segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Asas da Poesia * 85 *


Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Selva: bela e exuberante;
cria, de rara beleza,
de Deus que, naquele instante,
nominou-a... Natureza!
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Prisioneiro em prisão de porta aberta
(Augusto Nunes in "Os Espelhos da Água", p. 82)

Prisioneiro em prisão de porta aberta
Nas grades dos teus olhos cumpro a pena
A que este amor tão cego me condena
Mas que faz a minha alma tão liberta.

O mal de que te queixas é uma oferta
E eu dou-te a minha vida tão pequena
Em troca dos teus olhos de açucena
Onde a luz deste mundo se acoberta.

Mas impugno a sentença do juiz
E o que nos autos diz a acusação
E que num pobre réu me transformou

Pois nunca fui na vida tão feliz
E se aqui foi roubado um coração
É o meu!... e foste tu quem m’o roubou!
= = = = = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Caminheiro de olhos baços,
em busca dos teus carinhos,
para que servem meus passos,
se me apagaste os caminhos?
= = = = = = 

Hino de
ITABIRA/MG

Tem belezas minha terra
Vou cantar a minha lira
A primeira é mais sublime
O seu nome é Itabira

Ela tem três altas serras
Com a Serra do Esmeril
O seu ferro é dos melhores
É o primeiro do Brasil

Minha terra tão querida
A cidade mais gentil
Mais formosa e pitoresca
Não há outra no Brasil.

Em seus campos verdejantes
Nascem flores a granel
Em seus bosques almejantes
Frutos mais doces que o mel.

Tem o poço d'Água Santa
E as fontes do Pará
Quem de suas águas bebe
Não se esquece mais de lá.

Minha terra tão querida
A cidade mais gentil
Mais formosa e pitoresca
Não há outra no Brasil

Ali canta o sabiá
Patativa e Bem-te-vi
O canário, o pintassilgo
A saudosa juriti.

Ela voa no progresso
Porque ama a instrução
E seus filhos dela esperam
Do Brasil a salvação

Minha terra tão querida
A cidade mais gentil
Mais formosa e pitoresca
Não há outra no Brasil
= = = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Este meu andar sisudo,
que modela a caminhada
já retrata quase tudo
que a vida transforma em nada!
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
ESTÃO VOLTANDO AS FLORES 
(marcha-rancho, 1962) 
Paulo Soledade

Vê, 
estão voltando as flores
Vê, 
nessa manhã tão linda
Vê, 
como é bonita a vida
Vê, 
há esperança ainda

Vê, 
as nuvens vão passando
Vê, 
um novo céu se abrindo
Vê, 
o sol iluminando

Por onde nós vamos indo
Por onde nós vamos indo.
= = = = = = = = =

Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Eu fui náufrago da sorte
em um mar de solidão,
mas teu amor foi suporte
e tábua de salvação!
= = = = = = 

Glosa de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

MOTE:
Se a porta é larga, desvio,
sem luta não tem vitória.
Porta estreita é o desafio
de quem vence e faz história!
Rita Mourão
Ribeirão Preto/SP

GLOSA:
Se a porta é larga, desvio
dos sonhos que eu fui buscar.
Meus passos eu mesmo crio
pois sei que vou me encontrar.

O tempo é meu aliado, 
sem luta não tem vitória,
desafio o inesperado,
meu caminho será a glória,

Com coragem eu me crio,
e toda a luz se abrirá.
Porta estreita é o desafio,
nada mais me deterá.

Transformando este meu mundo
com fé, sigo a trajetória,
o eco ressoa profundo,
de quem vence e faz história.
= = = = = = 

Trova de
LEDA COSTA LIMA
Fortaleza/CE

Se a revolta me alucina
e a solidão me consome,
a saudade sempre assina
seu nome sobre o seu nome!...
= = = = = = 

Poema de
LUCIANA SOARES
Rio de Janeiro/RJ

Ciclo das estações

O ritmo do tempo começa a dançar, 
No inverno, o frio se faz escutar. 
O vento assobia na rua vazia, 
E a chuva cai lenta, trazendo calmaria. 

O verão surge, com o sol abrasador, 
O calor envolve, com força e ardor. 
Mas no mar, as ondas trazem temperança, 
Entre flores e frutos, a vida avança. 

No outono, o vento espalha folhas no chão, 
O céu cinza anuncia outra estação. 
As flores descansam, os frutos se vão, 
E o ritmo da vida encontra renovação. 

Na primavera, a esperança floresce, 
A natureza em cores renasce e aquece. 
O frio e o calor encontram harmonia, 
Num ciclo eterno de paz e poesia.
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Amor - mistério profundo
que não se pode explicar.
Mesmo, assim, pobre do mundo
se ninguém soubesse amar…
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (II)

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Às vezes, me falta estima,
vendo a multidão que passa...
Muita gente se aproxima,
mas pouca gente se abraça!
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Soneto de 
AMADEU RODRIGUES TORRES
Viana do Castelo/Costa Verde/Portugal (1924 – 2012) Braga/Portugal

Proesemar facilidades

Métrica, rima, ritmos, a parafernália
Usual, secular caiu de escantilhão
Nalguns, acaso e sorte tentam ritmação,
Mas os versos protestam como em represália.

Prosa e verso já calçam a mesma sandália
E aplaudem Mallarmé só por embirração
Co´a diferença e leis de discriminação,
Não obstante as lições da Fonte de Castália.

Mas quem quer lição hoje de outrem, afinal,
Se o raso quer assentar praça em general
E o poetrasto bisonho é Camões em Constância?

Fazem-me rir a crítica e a sua bitola:
Muita vez, não se sabe quem lidera a bola,
Se a amizade, a nesciência, a cor, a petulância.
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Trova de
ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Mata a revolta em teu peito,
não a deixes florescer:
rio com pedras no leito
não pode alegre correr!...
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Amor

O amor possui incrível intuição,
que lhe permite ver o invisível
e também escutar com perfeição
os sons até de uma maneira incrível!

É que o amor é bem rico em expressão.
Nesse aspecto, aliás, ele é imbatível:
tem ternura que vem do coração
e um respeito mútuo que é infalível.

Quem diz que ama, mas não se decide
a amar de fato e para toda a vida,
mente em querer amar somente um dia...

Pois o amor de verdade é o que reside
no coração em que encontrou guarida,
e sabe que deixá-lo é covardia!
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Poetrix de
LILIAN MAIAL
Rio de Janeiro/RJ

Auto-estima

o desamor não tem desculpa
tempo não é desabono
são folhas secas que enfeitam o outono

(Lembrete: O Poetrix é um terceto que não pode ultrapassar 30 sílabas poéticas, mas não determina normas para a distribuição destas sílabas dentro do poema. O poetrix tem temática livre e pode acontecer no passado, presente ou futuro)
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Vanitas

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria,
Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada,
E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada
De gritos de triunfo e gritos de agonia.

Prende a ideia fugaz; doma a rima bravia,
Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada:
“Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada!
Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia!

Cheia da minha febre e da minha alma cheia,
Arranquei-te da vida ao ádito profundo,
Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta!

Posso agora morrer, porque vives!” E o Poeta
Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo,
E cai – vaidade humana! – ao pé de um grão de areia...
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Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Eu, na vida, sou barqueiro 
dos meus sonhos sem destino: 
- sonho bom é o passageiro, 
sonho mau é o clandestino.
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Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

Estrada afora

Ela passou por mim toda de preto,
Pela mão conduzindo uma criança...
E eu cuidei ver ali uma Esperança
E uma saudade em pálido dueto.

Pois, quando a perda de um sagrado afeto
De lastimar esta mulher não cansa,
Numa alegria descuidosa e mansa,
Passa a criança, o beija-flor inquieto.

Também na vida o gozo e a desventura
Caminham sempre unidos, de mãos dadas,
E o berço, às vezes, leva à sepultura...

No coração — um horto de martírios!
Brotam sem fim as ilusões douradas,
Como nas campanhas desabrocham lírios.
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Haicai de
AFRÂNIO PEIXOTO
Lençóis BA, 1876 - Rio de Janeiro RJ, 1947

Comparação

Um aeroplano
Em busca de combustível...
Oh! é um mosquito.
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Humberto de Campos (Mocidade…)

O teatro Fênix enchera-se, naquela tarde de junho, para o espetáculo científico, anunciado pelo Dr. Wilhelm Korner, antigo reitor da Universidade de Iena. As frisas, os camarotes, as cadeiras, as galerias, regurgitavam de espectadores, quando, após a apresentação do sábio pelo eminente professor Austregésilo, começaram as provas práticas de magnetismo animal.

- Senhores, - começou, arrastando as sílabas, o ilustre homem de ciência, - a minha primeira demonstração, para que me não tomem por um aventureiro, um intrujão, um impostor, será coletiva. Entre vós, há velhos e moços, pessoas que sentem em si os arrebatamentos da juventude, a alegria, a saúde e o entusiasmo dos verdes anos, e anciãos que pendem para o túmulo, e que mal se arrastam por si mesmos. Para demonstrar-vos que essas energias são meros produtos da sugestão, eu vou fazer com que todos sejam postos em uma condição média, isto é, que os moços se sintam mais velhos, e que os velhos se sintam, de súbito, rejuvenescidos. A experiência durará dez minutos e começará com o simples estender da minha mão, para terminar com um sopro da minha boca, em momento oportuno.

E unindo o gesto à palavra, estendeu a mão sobre a plateia, ordenando o milagre.

O resultado, de acordo com o que ele havia prometido, não se fez esperar. Cavalheiros de idade avançada, que para ali haviam ido nos braços vigorosos dos netos, experimentavam as juntas, exercitavam os músculos, passavam as mãos pelas rugas, estranhando o ânimo novo que lhes distendia os nervos, reavivando-lhes o sangue, a memória, o coração. Nenhum deles se mostrava, no entanto, mais alegre, mais feliz, do que um ancião de cabeça inteiramente alva, que para ali havia ido a arrastar-se, e que tomara lugar em uma das primeiras filas. Agitava-se ele, porém, risonho, contentíssimo, na cadeira, quando soou a hora tremenda.

- Senhores, - trovejou o sábio, - vai terminar o encantamento. Cada um vai ser o que era antes. Vou soprar.

Nesse momento, manifestou-se um reboliço na plateia. Curiosos, olhando para o lado do palco, os espectadores perguntavam o que teria acontecido, quando viram, de pé, na primeira fila, um ancião, nervoso, pálido, agitado, empunhando um revólver. Era o octogenário respeitável, que, trêmulo, com a voz rouca, intimava o magnetizador, com o dedo no gatilho:

- Se soprar... mato-o!

E desabou na cadeira, chorando...
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.

Fontes:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

A. A. de Assis (À moda de haicais) – 2, final


26
Lua cheia míngua, 
de repente volta nova. 
Imortalidade.

27
Pastel com garapa 
na alegre manhã de abril. 
Neto e avô na feira.

28
Já se sente o aroma. 
Vai começar a colheita 
das maçãs na serra.

29 
Par de idosos muda
para um quarto de casal. 
Romance no asilo.

30 
Peneiras ao alto.
Braços fortes abanando 
o café colhido.

31
Passa um guarda-chuva. 
Embaixo dele um senhor 
com um violino.

32
Acorda a cidade 
embrulhada em nevoeiro. 
Brincando de Londres.

33 
Solitária rosa.
Um pingozinho de orvalho 
faz-lhe companhia.

34
Só o poeta vê.
O figo traz na barriga 
um minibuquê.

35
Retreta na praça 
após a missa solene. 
Viva a Padroeira.

36
Cai, haicai, balão, 
cai aqui na minha mão. 
Viva São João.

37
Ploque-ploque-ploque. 
Passa um cavalo levando 
o passado embora.

38
Três ou quatro garças 
cata-catando mariscos. 
Inverno na praia.

39
Compadres proseiam 
degustando um conhaquinho. 
Nem tchum pra friagem.

40
Que bom que deixaram 
seus sorrisos para os netos. 
Álbum de família.

41 
Ele na primeira,
eu na derradeira infância. 
O bisneto e o biso.

42
Chaminés fumegam 
nos chalezinhos da serra. 
Noite de geada.

43
Vizinhas tricotam 
fofocas e cachecóis. 
Às vezes cochilam.

44
Menino com medo 
corre pra cama da mãe. 
Zune o vento, uivante.

45
Era um riozinho, 
e enquanto rio era doce. 
Virou mar, salgou-se.
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A. A. DE ASSIS (Antonio Augusto de Assis), poeta, trovador, haicaísta, cronista, premiadíssimo em centenas de concursos nasceu em São Fidélis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maringá/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maringá, Folha do Norte do Paraná e das revistas Novo Paraná (NP) e Aqui. Algumas publicações: Robson (poemas); Itinerário (poemas); Coleção Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crônicas, ensaios e poemas); Poêmica (poemas); Caderno de trovas; Tábua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrônicas (textos curtos); A província do Guaíra (história), À moda de haicais, etc.

Fontes:
Ebook enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Hans Christian Andersen (A história que a Velha Joana contou)

O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entendermos, pergunta à velha Joana do Asilo, a velha Joana que envelheceu na aldeia...

Há muitos, muitos anos, no tempo em que a estrada real ainda passava por ali, já a árvore era alta e bonita. Erguia-se, como ainda hoje se ergue, em frente à cabana de taipa do alfaiate, junto ao charco, onde naquele tempo o gado ia beber, e os filhos dos camponeses, nos dias de verão, corriam nus chapinhando na água. À sombra da árvore erguia-se um marco milionário, de pedra talhada - mas está deitado no chão, coberto da ramagem da amoreira silvestre.

A estrada nova, foi aberta para além da quinta grande, enquanto a antiga se transformava em um atalho que corta os campos, e o lago se convertia em um charco, coberto de lentilhas d'água. De vez em quando pula lá dentro um sapo; abre-se então a superfície verde, e aparece a água negra. Ainda crescem em roda os mesmos caniços, trevos do banhado e espadanas douradas.

A casa do alfaiate foi ficando cada vez mais velha, mais inclinada. O telhado era um viveiro de musgos e sempre-vivas. O pombal, em ruínas, servia de morada aos estorninhos. E as andorinhas iam construindo os ninhos, um atrás do outro, no beiral do telhado e na empena, para trazer sorte àquele lugar.

Em outros  tempos, era esse o aspecto da casa. Morava ali, solitário, o velho Rasmus, meio idiota. Ali nascera, ali brincara, saltando pelas valetas e pelas sebes, varando o charco, todo despido, e trepando ao velho salgueiro.

Esse erguia, magnífico, a copa cerrada e vasta, apesar de ter o tronco fendido e curvado ao peso dos anos e das tempestades, ainda era muito lindo. O vento enchera-lhe as fendas de terra, e brotavam nelas a grama e as ervilhas. Até uma sorveira lá se criara.

Na primavera as andorinhas, já de volta, esvoaçavam ao redor da árvore e do velho telhado, e remendavam e cimentavam seus ninhos. Mas o velho Rasmus deixava o seu ir-se mantendo como estava, ou ir caindo em ruínas, não o remendava nem o escorava . E repetia a frase que já o pai usara:

   - De que serve?

Ficava em casa, quando as andorinhas iam embora, elas, porém, retornavam, como animaizinhos fiéis. Também os estorninhos iam embora e voltavam assobiando a sua canção. Dantes Rasmus cantava ao desafio com eles.

O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Murmura ainda hoje. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana do Asilo. ela sabe a  cantiga. Sabe tanta história, que até parece uma crônica viva, cheia de velhas recordações...

Quando o alfaiate de aldeia, Ivar Olsen, foi morar ali com sua esposa, Maren Olsen, a casinha ainda estava nova e bonita. Naquele tempo a velha Joana era ainda criança. Era filha do tamanqueiro, um dos homens mas pobres da paróquia. A esposa do  alfaiate, que não precisava preocupar-se com o sustento da família, dava-lhe muitas vezes um pedaço de pão. Maren mantinha boas relações com a senhora da quinta. Andava sempre alegre e risonha, e jamais desanimava. Servia-se tão bem da boca como das mãos, e manejava a agulha com a mesma rapidez que a língua. Ainda assim achava tempo para cuidar da casa e dos filhos, que chegavam quase a uma dúzia: eram onze ao todo, porque o décimo-segundo não aparecera.

O morgado resmungava:

- Gente pobre sempre tem o ninho cheio de filhotes. Se ao menos pudessem afogá-los, como os gatinhos novos, conservando somente um ou dois robustos, ainda vá!

- Deus me livre! - dizia a mulher do alfaiate. - Os filhos são uma benção de Deus, e enchem a casa de alegria. Cada um deles vale um Padre-Nosso a mais. Se houver falta de víveres e forem muitas as bocas a encher, a gente trabalha mais e acha uma solução honesta para o caso. Deus Nosso Senhor não nos abandona, se nós não o abandonarmos.

Apoiou-a a morgada com um gesto amável, acariciando-lhe as faces, como costumava fazer. Dantes até a beijava: era então uma meninazinha, e Maren a sua aia. Estimavam-se, pois, com uma feição constante e fiel.

Todos os anos, pelo Natal, iam da quinta para a casa do alfaiate provisões de inverno: uma barrica de farinha, um porco, dois gansos, um barrilzinho de manteiga, queijos e maças. Nessa ocasião Ivar Olsen aparecia contente, de rosto corado; mas dentro de poucos dias tornava à sua frase favorita:

- De que serve?

Reinava na casa o asseio e o conforto. As janelas eram veladas por cortinas, e no peitoril floresciam cravos e balsaminas. Da parede pendia, esticado em uma moldura, o pano com os nomes da família, e ao pé dele a carta de noivado, redigida em versos feitos pela própria Maren. E ela mostrava, com prazer, como combinavam bem as rimas. Orgulhava-se muito do nome de Olsen, por ser essa a única palavra da língua dinamarquesa a rimar com "polse".

– É um tanto agradável ser diferente dos outros em alguma particularidade- dizia ela, rindo.

Maren estava sempre de bom humor. Nunca dizia, a maneira de seu marido: " Que adianta?" A sua locução preferida era: " Confia no bom Deus!" E cumpria à risca o preceito garantido, assim, o equilíbrio na vida do lar. Os filhos cresciam e prosperavam. Saíam pelo mundo, em busca de ocupação, e tornavam-se homens de valor. Rasmus era o mais moço. Fora criança tão linda que um pintor o tomou por modelo para um de seus quadros. E a tela se achava no castelo do rei: a senhora do morgado a vira num salão e reconhecera nela, imediatamente, o pequeno Rasmus.

Mas sobreveio uma época difícil. O alfaiate contraiu a gota em ambas as mãos. Nenhum médico pode aliviar o mal, e a benzedeira da sábia Stine também nada adiantou.

- Não se deve perder a coragem - disse Maren. - A tristeza não ajuda. E, se pararam as mãos que nos sustentavam, é preciso que eu aprenda a usar as minhas com mais rapidez. Além disso, Rasmus também já é capaz de manejar bem a agulha.

- Ele não deve ficar preso ao trabalho o dia todo - disse a mãe. - Seria um crime contra a criança. É preciso que também tenha tempo para brincar.

E nas horas de folga estava ele sempre com a Joana do tamanqueiro. A menina era muito pobre e nada bonita, Andava descalça e com roupas rasgadas, não tinha ninguém que as remendasse e ela mesma não se lembrava de que poderia fazer isso com as próprias mãos. Era criança e vivia alegre como um pássaro, à benéfica luz do sol de Deus.

Rasmus e Joana costumavam brincar junto ao marco de pedra, à sombra do grande salgueiro. Ele arquitetava grandes planos: queria tornar-se um alfaiate de nome, que morasse na cidade e ocupasse muitos oficiais, como um que o pai conhecia. Lá, principiaria como oficial e chegaria a mestre. Então Joana iria visitá-lo e, se entendesse de cozinha, poderia tratar da comida para todos e ter o seu quarto na casa.

Joana hesitava em acreditar nesses projetos, apesar de Rasmus falar neles com uma convicção e uma fé inabaláveis.

E assim permaneciam sob a velha árvore, com o vento a murmurar na ramaria. No outono, caía uma folha após outra, enquanto a chuva pingava dos galhos desnudos.

- Eles voltarão a brotar - disse Maren.

- Que adianta? - retrucou o marido. - Ano novo, cuidado novo.

- A despensa está cheia - tornou Maren - graças à senhora do morgado. E eu ando bem de saúde e com muita força. Seria um crime a gente queixar-se.

Os senhores demoraram-se no morgado durante as festas de Natal, mas após o dia de Ano Bom seguiram para a cidade, onde passaram o inverno entre prazeres e divertimento. E recebiam convites até para os bailes e festas da Corte.

A morgada mandara vir da França dois riquíssimos vestidos, tão perfeitos no corte e no acabamento que a mulher do alfaiate não se cansava de admirá-los. Nunca vira coisa igual. E pediu licença para que o marido também os apreciasse.

- Não houve ainda alfaiate de aldeia que pusesse os olhos em uma obra perfeita assim - disse ela.

O alfaiate olhou-os e não fez nenhum comentário. De caminho para casa, porém, como se pensasse alto, lá veio a sua frase habitual:" Que adiante? " Mas desta vez suas palavras se tornaram verdade.

Havia começado  a série de bailes e festas. Os senhores mal tinham chegado à cidade, quando, em meio àquela magnificência toda, faleceu o velho dono do morgado - e sua esposa nem teve oportunidade de usar os esplêndidos vestidos. Andava de luto fechado, de roupas pretas da cabeça aos pés, não tolerava nem sequer uma renda branca. Todos os criados usavam crepes, e até a carruagem de gala foi revestida de negro.

Era uma noite fria de inverno; a neve cintilava à luz das estrelas. O carro fúnebre - novo em folha - transportou o féretro da cidade para a igreja do morgado, onde seria feita a inumação no jazigo da família. O administrador das terras e o burgo-mestre da aldeia vinham à frente do cortejo, a cavalo, com tochas acesas. A igreja estava iluminada. O pároco, no portão aberto, aguardava a chegada do morto. O caixão foi colocado em um catafalco, no meio do templo. A congregação toda o rodeou. Fez-se um belo necrólogo e cantou-se um salmo. A senhora também estava presente às cerimônias fúnebres; acompanhara a translação do féretro na carruagem de gala revestida de preto, por dentro e por fora. A congregação nunca presenciara uma solenidade assim, com tanta pompa. Durante todo o inverno se falou do enterro.

- Por aí se vê o prestígio que tinha o finado - dizia a gente da aldeia. - Nasceu de família distinta e teve um enterro de verdadeiro fidalgo.

- Que adianta? - retrucava o alfaiate. - Agora ele não possui nem vida nem fortuna. A nós, pelo menos, resta a vida.

- Não fales assim - lhes disse Maren. - Ele tem a vida eterna, lá no outro mundo.

- Como sabes isso? - perguntou o alfaiate. - Um homem morto dá mas é um bom adubo. E até para isso o morgado era fino demais. Tiveram de enterrá-lo na cripta...

- Deixa de proferir blasfêmias! - acudiu a mulher. - Repito: ele tem agora a vida eterna.

- Como sabes isso? - insistiu o alfaiate.

Maren cobriu com o avental a cabeça do pequeno Rasmus, para que o menino não ouvisse as palavras do pai. Levou-o ao galpão e explicou-lhe, em voz baixa:

- O que acabas de ouvir, meu filho, não foi dito por teu pai. O diabo é que passou pela sala e imitou a voz dele. Reza comigo um Padre-Nosso.

E ela juntou as mãos da criança, para a oração.

- Bem, estou contente outra vez - disse Maren.

Terminara o ano de recolhimento e pesar. A senhora do morgado trajava meio-luto, e a alegria começou a voltar ao seu coração. Comentava-se que havia um pretendente e que já pensavam nas bodas. No Domingo de Ramos, à hora do sermão, deviam ser feitos os proclamas. Segundo se soube, o novo dono das terras era canteiro ou escultor: a gente do lugar não sabia bem como chamar àquela profissão. O noivo, diziam ainda, não pertencia à alta aristocracia, mas tinha uma bonita figura e era dono de grande saber.

- Que adianta? - disse o alfaiate.

Os proclamas foram feitos no Domingo de Ramos. A igreja estava cheia de fiéis. Lá se achavam também o alfaiate, Maren e Rasmus. Nos último tempos a família do alfaiate tivera de reduzir as despesas com o vestuário. As roupas haviam sido viradas uma e outra vez, depois foram cerzidas e remendadas. Agora, pai, mãe e filho andavam de roupas novas, mas essas roupas eram pretas, como se eles estivessem de luto. É que haviam aproveitado o revestimento da carruagem fúnebre. Ninguém devia saber isso, mas todo o mundo descobriu. A sábia Stine e outras mulheres - também sábias, embora não fizessem profissão disso - disseram que aquelas roupas trariam enfermidades à casa do alfaiate.

A Joana do tamanqueiro chorou ao ouvir essas palavras. E, realmente, a profecia cumpriu-se: no primeiro domingo depois da Trindade falecia o alfaiate Olsen. Maren tinha agora de cuidar de tudo, e foi o que fez, corajosamente.

Um ano após seguia Rasmus para o seu estágio de aprendizagem na casa de um mestre, na cidade. É certo que esse alfaiate tinha apenas um oficial e não dez. Mesmo assim, Rasmus ficou contente, e estava sempre de cara alegre. Joana, entretanto, chorava. Ela mesma não sabia que lhe ia custar tanto a separação. Maren ficou na velha casa, atendendo  o antigo negócio.

Por aqueles tempos, a nova estrada foi concluída. A velha, que passava pelo salgueiro e pela casa do alfaiate, tornou-se um carreiro invadido pelo capim. Lentilhas dos rios estenderam-se na superfície do lago. O marco milionário caiu, já que terminara a sua função. Mas a árvore conservou-se bela e vigorosa. O vento murmurava nas folhas e nos longos galhos do velho salgueiro.

Foram-se as andorinhas; foram-se os estorninhos. Mas voltaram na primavera; e quando voltaram pela quarta vez também Rasmus regressou ao lar. Passara pelo exame de oficial. Tornara-se um rapaz bonito e esbelto. Tencionava preparar-se para uma viagem ao estrangeiro. Mas a mãe o reteve: seus irmãos se haviam sumido, e sendo ele o único que lhe restava, deveria ficar em casa. Poderia arranjar bastante trabalho pelas redondezas, costurando ora numa quinta, ora noutra. Isso também era viajar. E Rasmus seguiu o conselho da mãe.

Assim, tornou a dormir sob o antigo teto; tornou a sentar ao pé do velho salgueiro, e a ouvir o murmúrio do vento nas folhas verdes. Rasmus, além de ser um rapaz de bela aparência, sabia cantar que nem um pássaro; era entendido em velhas e novas canções. A sua chegada causava sempre alegria nas quintas grandes, principalmente na de Klaus Hansen, o segundo em fortuna entre os camponeses da aldeia.

Klaus tinha uma filha, Elsa, bela como as rosas do jardim e alegre como um pássaro em liberdade. É verdade que algumas pessoas maliciosas diziam que ela vivia rindo para exibir a alvura dos dentes, mas o que é certo é que aquele modo brincalhão assentava bem na sua pessoa.

Elsa e Ramus enamoraram-se um do outro, mas nenhum dos dois se atreveu a falar. E foi daí que ele se tornou melancólico: herdara uma parte demasiada da mentalidade do pai. Só estava alegre quando via Elsa. Então cada qual ficava mais contente, riam, gracejavam e até pequenas diabruras faziam um para o outro. Mas, apesar das melhores oportunidades, ele não lhe disse palavra alguma sobre o seu afeto. " Que adianta? " - remoíam seus pensamentos. "Os pais dela hão de exigir que o pretendente seja rico. Seria melhor que eu me fosse embora. " Mas era incapaz de apartar-se da moça.

Joana, a filha do tamanqueiro, servia como criada, e por sinal das mais humildes, na mesma quinta. Empurrava o carro do leite até o curral, onde ordenhava as vacas, em companhia de outras serviçais. Tinha também de remover o esterco, e só raras vezes via a Rasmus e Elsa. Notou, entretanto, que ambos se queriam como noivos.

- Que sorte tem Ramus! - disse ela consigo. - E ele bem merece.

Mas seus olhos estavam rasos de lágrimas, embora nada houvesse de que chorar.

Havia uma feira na cidade. Klaus Hansen convidou Rasmus para ir no seu carro. E ele se viu sentado ao lado de Elsa, tanto na ida como na volta. O contentamento transparecia no rosto do rapaz, e no entanto ele não dizia palavra sobre o seu amor.

- Ele tem de ser o primeiro a falar - pensava Elsa, e nisso tinha razão. - Se não quiser abrir a boca, vou dar-lhe um susto.

E logo correu o boato pela quinta de que o proprietário mais rico da aldeia pedira a mão de Elsa - o que era verdade. Mas ninguém conhecia a resposta que ela lhe dera.

Os pensamentos faziam a zunir a cabeça de Rasmus. Certa noite Elsa enfiou no dedo um anel de ouro e perguntou-lhe o que significava aquilo.

- Um noivado - disse ele.

- E com quem achas que seja? - perguntou a moça.

Rasmus, contra a vontade, disse o nome do pretendente.

- Adivinhou - disse ela, fugindo da sala. 

Mas ele também se sumiu. Voltou para casa, atordoado de desespero e de mágoa. e  preparou o saco de viagem. Nada adiantaram as lágrimas da mãe. Queria correr o mundo.

Quando cortou um bordão do grande salgueiro, Rasmus assobiava, como se estivesse contente por poder partir  e ver as maravilhas todas de outras terras. Despediu-se da mãe e ganhou a estrada nova. Joana vinha por ali com um uma carroça cheia de estrume. Ela não lhe notara  a presença e ele fez como se não a visse. Escondeu-se atrás da sebe e ali ficou, até que Joana passasse...

Rasmus saiu, assim, para o mundo, sem que ninguém soubesse para  onde se dirigia.

A mãe estava certa de que ele voltaria antes do fim do ano.

- De que qualquer jeito, voltará, não pode abandonar nem a mim nem a casa.

Elsa, porém, tinha menos confiança, depois de um mês de ansiosa espera, foi consultar, clandestinamente, a sábia Stine. A velha nada mais sabia além do Padre-Nosso, mas era capaz de, benzendo, provocar, milagres e de interpretar as cartas e a borra de café. Por esse meio, chegou a ver Rasmus, através da borra de café. Estava numa cidade estrangeira, cujo nome, entretanto, não conseguiu identificar. Ali haviam soldados e belas raparigas, e ele intencionava tomar o fuzil ou uma dentre as jovens.

Elsa não podia suportar essa ideia. Estava disposta a dar todas as suas  economias para vê-lo regressar. Mas ninguém deveria saber da sua interpretação.

E a velha Stine explorava o caso, afirmando que sabia um meio, se bem que perigoso para aquele a quem se destinava a magia. Contudo, não havia outro remédio. Ela poria no fogo uma panela, e a faria ferver em direção a Rasmus. Nesse caso, ele tinha de regressar, por mais longe que se encontrasse. Poderiam decorrer meses, é verdade, mas que ele voltaria, isso podia garantir, se ainda estivesse vivo.

Então ele teria de caminhar sem trégua nem descanso, de dia e de noite, através de montes e lagos, ao longo de caminhos escorregadios e pedregosos, por mais fatigado que se sentissem seus pés. Mas deveria regressar! Não poderia senão regressar!

A lua se achava no primeiro quarto. A velha Stine asseverou que essa era a época mais apropriada para começar o trabalho. Lá fora uivava a tempestade, sacudindo o velho salgueiro. A feiticeira cortou um galho e dobrou-o, fazendo um nó, para que Rasmus sentisse necessidade de tornar à casa da mãe. Foram procurar no telhado musgos e sempre-vivas, que atiraram na panela de barro posta ao fogo. Elsa teve de arrancar uma página do seu livro de orações. Por acaso, tirou a última, a das erratas.

- Não faz mal - disse a velha, ao deitá-lo também à panela.

Muitas coisas entrava na cocção, que tinha de ferver e continuar a ferver até o regresso de Rasmus. O galo preto da feiticeira teve de desfazer-se da sua crista vermelha, que entrou na panela de barro.  O anel de ouro de Elsa teve igual destino. Ela nunca tornaria a vê-lo, preveniu a velha. Sim, senhores! Era muito sábia a velha Stine. Mas muitos outros ingredientes, que não sabemos mencionar, foram fervidos na panela de barro, que sempre se achava ao fogo, sobre carvões em brasas ou cinzas quentes. Apenas Elsa e a feiticeira sabiam da história.

Chegou a lua nova, e chegou a lua cheia. E Elsa sempre a perguntar:

- Ainda não o vês chegar?

- Vejo muita coisa - era a resposta.- Só não posso enxergar a distância que ele tem à sua frente. Agora já passou pelos primeiros montes. Acha-se no mar, com tempo desfavorável. Ah! agora atravessa grandes florestas. Ele anda com bolhas nos pés e febre na cabeça, mas tem de tocar para a frente.

- Não, não! - gritou Elsa. - Isso não!

- Agora não pode mais parar. - tornou a feiticeira. - E se nós suspendêssemos com isto ele cairá morto na estrada.

Decorreram dias e decorreram anos. A lua brilhava redonda e cheia. O vento murmurava no velho salgueiro. No céu apontou um arco-íris.

- É um sinal! - afirmou Stine. - Agora Rasmus há de chegar.

Mas ele não chegou.

- Estou farta disso! - queixou-se Elsa.

Ia à casa da velha mais espaçadamente, e já não levava presentes para ela. O seu pesar foi amortecedor, e um belo dia toda a gente da aldeia soube que Elsa estava noiva do rico proprietário, seu antigo pretendente.

O banquete de bodas durou três dias. Dançava-se ao som de violinos e flautas. Nenhum morador do lugar ficara esquecido. Maren Olsen também esteve presente e, finda a festa, lá voltou ela, com o pacote que recebera das sobras.

A tranca fora retirada na sua ausência e o portão se achava aberto. Rasmus estava sentado no seu quarto. Regressara justamente nesse dia!

- Rasmus! - gritou a mãe. - És tu mesmo? Estás doente? Mas ainda assim eu me sinto tão feliz por teres vindo!

Ele contou que nas últimas semanas o seu pensamento se voltava sem sossego para a mãe; sentia saudades da casa, da velha árvore. Era estranho como o salgueiro lhe aparecia repetidamente em sonhos; e, sempre, à sua sombra, a pobre da Joana. Não falou, porém, em Elsa.

Rasmus estava doente e teve de ficar de cama. Naturalmente não fora por influência da panela de barro, embora a velha Stine e Elsa acreditassem nisso. Mas tanto uma como outra silenciaram a respeito.

A febre que atacara Rasmus era contagiosa; por isso ninguém o visitava, com exceção da Joana do tamanqueiro, que chorou ao vê-lo naquele estado. O médico receitara um remédio, mas o doente não quis tomá-lo.

- Que adianta? - disse ele.

- Assim não te podes curar - observou a mãe. - Confia  em ti e no bom Deus! Quando novamente te ouvir cantar e assobiar, morrerei de bom grado.

E Rasmus se refez da enfermidade. Mas a mãe, por sua vez, adoeceu; e Deus a chamou.

A solidão reinava agora na casa; e a indigência ali entrou.

No estrangeiro, ele vivera uma vida desregrada. Isso, e não o cozimento da panela de barro, lhe devorara a medula e acendera a febre em seu corpo. Rasmus tinha agora o cabelo ralo e grisalho. não trabalhava, nem tinha gosto para isso.

- Que adianta? - dizia ele, preferindo a taverna à igreja.

Uma noite de outono, ia ele para casa, de volta da taverna, cambaleando, debaixo da tempestade e da chuva. Já fazia muito tempo que perdera a mãe. As andorinhas e estorninhos, sempre tão leais, haviam desaparecido. Mas Joana, a filha do tamanqueiro, essa não se fora. Ela o alcançou e seguiu um bom pedaço lado a lado com ele.

- Endireita-te, Rasmus! - disse ela.

- Que adianta? - retrucou ele.

- Essa locução é feia - tornou Joana. - Lembra-te das palavras de tua mãe: " Confia em ti e no bom Deus!" Não é isso o que andas fazendo, Rasmus. mas tens de te corrigir. Não tornes nunca a dizer: " Que adianta?" E assim hás de arrancar a raiz dessa fraqueza.

Ela o acompanhou até a porta e seguiu para a sua casa. Rasmus não entrou. Foi direto ao velho salgueiro e sentou-se na pedra do marco miliário, que caíra ao solo. O vento murmurava nos galhos da árvore; parecia que contava uma história. Rasmus respondeu ao vento, falando alto. Mas ninguém o ouviu, a não ser o próprio vento e o velho salgueiro.

- Como faz frio! Está na hora de ir para a cama. Dormir, dormir!

E lá se foi, ele não foi porém em direção à casa, mas ao charco, em cuja beirada tropeçou e caiu. A chuva batia e o vento era de enregelar. Ao nascer do sol, quando os galhos voavam sobre o lamaçal, Rasmus acordou.

Foi nesse dia que Joana se instalou na casa do alfaiate.

- A gente se conhece desde criança, Rasmus. Tua mãe me deu de comer e beber, e eu nunca poderei retribuir-lhe isso, Serei a tua enfermeira; e tu não morrerás, não.

E Deus quis que ele vivesse. Mas passou-se muito tempo, até que apresentasse alguma melhora. Seguido tinha colapsos, ou fantasiava coisas confusas.

Iam e voltavam andorinhas e estroninhos; e tornavam a ir embora. Rasmus envelhecera antes do tempo. A sua casa estava também cada vez mais decadente. E ele se via agora mais pobre do que a pobre Joana, a filha do tamanqueiro.

- Tu não tens fé! - disse ela. - Se nós não tivéssemos Deus, que nos restaria então? Deves acompanhar-me à Comunhão, Rasmus.

- Que adianta? - replicou ele.

- A mim sempre me dá consolo - respondeu ela, sentida.

- Joana tu te conservaste a mais fiel dentre todos.

E ele a olhou, com os olhos fatigados e enternecidos.

Rasmus tornara-se um homem velho. Mas Elsa, tampouco, ficara jovem. É preciso que a mencionemos, porque Rasmus nunca o fazia. Era avó, e tinha uma netinha muito galante. Um dia, brincava ela na rua, com outras crianças. Rasmus foi em sua direção, apoiando-se na bengala. Contemplou-a um instante e sorriu. Mas a neta de Elsa apontou com o dedo para ele, gritando: - Rasmus, o doente! - As demais crianças imitaram-lhe o exemplo, e começarem: - Rasmus, o doente! Rasmus, o doente! 

Vieram dias cinzentos e frios, mais raiou por fim uma manhã cheia de sol.

A igreja estava enfeitada de verdes ramos de bétula. O cheiro do bosque passava pelo recinto, enquanto o sol luzia através dos vitrais. Ardiam grandes círios no altar. Era o momento da Comunhão. Joana achava-se entre os fiéis; mas Rasmus não estava presente. Foi justamente a essa hora que Deus o chamou para si.

Desde então se passaram muitos anos. A casa do alfaiate ainda está de pé, mas ninguém a habita, e ela pode desmoronar à primeira tempestade. O charco está coberto de junco e trevo. o vento murmura uma cantiga na velha árvore. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana ali do Asilo, a Joana do tamanqueiro...

Que coração leal!
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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