a Planalto. Estes deveriam passar por um morro, o morro do Tiracisma.

A estrada foi aberta por volta do ano de 1955 e o morro foi batizado com esse nome porque tirava a “cisma” de qualquer motorista que se aventurasse a subir em dias de chuva. Qualquer motorista de caminhão que tentasse subir, ali ficava. Os moradores puxavam os caminhões com juntas de bois. A partir dos anos 1970 utilizavam tratores agrícolas até subir o morro, e a partir daí os motoristas podiam seguir as suas viagens.

Em 1965, foi batizado o riacho que atravessa a estrada no início do morro, com esse nome. Em 1979, a inauguração da estrada asfaltada PR-281 acabou com o drama dos motoristas nos dias de chuva, embora a estrada que corta o morro no seu lado oposto continue com forte declive.

Contam os populares que no morro houve um desastre. Um lenhador que por ali passava, com uma carga de madeira em seu carro de boi, ao descer o morro teve o azar de seu carro tombar, matando-o. Até hoje, as pessoas que passam pelo morro do Tiracisma dizem ouvir as madeiras rolando e fortes ruídos na mata que o circunda.
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MUNICÍPIO DE PLANALTO
Rio Siemens e suas lendas

Por volta do ano de 1974 na localidade de Santa Cecília pesquisadores encontraram ouro em moedas na margem do rio Siemens. Essas pessoas não eram da região e nunca mais se ouviu falar delas.

À altura do morro, perto do suposto pé de cactos onde foi tirado o ouro, existe uma grande área de flores de diversas cores, batizada na época pelos alemães de Palzamina. O curioso sobre as flores é que se uma pessoa colhe muda das flores, algo de diferente passa a acontecer na família, como a queima de uma casa, acidentes, assassinatos, separações. 

O local possui várias nascentes. Inclusive, foram feitos exames da água pela Paranapanema, empresa que asfaltou o trecho até Planalto. O laudo atestou que a água é de excelente qualidade.

Existem inúmeras outras lendas associadas ao rio Siemens. Contam que uma mulher de branco aparecia para os rapazes nas noites de sexta-feira, numa estrada próxima ao rio Siemens, aparecia e sumia repentinamente.

Conta-se que, certa vez, dois amigos estavam pescando à noite e foram surpreendidos por uma forte tormenta. O vento balançava fortemente a mata ao lado do rio. Os dois homens saíram correndo, com a finalidade de retornar para casa, quando chegaram próximo à pedreira perceberam que não havia vento algum, o céu estava estrelado, sem indício qualquer de tormenta.

Alguns dias depois, um caçador de pombas encontrava-se no mesmo local e, sem explicação alguma, os dois canos de sua espingarda dispararam, levando-os a cair dentro do rio. Uma outra noite, na mesma localização, um morador local estava pescando e avistou um animal estranho, que lhe pregou um grande susto. Ele estava um pouco distante, porém resolveu atirar no animal. Quando disparou na direção deste, ele duplicou de tamanho e correu em direção ao homem. No ataque, o homem perdeu anzóis e espingarda, sem contar seus apetrechos de pescaria.

Por volta do ano de 1980, na residência de Silvino Kipper, em Santa Cecília, moravam Silvino e esposa, a filha mais nova com seu esposo e seu primeiro filho. Ao jogar comida para os cães, dona Idalina Maria Kipper chamou o genro para ver o bonito cachorro branco, que estava em meio aos cães policiais. Era um lindo cachorrinho peludo branco luzente.

Sugeriram pegá-lo para que ficasse morando com eles. Porém, toda vez que tentavam pegar o cão ele sumia e aparecia alguns metros à frente. Alguém atiçou os cães, que eram ensinados, para que esses o pegassem, mas os cães não conseguiam, nem sequer pareciam ver o cachorrinho. A perseguição continuou até 800 metros do rio Siemens. Quando estava perto do rio o cão branco pulou na água e sumiu. Era uma noite de lua cheia. E o senhor Irineu se deu conta de que estava no meio do mato, perto do rio; o medo foi seu companheiro até chegar em casa, ofegante pelo susto. O pequeno cão peludo e luzente está presente na memória dele até hoje. Jamais encontrou alguma explicação pelo fato vivido.

Fonte: Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Contos e Lendas do Paraná (O fantasma do Coronel)

por Josué Corrêa Fernandes (Ponta Grossa)

Chopinzinho, no Sudoeste do Paraná, é uma cidade aprazível, onde gaúchos e catarinenses se misturaram ao elemento nativo, dando origem a uma comunidade trabalhadora e ordeira. Essa localidade já existia desde o século passado, quando ali foi estabelecida a Colônia Militar do Chopim, por ordem de D. Pedro II e com o objetivo de preservar as fronteiras nacionais da cobiça de argentinos e paraguaios.

Documentos e a própria tradição oral comprovam que, no mesmo local onde hoje se desenvolve a cidade foi erigida a sede da Colônia, sob o comando do coronel San Thiago Dantas, ancestrais de brasileiros ilustres, como o Primeiro Ministro parlamentarista do governo Goulart. O Salto Santiago, aliás, onde se construiu a grande hidrelétrica, também foi batizado em homenagem àquele intrépido desbravador.

Foi em Chopinzinho que iniciei, de fato, a minha carreira de juiz de direito. A casa, onde passei a residir, primeiro com minha família, ficava bem próxima ao Fórum, num morro de difícil acesso onde já se erguiam outras residências em meio à mata um tanto densa.

Por esses tempos, falava-se que tal lugar serviu de cemitério aos soldados da Colônia e que,  por isso, desrespeitada a finalidade de campo santo, eram frequentes as aparições de almas penadas, exigindo a desocupação da área... Filho de pai galego, nunca dei crédito a tais estórias, muito embora, no fundo, não esquecesse de velha advertência ibérica: "no creo em brujas, pero que las hay, hay"...

Meses depois que ali aportei, numa madrugada de verão forte, fui acordado pelo chamado insistente da empregada que, pálida e tremendo, dizia haver avistado uma "visagem de soldado" na orla do pequeno bosque dos fundos. Vim até à janela e, auxiliado pela claridade da lua cheia, nada vi, mas a moça insistiu:

- Ele tava parado bem lá, perto do pinheiro; era grande, barbudo e tinha espada. Quando fiz barulho, ele andou no meio das árvores e sumiu!

Peguei, então, uma lanterna e o revólver e me dirigi até o ponto indicado. Iluminei para lá e para cá, nada enxergando. Não muito convicto de me aprofundar na procura, adentrei poucos passos na mata, logo tropeçando em alguma coisa. Focalizei a lanterna, abaixei-me e vi que se tratava de um pedaço de laje com palavras escritas. Juntando vagarosamente as letras e suprindo as que faltavam, consegui ler: 

"... restos mortais do capitão-bacharel Francisco Clementino de San Thiago Dantas, Orae por elle".

Sufocante que estava o calor, de súbito senti-me enregelado e invadido por peculiar calafrio que me cruzou o corpo de norte a sul, ouriçando-me todos os pelos imagináveis. Disciplinado infante do CPOR, procurei não voltar em marcha acelerada, mas normalmente, para o interior da casa, afirmando que nada encontrara. Debaixo das grossas cobertas não consegui acalmar o inusitado frio, mas desarquivei dos fundos do meu inconsciente a oração pelas almas do purgatório, tantas vezes repetida na minha antiga função de coroinha. E ansioso, com os olhos estatelados, aguardei o alvorecer.
Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

sábado, 11 de maio de 2024

Contos e Lendas do Paraná (Município de Jaguariaíva)

A SANTA DO PAREDÃO

Conta-se que pelos idos de 1820, quando Jaguariaíva ainda não existia e era apenas uma vasta área de terra cheia de matas e campos, num raio de mais de uma centena de quilômetros, pertencendo à Vila de Castro, surgiu a lenda da Santa do Paredão.

A origem exata da imagem da santa ninguém sabe. O que chama a atenção até hoje é o surgimento do desenho de uma imagem na pedra, num paredão, a uns 80 metros de altura, trabalhado pela natureza de modo admirável.

Muitas histórias surgiram com o passar dos anos. Uma delas, contada pelo senhor Jostino de Miranda, morador na época, nas imediações do paredão, diz que, às margens do rio, alguns homens caçavam e já depois do meio-dia, sem que tivessem tido sucesso na caçada, ouviram repentinamente os latidos dos cães furiosos. Correram para verificar o que acontecia. Os cães continuavam latindo sem parar. O terreno era muito irregular, mata muito fechada e os cachorros haviam se embrenhado num local de acesso muito difícil. Após vencer os obstáculos, verificaram que os cães, muito bravos, latiam e investiam contra alguma coisa.

O primeiro caçador a chegar, vê então uma cena da qual nunca mais se esquecerá: os cães, aos pés de um alto paredão de pedra, latindo contra um facho forte de luz, que dele emanava. Essa visão foi testemunhada por todos os caçadores que viram. No meio do mato, ao pé do paredão, no meio de uma forte luz azulada, estava aparecendo a imagem de uma santa. Uma imagem de santa que eles nunca tinham visto, porém imaginavam que era de uma santa.

A religiosidade aflorava naquela época e os caçadores imediatamente voltaram para o povoado, a quase trinta quilômetros, contando a todos o que viram. As pessoas ficavam admiradas e logo começaram a visitar o local. E, não muito tempo depois, iniciaram-se algumas romarias para ver a Santa do Paredão.

Alguns já falavam em construir uma capela, mas, de repente, ninguém mais via a santa. Ela havia preparado uma surpresa. A imagem, vista pelos caçadores, inicialmente na parte baixa do paredão, não mais aparecia ali. As aparições pararam por um tempo. Mas não demorou muito para que voltassem a acontecer. Só que, a partir de então, no centro do paredão, em local a que jamais se poderia chegar, pois o paredão tinha cerca de 100 metros de altura. Esses fatos, que tiveram registros a partir de 1820 em Jaguariaíva, contêm uma curiosa coincidência com o grande fenômeno religioso do Brasil. Aconteceram, paralelamente, às aparições de Nossa Senhora Aparecida, a versão negra da mãe de Jesus, no Rio Paraíba, no Estado de São Paulo.

A época era a do tropeirismo. Por ali passava o histórico Caminho de Viamão. E os maiores divulgadores da história da Santa do Paredão foram os tropeiros, que transportavam de tudo, levando de Viamão-RS a Sorocaba-SP mulas carregadas de produtos.

Ao passarem por ali, encantavam-se com tudo que ouviam. Era na época o único meio de transporte e comunicação. Eles se incumbiam de espalhar pelo Brasil a fama da religiosidade da região e da Santa. Isso com certeza ajudou a convencer o Imperador do Brasil, Dom Pedro I, no dia 15 de setembro de 1823, a assinar o alvará elevando a Fazenda Jaguariaíva à condição de Freguesia.

O paredão em que aparece a Santa fica na zona rural do município de Jaguariaíva, a 22 km do centro da cidade, na estrada PR 092, ainda sem pavimentação, que liga a cidade com o Distrito Eduardo Xavier da Silva, Sertão de Cima e o município de Doutor Ulysses. Existem placas que orientam o motorista para chegar com facilidade ao local, que é muito frequentado por romeiros.

No mês de maio, último domingo do mês, acontece uma Caminhada Ecológica ao local, com a participação de milhares de pessoas, que saem a pé do centro da cidade e caminham os 22 km até o local, onde acontece missa e festa com barraqueiros. Muletas, fotos e objetos dos mais variados são depositados num local parecido com uma gruta durante o ano todo, quando velas são queimadas em agradecimento por graças recebidas.

Muitos são os testemunhos de pessoas que alcançaram cura ou graças diversas pela intercessão à Santa do Paredão.

Fonte> Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Contos e Lendas do Paraná – 21 (Municípios de Clevelândia – Quitandinha)

Município de Clevelândia
A ESCRAVA

Há muitos anos atrás, em uma fazenda de nosso município, um fato curioso aconteceu. Certa amanhã de inverno, dona Maria esquentava-se na boca de seu fogão à lenha, quando sua escrava começou a falar, que quando morresse, não gostaria de ser enterrada no cemitério municipal e sim no cemitério da fazenda. Ali era o lugar que ela gostava. Dizia ela: “aqui eu nasci, aqui vivi e aqui quero ficar; naquela colina de onde poderei ficar enxergando os meus senhores, os quais foram tão bons para mim”. 

Sua patroa ria muito e não ligava para o que ela falava.

Como, naquela época, morriam muitas crianças ainda bebês, do chamado mal dos sete dias, a fazendeira fez um cemitério para as crianças, bem embaixo de um lindo pinheiro. Foi todo cercado com uma linda cerca branca. Muito tempo se passou e a escrava faleceu. Foi velada na fazenda, depois colocada em uma carroça para ser enterrada no cemitério municipal.

Porém, para sair da fazenda era preciso passar bem ao lado do cemitério das crianças e veja só o que aconteceu: quando chegaram bem perto do cemitério da fazenda, a carroça parou e os bois não iam nem para frente nem para trás. Puxavam, batiam nos bois, gritavam e nada adiantava. No mesmo instante, dona Maria lembrou do pedido que a escrava havia feito e determinou que voltassem, pois ela seria enterrada no cemitério das crianças, assim fazendo a vontade da escrava.

Os bois, então, começaram a andar sem que ninguém precisasse comandá-los. Andaram e chegaram até o portão do cemitério ali parando. Enterraram a escrava ali, realizaram seu último pedido, seu desejo de permanecer para sempre perto de seus senhores. Como dizia a escrava: “aqui nasci, aqui vivi e aqui quero ficar”.
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Município de Quitandinha
O CEMITERINHO

Existe na localidade de Reis um cemiterinho semi-abandonado, cuja história registramos. Havia na localidade de Reis um homem de mau caráter de nome Antônio Chato, o qual vivia com uma mãe solteira, com um filhinho de nome Virgílio. Antônio maltratava a amásia, como também o inocente filhinho. A criança apanhava todos os dias. Muitas vezes a mãe da criança fugia de casa pelos maus tratos recebidos. Antônio então batia na criança para que a mãe, atraída pelo choro, viesse em socorro do filho, quando apanhava também. 

Antônio Chato amarrava a criança numa árvore, deixando ali um pote de barro com feijão e farinha para sua alimentação, enquanto o casal passava o dia fora. 

Algo de estranho começou a acontecer quando o menino ficava amarrado em dia de chuva, não se molhava. Uma força divina o protegia. 

Certa vez Antônio Chato fez um colete cravado de espinhos por dentro e também uma touca com espinhos e vestiu o menino, enquanto o deixavam a sós. Desta vez o menino morreu pelos maus tratos recebidos.

Os pais sepultaram o menino no mato e deram como desaparecido. Passado algum tempo, o caso foi denunciado à polícia da Lapa, a qual obrigou Antônio Chato a dar conta do menino. Levados ao local e desenterrada a criança, nova surpresa: seu corpinho estava intacto, tal qual havia sido enterrado.

Uma piedosa senhora de nome Francisca Xavier de Oliveira, tendo obtido uma graça por pedido que fez ao menino, mandou cercar o local da sepultura e confeccionar a imagem de um anjo com o nome de Anjinho Virgílio, e a colocou em cima da sepultura.

Anjinho passou a ser objeto de devoção para o povo do lugar.

João Mendes (curador) mandou construir o cemitério que passou a servir para enterro de outras crianças mortas nas redondezas e uma capelinha para o Anjinho Virgílio. Hoje a capelinha foi demolida e a imagem do anjinho transladada para a residência de Jeremias Mendes, o qual mandou reformar e pintar a imagem, juntamente com a coroa de espinhos.

Fonte> Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Contos e Lendas do Paraná – 20 (Palmeira – Pontal do Paraná – Palmas)

PALMEIRA

A lenda da araucária

Era uma vez duas tribos de índios inimigos. Um certo dia o caçador da tribo foi caçar e encontrou uma onça; ali também estava a curandeira da tribo inimiga, pela qual havia se apaixonado. O índio matou a onça e se aproximou da índia, que se assustou e acabou desmaiando.

Os índios da tribo inimiga encontraram os dois ali, o índio à beira do rio com a índia nos braços, pensaram mal do que viram e o mataram a flechadas. Ele morreu cheio de flechas pelo corpo.

Diz a lenda que ele se transformou numa araucária e a índia numa gralha azul e as gotas de sangue que pingaram eram os pinhões que a gralha azul enterra. As flechas eram os espinhos e o índio, a árvore.
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PONTAL DO PARANÁ

Figueira do corpo seco 

Caro leitor preste atenção 
Na história que vou contar 
Este fato ocorreu no litoral 
Do Estado do Paraná

Há muitos anos passados
Na época da escravidão
Os negros trabalhavam duro
Em troca de um pedaço de pão

Na localidade ribeirinha
Chamada de Guaraguaçu
Havia um patrão temido
Por todos os negros do sul

Os negros não tinham direitos
O patrão era um carrasco cruel
Mandava escravo para o tronco
Depois deixava ao léu

Um dia um escravo fujão
Ao ser capturado pelo capataz
Foi colocado no tronco
Sendo espancado até demais

O local da execução
Foi num mato fechado
Ficando o corpo do escravo
Naquela árvore amarrado

O negro não resistiu
A tamanha agressão
Vindo o pobre a falecer
Sem receber extrema unção

A figueira com os anos
Foi sua casca fechando
Ficando o corpo do negro
Ao tronco preso secando

Hoje quem visitar o Guaraguaçu
Deve aproveitar para conhecer
A figueira do corpo seco
Que lá está para quem quiser ver.
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PALMAS

História manchada de sangue

Existiam em Palmas três grandes aldeias indígenas. Uma do Cacique Viri, outra do Cacique Condá e uma terceira do Cacique Vaiton. Cacique Viri, possuído pelas influências dos bandeirantes, que pensavam em tomar essas terras, começou assim a transferir poderes aos bandeirantes, agora fazendeiros.

O cacique, encantado com viagens ganhas para Curitiba e Caçador junto com os fazendeiros, começou a ceder as terras. O cacique Condá, porém, orientava o cacique Viri a não fazer essas trocas, até que foi corrompido para levar toda sua tribo a Chapecó, deixando livres as terras que habitavam.

Enquanto isso, o cacique Vaiton preparava um ataque à tribo do cacique Viri. Este protegeu-se com os fazendeiros, que com armas de fogo e armas brancas esperaram numa tocaia toda a tribo do cacique Vaiton. O local do ataque foi o atual Parque da Gruta. 

Numa vala, cheia de pedras e água, morreram todos os indígenas da tribo do cacique Vaiton. Hoje em dia, ainda se ouvem gritos desses indígenas no parque.

Fonte> Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Contos e Lendas do Paraná - 19 (Esperança Nova – Paranaguá)


ESPERANÇA NOVA
Quebradeira

O caso ganhou destaque na imprensa da região de Umuarama, quando no ano de 1994, na estrada Jequitibá, distrito das Três Vendas, município de Esperança Nova, uma casa assombrada causava medo, risos e incredulidade nas pessoas. 

No sítio do senhor Derso moravam o seu Neno, a esposa e três filhos; sendo uma menina e dois adolescentes. Na condição de empreiteiros, a família do seu Neno, por mais que trabalhasse, era considerada muito pobre pelos vizinhos sitiantes. Porém, ninguém desabonava a conduta honesta daquela gente simples e humilde. Uma doença nos olhos obrigou seu Neno a retirar um olho, colocando no lugar uma espécie de burca, deixando a família ainda mais necessitada de recursos financeiros.

Certa feita, determinados fenômenos passaram a acontecer na casa daquela família: xícaras, pratos e copos amanheciam quebrados. Garfos entortados podiam ser vistos pela casa. Tochas de fogo acendiam sozinhas e o telhado da casa se encheu de buracos. Seu Neno comunicou o assombro para o patrão, que veio ligeiro de Curitiba para constatar o fato. 

Tamanho foi seu susto, quando um dia dormia tranquilo e, no  meio da noite, às escuras, sentiu a cama suspensa. Aí sim a notícia chegou aos jornais e emissoras da região, culminando nas visitas e orações de crentes, curiosos, padres, pastores e espíritas. 

A filha do Zé Turilho dizia, por exemplo, que o seu rosário havia quebrado em diversos pedaços só por ter se aproximado da casa. O Zé Carlos ofereceu lar aos meninos. O povo dizia que a assombração destruiria com tudo. 

O padre de Pérola achou por bem transferir a família para uma casinha no pátio da Igreja das Três Vendas. A vizinhança ajudava com donativos. A comunidade se comprometeu a ajudar com dinheiro aqueles assustados moradores. Mas, seu Quintino e outros poucos vizinhos não acreditavam naquilo; chamaram a polícia, que visitou o local, conversou com os membros da família e se foi. 

Entretanto, investigadores deixaram na casa uma câmera para filmar o “fenômeno”. Tamanha foi a surpresa, quando a polícia viu as imagens dos sorrateiros moleques, jogando tijolos no telhado, quebrando e danificando os móveis e objetos domésticos. 

Conduzidos à delegacia, confessaram tratar-se de um plano que visava arrecadar dinheiro para reverter o estado de pobreza em que se encontravam. Liberados após os depoimentos e sermões, a família retornou à tal casa assombrada, onde vive até hoje, sem maiores alaridos ou quebradeiras.
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PARANAGUÁ
A lenda do brejo que canta

Cheguei a conhecer, já octogenário, o João Bomsinho, que tinha um sítio lá para as bandas do Porto dos Padres, assim chamado o lugar onde tiveram os Jesuítas uma fazenda de criação, na foz do Imboguassu. Neste sítio o velho cultivava algodão e foi ele quem me contou a história do
“Brejo que Canta”:

A meio caminho da cidade, na embocadura do Imboguassu, há um terreno vasto e alagadiço, onde o lírio do brejo cresce viçoso. Com as chuvas o lugar se transforma num lago e com bom tempo prolongado continua a ser temível atoleiro, do qual o gado por instinto se afasta, receoso de desaparecer no sumidouro.

E assim falava, na sua pitoresca linguagem, o João Bomsinho:

– O brejo canta, sim Sinhô, mas só uma vez no ano, à meia-noite, justa de quinta pra Sexta-feira santa e nessa hora quem por ali passa, ouve muito bem o batido dum fandango, ao som de duas violas e da cantiga dos violeiros. Deus permite que saiam as suas almas do purgatório na noite da paixão pra correrem o fado, em castigo da ofensa ao “Sinhô Morto”.

– Almas de quem? perguntei.

– “Dos violeiros e dos dançadores, os excomungados que cantavam e fandangueavam na noite em que nosso Sinhô morreu. Escuite mecê; no lugar do brejo era um terreno enxuto, bom, de terra branca e firme e nele morava em casa de pedra e cal um tal de Roberto Inglês, ruivo e herege como o diabo, não gostava de Deus nem dos santos. Decerto esse mardito era criminoso e até diziam que fora pirata.

“O meu avô que o conheceu de vista, sempre que o encontrava fazia o sinal da cruz e com ele nunca quis parceria, receoso do castigo do céu. Ora, numa quinta-feira maior estava a vila entregue aos ofícios da semana santa, enlutados os moradores e até o capitão-mor dera ordem à milícia que fizesse a guarda, com a boca dos arcabuzes voltada para o chão e não permitissem cantorias nem folguedos até a hora da aleluia, sob pena de cadeia. Quando o danado, em conluio com o “coisa ruim”, resolveu uma folgança pra essa noite.

“Andava por aqui nesse tempo o coronel Afonso Botelho, que assistiu à missa devotadamente com um laço de crepe no copo da espada, e a Câmara, com o estandarte do rei, de luto, que o vereador mais moço conduzia, foi incorporada à matriz para fazer guarda ao Sinhô Morto.

“Tudo era respeito ao dia. Mas no caminho do Porto dos Padres, o inglês, zombando das coisas santas, procurou e achou uns infelizes que aceitaram o convite. À meia-noite estrondeava o fandango, longe da vila e por isso despercebido da autoridade. A cachaça corria aos copázios. Maneco Eduvirges e Domingos Pedrão, violeiros e já embriagados, cantavam quadrinhas blasfemas, desafiando a majestade divina, com aprovação do diabo ruivo. Quando cantavam esta:

Si Deus morreu porque quis
Não é caso pra chorá
Bate firme, minha gente
Bate forte, até suá

“Nesse instante, a casa moveu-se e todos sentiram que afundava, mas antes do alarme ainda se ouviu o Pedro e o Eduvirges cantarem mais esta barbaridade:

Si morreu pra nos salvá
O fio do padre eterno,
Ele que vá buscá nois
Lá nas profunda do Inferno!

“O movimento acentuou-se e o pânico se manifestou naquelas almas entenebrecidas pelo vício e pela impiedade, despertada nelas a compreensão do desastre e morte inevitável. O primeiro impulso foi de fuga, mas quando tentaram evadir-se já as portas e janelas estavam entaipadas pelo lodo mole que invadia o interior. 

“Apagaram-se as luzes. Nas trevas e começando a respirar dificultosamente, aqueles desgraçados se debatiam. Não havia salvação possível! O fim pela asfixia era fatal. Não tardou a agonia. O terreiro, há pouco ainda sólido, com laranjeiras e cajueiros, dum pra outro instante virou lodaçal e tudo se afundou.

“Consumada a tragédia, a habitação desapareceu no abismo e com ela quantos estavam no fandango sacrílego e fatal. No dia seguinte os sitiantes vizinhos, que iam para a vila assistir à missa da sexta-feira santa, viram com espanto um brejo no local onde de véspera se erguia a moradia do inglês e isto sem que tivesse chovido. E brejo ficou o lugar maldito. Na noite de quinta-feira santa do ano seguinte, alguém por ali passando, noite alta, ouviu claramente o batido dum fandango, ao toque das violas e o cantar dos violeiros. Correu espavorido a contar na vila o prodígio que a tradição trouxe, do Brejo que Canta. De geração em geração, até o presente, vem enchendo de terror a gente supersticiosa que a tudo se arriscará neste mundo, menos transitar pela estrada que margeia o trágico alagadiço, na noite da paixão de Jesus.”

Fonte> Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

sábado, 9 de dezembro de 2023

Contos do Paraná (Em Cascavel tem cascavel)


(por Moysés Paziornik)

Há dias nesta coluna, um leão do Lions, sem ferocidade, cascavelense, sem veneno, explicou por que Cascavel continua a chamar-se Cascavel, apesar de não ter mais cascavéis.

A primeira vez que lá fomos furou o pneu do nosso avião. Era um Douglas, da Real. Vinha de Foz Iguaçu. Um dos passageiros desceria em Cascavel. Daí a parada extraordinária.

No campo de pouso, campo mesmo, que todo coberto de capim original, nem bem o aviãozinho encosta, a asa direita baixa, o bicho trepida, rabeia. Na freada brusca, parece que vai tombar.

No susto:

- Que foi? Que foi?!

O jeito risonho do calmo e gorducho do piloto vem nos desassustar.

- Não foi nada de grave.

Desce, volta para mostrar.

- Furou o pneu da direita. Acertei bem nos cravos desta ferradura. Algum cavalo a perdeu bem onde decidi pousar. Na cidade deve ter borracheiro. Enquanto conserto o pneu — calculo meia hora, uma hora — podem descer, passear por aí.

Do alto a gente vira na extensão imensa da impressionante floresta falha e mais falhas, chão coalhado de troncos de árvores recém derrubadas. De cortar o coração. De longe em longe, casebres isolados. Depois de algum tempo o avião começara a baixar em direção a duas fileiras de casas, ladeando rua de barro. Uns duzentos metros, se tanto. O vermelho vivo das telhas mostradas a pouquíssima idade da "cidade".

A rua começava quase que diretamente do campo de aviação, situado num plano mais elevado. Passeando, deu para constar, casas baixas, de madeira... Carroças. Cavalos. Jipes. Tudo. Caminhões, muitos. Carros, poucos. Enlameados. Tudo enlameado. Homens de botas, sapatões. Mulheres, uma ou outra. Armazém. Botequins, um maiorzinho.

Entramos. Provocamos o balconista.

- Tem cascavel em Cascavel?

- Só nos matos. Aqui na cidade tinha, agora não tem mais.

- Então me sirva um refrigerante.

- O quê?

- Um refrigerante, gasosa.

- Ah, sim! Gasosa. Temos. Da qual quer?

- De framboesa, (coca-cola ele não conhecia, lá ainda não tinha chegado). E bem gelada.

- Gelada? Só fresca, frescor do porão. Serve? (lá, eletricidade ainda não tinha chegado).

- Serve. Neste calorão. A sede está de matar. Quanto custa?

- Cinco mil réis.

- O quê? Está louco? Em Curitiba sai um mil réis cada garrafa.

- Em Curitiba? Aqui é Cascavel. Por mil réis, vá matar sua sede lá em Curitiba. Ora veja só. Passe bem. Boa Viagem.

- Não, não, me dê assim mesmo.
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E ainda diziam:

Cascavel em Cascavel? Não, só nos matos, na cidade não tem mais.

Não, hein? Mas, que a gasosa estava boa estava. Naquele calorão, com aquela sede, valia bem os cinco mil réis. Ou era cruzado? Ou era cruzeiro? Ou era... Que dinheiro será que era?

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

domingo, 19 de novembro de 2023

Contos do Paraná (“Meu menino”, por Pedro Ramblas Filho)

O ônibus, como sempre naquele horário, comecinho da noite, estava abarrotado de gente. Operários, comerciárias, um que é um sujeito de terno desalinhado e pasta 007, estudantes… todos mudos, cansaço estampado nos rostos. De repente, uma ordem gritada lá na frente por alguém ao lado do motorista acordou os sonolentos e sobressaltou os acordados.

- Encosta que é um assalto! E fica todo mundo quieto, quero ver todo mundo manso!

O cano do revólver, a dois palmos da cabeça do motorista, tremia um pouco. No meio do ônibus, uma senhora ensaiou gritar. Foi calada por novas ordens nervosas:

- Quieta aí!

- Todo mundo calado!

O do revólver tinha dois comparsas, um na porta da frente e outro perto da porta do meio. O motorista encostou devagar no meio da quadra, na frente de dois terrenos baldios, perguntou ao do revólver se lá estava bom. O assaltante respondeu que sim e, sem desviar o revólver da cabeça do motorista, explicou como ia ser; com calma, um por vez em cada porta, os passageiros iam deixar o ônibus; na saída iam deixar bolsas, carteiras, anéis e relógios com "os companheiro"; que não se preocupassem, os documentos todos iam ficar no ônibus; que ninguém chamasse a polícia logo, senão o motorista "dançava"; que ninguém reagisse dentro do ônibus, senão também "dançava". 

O cobrador, nessas alturas já tinha sido limpado.

Devagar, como ordenado, os passageiros começaram a descer, deixando antes com os assaltantes tudo que fora pedido, mais as bijuterias, por via das dúvidas. Uma senhora gorda que chorava baixinho, desesperada que a aliança não saía do dedo, foi empurrada por um dos assaltantes:

- Vamos logo, dona, pode ficar com a aliança.

Por pouco, a gorda não se esborracha no chão.

Já tinha saído quase metade dos passageiros quando o do revólver encarou uma senhora de seus trinta e poucos anos, na fila para deixar a bolsa na porta da frente. Não foi bem uma encarada, mais um olhar de curiosidade. O assaltante insistiu alguns segundos sem tirar os olhos, a senhora era só medo.

O assaltante continuou, mas seu rosto foi se descontraindo, ensaiou um sorriso, os olhos brilharam, e então exclamou;

- Tia Carmen!!

A jovem senhora, apavorada, não conseguiu pronunciar palavra. O assaltante repetiu a exclamação:

- Tia Carmen!! Não lembra de mim? O Luiz, Luizinho, seu aluno lá da Graciliano, lembra?

A senhora olhou com curiosidade o assaltante, aos poucos seu rosto se descontraindo, tomando cor, os olhos ganhando brilho.

- Luizinho! É você mesmo, Luizinho! Mas como você cresceu, meu menino.

Nessas alturas, parara toda movimentação dentro do ônibus, passageiros e demais assaltantes, ainda sem entender bem a situação, pareciam avaliar o crescimento do 'Luizinho". Ele tinha coisa de 1,80 metro de altura, ombros largos, cabelos pretos, aparentava entre vinte e vinte e cinco anos. Pela primeira vez baixou o revólver, passou-o para a mão esquerda, a direita estendeu num respeitoso cumprimento.

A professora perguntou de sua vida, fingiu espanto, ao sabê-lo casado e já com dois filhos. Voltou-se então para os demais passageiros, agora já sorrindo, e fez a apresentação, com orgulho:

- O Luizinho. Meu menino mais inteligente e bonito, minha primeira turma de alfabetização, primeiro ano de professora, na Escola Graciliano Ramos, lá na Fazendinha... já passou tanto tempo, né meu menino?...

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Contos do Paraná (“A teoria do iceberg”, por Roberto Muggiati)

Meu protetor de tela é um iceberg, passo o dia diante dele. Nenhuma paixão especial por icebergs. Os tons azul-cobalto da foto lembram o céu de Curitiba ao entardecer. Essa imagem do iceberg veio pela internet: uma namorada queria que eu não esquecesse a cor do céu que nos protegia. A namorada passou, a imagem continuou na tela em homenagem à Teoria do Iceberg, do velho Hemingway: “Se escrever apenas a verdade, um escritor pode omitir muitas coisas. O leitor sentirá essas coisas que foram ocultadas com tanta força como se o escritor as houvesse explicitado. A dignidade de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima da água.” O autor da imagem do iceberg também tinha sua teoria. Fez uma montagem de várias fotos para ilustrar o conceito de que “nem tudo o que se vê é necessariamente real.

O céu de Curitiba me leva a outro episódio — a outro céu noturno, e outra namorada, de um tempo bem mais distante. Éramos crianças, parentes remotos, estranhos um ao outro, e de repente nos descobrimos. Numa festa de família, na janela do vigésimo andar de um dos primeiros arranha-céus da cidade, espetado solitário na paisagem. Loucos para viver e falar, nos enlaçamos, ávidos por conhecer um ao outro. (O que conversam os amantes? Eles nunca sabem, eles nunca lembram.) E então, no descampado do aeroporto, vimos  as luzes de um avião que piscavam, cortando o horizonte como notas numa pauta musical. O avião, de destino insondável, tateava com suas lanternas vermelhas o grande mistério do futuro. Comungamos em silêncio a mesma emoção. A esperança de partir para o mundo, quem sabe juntos? Foi nossa epifania — perdoem o clichê. Um biólogo definiria todo aquele cataclismo entre nós como uma mera erupção de feromônios e testosterona. Não importa, a atração era real, como nunca havíamos sentido antes.

Meia-noite com ela e as estrelas — e então a noite acabou. A nossa história seria uma crônica de amantes malsinados, atravessando décadas. Uma estória entrecortada, desencontrada, que me arrastaria por tristes oceanos de lágrimas... Desculpem esse crime de lesa-TI. Sim, a Teoria do Iceberg merece uma sigla, pertence à ciência, é um teorema, a equação que fornece le mot juste (a palavra certa). A emoção tem de estar sempre ali, mas é a maior inimiga do bom texto.

Passamos um ano e meio longe um do outro. Fui morar em Paris, quando voltei ela estava casada. Mal casada, já quase descasada. Numa escapada furtiva à Livraria Ghignone, marcamos um encontro em Guaratuba. Cheguei lá, ela não. Sumiu, desapareceu do meu mapa. Para sempre? Aprendi que nada é para sempre. Em 1968 — o mundo em chamas — eu casado, em São Paulo, dou de cara com ela na Rua Augusta, numa manhã de inverno solar e vento cortante.

— Que coisa incrível! Você por aqui?

— Trabalho na Veja. E você, como vai sua vida?

— Não vai acreditar! Sou aviadora, com brevê e tudo! Vou buscar jatinhos nos Estados Unidos. Outra noite, em Nova York, ouvindo o Gato Barbieri, pensei muito em você...

(Ela conhecia minha paixão pelo jazz. Uma vez, nos tempos inocentes de Curitiba — ela de camisola eu de porre — eu fiz serenata para ela com o saxofone tenor.)

No vento frio da Augusta, minha mulher, ciumenta, cortou o clima. Nem pudemos trocar telefones. E fiquei outros vinte anos sem saber de — não, não vou dizer seu nome... Afinal, isso não se faz num conte à clef (conto de fadas). 

Aos poucos senti toda a extensão de sua doce vingança. Eu não soube defender aquela absurda epifania adolescente, que era tudo para nós. Ela, sim, foi à luta, aprendeu a pilotar, sequestrou o nosso avião e levantou voo com suas luzes vermelhas sumindo na cerração da velha noite curitibana. Eu a via cortando a imensidão dos espaços infinitos. Pensando em mim, quem sabe?

Um amigo me ensinou um dia: não se esforce muito para lembrar as coisas boas, elas podem se desgastar e se perder. Mas, naquele meu triste fim de casamento, eu não pensava em outra coisa — na minha doce e cômica Valentina. Como doía a sua ausência nas noites suicidas do inverno paulistano.

O coração é um músculo flexível. O casamento acabou, outro casamento começou, dois filhos, até cachorros. O matrimônio que nunca sonhei ter. Eterno enquanto durou. Uma noite, livre de novo, num shopping de Curitiba, lançando um livro, ela entra de novo na minha vida, na fila de autógrafos.

— Ainda se lembra de mim?

Desta vez trocamos telefones. Não pilotava mais, estava também livre, totalmente. Marcamos um encontro no Rio. Fui esperá-la no aeroporto do Galeão. Subimos a Serra para o meu chalé em Itaipava. Jantamos no velho Farfarello, era dia 29, pedimos Gnocchi della Fortuna, al cricco e al pesto, com direito a uma nota de un dollaro debaixo de cada prato. Loucos para viver e falar, bebemos duas garrafas de vinho. Em uma hora traçamos os planos de uma vida inteira. Não lembro como dirigi o carro até o chalé. Antes de desmaiarmos na cama, ela ainda perguntou:

— Agora vamos ser felizes?

Acordou-me no meio da madrugada. Queria porque queria descer a Serra ali na hora, fazer logo nossa mudança definitiva para Itaipava. Bêbado e cansado, não resisti. Foi nossa perdição. No meio da descida, despenquei pelo despenhadeiro. Dormi na direção e acordei no fundo do socavão, preso às ferragens. Sobrevivi, com pequenos arranhões. Ela pagou a fatura. Foi jogada para fora do carro e quebrou a coluna em vários pontos. Na queda, tive a impressão de ouvi-la gritar: “Estou voando!”

O acidente aconteceu logo depois do viaduto sobre o rio Rolador. Lembrei da Serra do Rola-Moça do Mário de Andrade, que descreve um casal em fuga. “Como eles riam! E os risos também casavam com as risadas dos cascalhos.” Subitamente, “dão noiva e cavalo um salto, precipitados no abismo.” Poesia numa hora dessas?

Por minha culpa, ela iria passar o resto da vida presa a uma cadeira de rodas. Não fomos finalmente felizes. Eu conseguia suportar a dor até o escurecer, depois a coisa ficava terrível por volta da meia-noite, e às três da manhã era o grande mergulho na noite escura da alma. Pensei em suicídio: lasanha com chumbinho, como aquela atriz da TV. Ou caipivodca de lichia com carrapaticida (uma variante mais sofisticada do antigo Guaraná com formicida.) Ou um salto espetacular de um vigésimo andar: no bilhete de suicida, inverteria a frase de Eliot: “This is the way the world ends — not with a whimper, but a bang...(É assim que o mundo acaba – não com um gemido, mas com um estrondo...) Mas todas as coisas devem passar e o mundo continua.

Você recupera a maior parte de sua vida, como bens salvados de um incêndio. Eu iria continuar por mais tempo, muito tempo talvez — até a hora de cinzelarem na minha lápide o epitáfio, a definição de vida que tomei emprestada de Cole Porter: “It was great fun, but it was just one of those things.”

Ainda fui vê-la uma última vez. Era como falar com uma estátua. Seu olhar parado não dizia nada. Saí para o dia ofuscante, os olhos cegados por uma cortina de lágrimas e sal. O sol, sem alternativa, brilhava sobre o nada novo. E a história acaba aqui. O mundo mata indistintamente os belos, os bons e os bravos. Ela morreu, você vai morrer e eu vou morrer. É tudo o que posso prometer.
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Roberto Muggiati (Curitiba, 1938) começou a carreira na redação da Gazeta do Povo — completou 60 anos de carreira em março de 2014. Estudou no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, trabalhou na BBC de Londres, colaborou no SDJB e na revista Senhor, além de editor de Manchete, Veja e Fatos e Fotos. Há 45 anos escreve sobre música e política — e a relação entre as duas: de Mao e a China (1968) a Improvisando soluções (2008), passando por Rock/O grito e o mito (1973) e pelo romance A contorcionista mongol (2000) — e mais a caminho.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

domingo, 22 de outubro de 2023

Contos do Paraná ("´Seu` Andrézinho", por Thiago Brandão Neto)


A pedido de um amigo que estava com um pé no altar, o genial D. Francisco Manuel de Mello, escritor português do século XVII, escreveu a saborosa "Carta de Guia de Casados", contendo ensinamentos ainda hoje bastante úteis para casados, noivos, viúvos e quetais.

Um exemplo: Dom Francisco chama de "casamento da morte" a união de uma moça com um velho. E explica: "os velhos casados com moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias".

Pois não era outra coisa o que se dizia do "seu" Andrézinho às vésperas do casamento com Maria, lá em Várzea, lugarejo perdido no interior do Município de Bocaiúva do Sul, a meio caminho de Campinhos e da antiga Colônia Marques de Abrantes. Moça bonita, de cabelo preto e pele rosada, Maria sequer completara 18 anos. Já o "seu" Andrézinho... remanescente dos primeiros poloneses assentados na Colônia, viúvo, estava a caminho dos 83 anos. Homem miúdo de corpo, até que estava razoavelmente conservado para a idade, mas 83 anos são 83 anos. Já ia para uns 30 anos que enviuvara, mas o homem só embestou de casar de novo fazia alguns meses, logo depois da morte do filho único, solteirão. 

"Preciso alguém para me cuidar na velhice", dizia. Daí... Por que com uma moça tão jovem, em vez de alguma das viúvas das redondezas, era a pergunta que ninguém ousou perguntar e ele jamais precisou responder. Mas não tinha casa na comunidade em que não se cochichasse a mesma coisa: "esse não tá casando, tá, sim, é comprando uma petíça nova".

Sucede que "seu" Andrézinho tinha uma chácara de oito alqueires bem montadinha, carroção, parelha de mula, três cavalos, algumas vacas, criação de porco e galinha, plantava dois quartos de milho, um de feijão...

Naquelas bandas, até que era um bom patrimônio. Já a moça Maria, de riqueza só tinha a família: pai, mãe e uma penca de irmãos. Quando "seu" Andrézinho fez o pedido, a mãe da Maria chorou pelos cantos uns três dias; já o pai, esse - como se diz hoje em dia: deu o maior apoio. Parece que até a Maria se encantou com a ideia do casamento.

De cara, ganhou enxoval e sapato de sola de couro - coisa que ela nunca calçaria na vida. E de mais a mais, o velho não haveria de durar por muito tempo... Só o padre Antonio, que visitava o patrimônio duas ou três vezes por ano, se recusava a realizar o casamento. - "Isso é absurdo, é pecado!!" - vociferou quando foi procurado pelo Andrézinho. 

Acabou convencido pelo próprio noivo: - "Se o senhor não casar, a gente se ajunta do mesmo jeito, o que é pecado maior".

A igrejinha de madeira de Ouro Fino nunca vira tanta gente como no dia do casamento. Parecia que estava todo mundo ali para tirar a teima, ou para o churrasco de gordo que viria depois. "Seu” Andrézinho fez questão de esperar a noiva no altar - coisa que não se usava por aquelas bandas — e instruiu Maria para entrar na igreja andando devagarinho, mesmo que música não tivesse. Quando Maria assomou na porta da Igreja, o rosto do velho polonês ficou mais vermelho que de costume. Então ele se curvou pouco para a frente, levou as mãos no peito, curvou mais ainda e, se esborrachou no chão.

"Seu" Andrézinho estava morto! Ataque cardíaco fulminante. Nem desconfiança nem demasia. O pobre homem morreu de ansiedade, sequer pôde desfrutar da noiva.

Pior, é que casamento não houve. E sem casamento, a Maria que não pôde desfrutar o património do Andrézinho. Sem herdeiros aqui, e sem que ninguém conseguisse localizar um parente dele no Polônia, a chácara do Andrézinho acabou passando tempo depois, para as mãos do governo.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Contos do Paraná ("Falcão", de Nilson Monteiro)


Que magias trouxe em suas asas carijós, que romperam 25 mil quilômetros à procura do sol? Que mistérios lhes foram reservados em meio às espécies para merecer dos imperadores chineses extrema consideração, símbolo de prestígios e poder, intocável, que provoca decapitação a quem lhe atravesse a tirar a vida?

Os milhares de olhos grudaram no topo do edifício Associação Rural, no coração de Londrina, à procura da majestade, indiferente, exposta às lambidas do sol na cidade verânica, feito lagarto.

Posudo, estrela, transformado em brilho municipal. Mais procurado que manchete, provocou torcicolo em criança e adultos. Assanhou. Solitário, desde quando despediu-se do gélido Hemisfério Norte. Solitárío, no pano azul do céu londrinense. Solitário, no temor às outras aves. Seu voo é certeiro em direção às vitimas - pombas, pardais e outras aves anarquistas nas frondosas     árvores da praça.

Impiedoso: mata. Feito carcará no sertão nordestino. Fome na favela do O.K. Porém nem tudo é prepotência.

Os pequenos pássaros vingam-se de sua beleza pela própria natureza, comendo insetos envenenados por inseticida. Ele, ao alimentar-se dos pássaros, destrói sua realeza, extingue sua espécie.

Para se manter, é necessário voar mundo. No ano passado, na mesma época, também encantou Londrina, com suas penas carijós, e só a abandonou quando o inverno veio chegando, manso, cinza.

"Espécie esquisita", resmungou Valdevino Cruz, zelador do edifício onde a majestade fez sua morada.

Ele, peregrino, a nova atração desta aventureira cidade de pouco mais de meio século, parece rejeitar o adjetivo. Posa, sim, como a ave mais perfeita do mundo. Este, o que pousou na curiosidade londrinense, parece certo disso. Outros de sua raça, parece lembrar, vivem em palácios como os da rainha Elizabeth ou do então primeiro-ministro soviético Tchernenko ou de reis da Arábia Saudita.

Paradão, com suas asas recolhidas, parece endossar o valor que os homens estabeleceram para sua espécie, Quem olha para sua beleza sabe porque os Papas, na Idade Média, o preservavam tanto, chegando a crucificar atrevidos que sonhassem em matar um deles.

Paradão, parece debochar de armadilhas, arapucas, gaiolas, estilingues, setas, cadeias quaisquer. Ninguém consegue passar ileso ao belo. Há até o caso de um velhinho, no Centro Comercial, que deixou de procurar pernas carnudas com seu binóculo para fixar suas vistas, já fracas, nas penas. Fique sabendo até que algumas lojas, asfixiadas pela recessão, receberam um novo sopro de vida com a venda maiúscula, de binóculos. Ontem cedo, porém, nuvens carrancudas atrapalharam o espetáculo: definitivamente, o peregrino não gosta de frio e não veio para posar em seu palco. Escondeu-se?

Frustrou a quem queria endoidar com a sua beleza. Bateu asas à procura do Sol? Foi raptado por ornitólogos? Quem perdeu, perdeu, vaticinou Valdevino. É provável que volte, quem sabe? Quem sabe deste cigano? Ano que vem, talvez, a cidade repita uma pergunta surrada neste dia: "Já viu???"
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Nilson Monteiro, jornalista e poeta.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.
Imagem por JFeldman