domingo, 21 de setembro de 2025

Monteiro Lobato (A onça e o coelho)

A onça havia plantado uma roça, onde nasceu muita urtiga. A onça ficou atrapalhada. Nem entrar na roça podia, porque a urtiga arde muito. Foi então que chamou os animais da floresta. 

— Quem me capinar esta roça sem se coçar ganha um boi. — disse ela. 

O macaco se prontificou a fazer o serviço. Mas assim que deu começo à capinação, coçou-se tanto que a onça o tocou de lá. 

Veio o bode, que também se coçou com o chifre. A onça tocou o bode. 

Por fim apresentou-se um coelhinho. "Esta é boa!" — disse a onça. — "Se nem o macaco e o bode puderam capinar a roça, que espera fazer este bichinho?" 

Mas como o coelho insistisse, consentiu. 

A onça ficou fiscalizando o serviço para ver se ele se coçava; depois cansou-se daquilo e deixou uma sua filha no lugar. 

O coelho, que não podia mais de tanta comichão, teve uma ideia. Voltou-se para a filha da onça e perguntou: "Escute: aqui, oncinha, o tal boi que sua mãe prometeu não é um boi malhado, com uma mancha amarela aqui (e dizendo isso coçava a perna), e outra aqui (e coçava o lombo) e outra aqui (e coçava o focinho)? 

A oncinha, muito boba, respondeu que era. O coelho prosseguiu no trabalho, e quando a comichão apertou demais veio novamente perguntar se o boi não tinha também uma mancha amarela em tal e tal parte — e coçava ali. E desse modo conseguiu capinar a roça inteira, ganhando o boi. 

Mas a onça impôs uma condição. 

— Compadre coelho, dou o boi, mas você só poderá matá-lo num lugar onde não houver moscas, nem galo que cante, nem galinha que cacareje. 

O coelho, concordando, lá se foi com o boi em procura de um lugar onde pudesse matá-lo. Andava um pedaço, parava, escutava e sem tardança ouvia um cocoricocó! 

— Aqui não serve. Tem galo. — e seguia para adiante. 

E foi andando até que chegou a um lugar onde não havia mosca nenhuma, nem se ouvia nenhum coricocó. Então matou o boi. Nisto surge a onça. 

— Compadre coelho, — disse ela — um boi é muita coisa para você. Passe para cá um pedaço. 

O coelho deu-lhe um pedaço, que a onça devorou num segundo. 

— Não chegou para matar a minha fome, compadre. Passe para cá outro pedaço. — e o coelho deu outro pedaço. Por fim a onça devorou o boi inteirinho. 

O coelhinho voltou para casa muito triste, com o facão na cintura. Ia pensando num meio de vingar-se da onça. 

Teve uma ideia. Entrou no mato e pôs-se a cortar cipó. Apareceu a onça. 

— Que está fazendo aí, compadre coelho? 

— Estou tirando cipós. Como Deus vai castigar o mundo com uma tremenda ventania, preciso de cipó para me amarrar a um tronco de árvore. 

A onça, amedrontadíssima, pediu: 

— Nesse caso, amarre-me também, compadre. 

— Não posso. — disse o coelho fingida-mente. — Tenho de ir para casa amarrar meus filhinhos. 

— Amarre-me primeiro, - pediu a onça - e depois vá amarrar seus filhinhos. 

O coelho coçou a cabeça e por fim disse: 

— Está bem, comadre onça e como prova de amizade vou fazer esse grande favor — e amarrou-a com todos os cipós, deixando-a impossibilitada do menor movimento. 

— Bom, — disse ele ao concluir o serviço — a comadre está tão bem amarradinha que nem o maior dos furacões é capaz de arrancá-la daí — e foi-se embora, a rir. 

Passado algum tempo a onça, vendo que não vinha vento nenhum, desconfiou. "Querem ver que fui tapeada pelo tal coelho? Como agora livrar-me deste amarramento?" 

Vinha vindo um macaco. 

— Amigo macaco, faça o favor de tirar de mim estes cipós. 

Mas o macaco, sabidão que era, apenas disse: "Deus ajude a quem te amarrou", e foi-se embora. 

Apareceu um veado. 

— Amigo veado, faça o favor de desamarrar-me, pediu a onça. 

O veado, apesar de burrinho, deu a mesma resposta do macaco, e lá se foi. 

Veio o bode, e aconteceu a mesma coisa. 

Passadas algumas horas, o coelho foi espiar como ia indo a onça. 

— Compadre coelho, viva! O vento não apareceu e eu estou que não posso mais. Venha desamarrar-me. 

O coelho, com dó dela, pôs-se a desenrolar os cipós. Assim que a malvada se viu livre, nhoc! deu-lhe um pega. Mas o coelho alcançou dum pulo um buraco, mesmo assim a onça agarrou-lhe um pé. 

O coelho caiu na risada. 

— Ah, como é tola a minha comadre onça! Agarrou uma raiz de pau e está pensando que é meu pé. Ah, ah, ah!... 

A onça, desapontada, soltou as unhas, pensando mesmo que houvesse ferrado uma raiz de pau. O coelho afundou no buraco. 

Uma garça veio pousar ali perto. A onça chamou-a. 

— Comadre garça, — disse ela — fique de olho nesta cova, enquanto eu vou buscar uma enxada. Não deixe o coelho sair. 

A garça ficou na árvore, com os olhos no buraco. 

O coelho disse: — Que grande tola! Então é assim que uma garça toma conta de buraco onde está um coelho? 

— Como devo fazer então? — perguntou a bobinha. 

— Ora, ora! Tem de vir aqui e ficar com o bico dentro do buraco. 

A garça desceu da árvore e enfiou o bico no buraco. O coelho atirou-lhe aos olhos um punhado de areia e escapou. 

Nisto veio a onça com a enxada. Cavou, cavou até lá no fundo e nada de coelho. 

— Comadre garça, que fim levou o coelho que estava aqui? 

— Não sei! — respondeu a tola. — Ele me mandou que enfiasse o bico no buraco. Assim que enfiei o bico, me botou nos olhos areia. Fiquei cega e nada mais vi. 

A onça, furiosa, deu um bote na garça, que lá se foi voando, muito fresca da vida.
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Monteiro Lobato (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. Publicado originalmente em 1937. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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