domingo, 23 de março de 2025

Luís da Câmara Cascudo (O Marido da Mãe-D’Água)

Era uma vez um moço pescador muito destemido e bom que lutava com as maiores dificuldades para viver. Ultimamente o vento mudara e quase não havia peixe. Passava horas e horas na praia, com a pindaíba na mão e os peixes fugiam dele como o Diabo da cruz. O rapaz estava mesmo desanimado e dormia com fome muitas vezes.

Numa noite de luar estava ele querendo pescar e o peixe escapulindo depois de comer a isca. A noite foi avançando, avançando, o luar ficando alvo como a prata e caindo mesmo a friagem. O rapaz não queria voltar para sua casinha sem levar nem que fosse um peixinho para matar a fome.

Já ia ficando desanimado quando começou a ouvir umas vozes cantando tão bonito que era de encantar. As vozes foram chegando para mais perto, mais perto, e o rapaz principiou a olhar em redor para ver quem estava cantando daquele jeito. Numa ponta de pedra apareceu uma moça bonita como um anjo do céu, cabelo louro, olhos azuis e branca como uma estrangeira. Ficou com o corpo meio fora d’água cantando, cantando, os cabelos espalhados, brilhando como ouro.

O pescador ficou todo arrepiado mas criou coragem e disse:

– Que desejais de um cristão, alma penada?

A moça respondeu:

– Não sou alma penada, cristão! Sou a Mãe-d’Água! Nunca uma pessoa me perguntou alguma coisa e sempre eu dei, e jamais me ofereceram auxílio. Tens coragem?

– Tenho, declarou o rapaz.

– Queres pegar peixe?

– Quero!

– Pois sacode o anzol onde eu estou. Deves vir todas as noites até o quarto minguante e só pescar de meia-noite até o quebrar da barra.

Abanou a mão e mergulhou, sumindo-se.

O rapaz fez o que ela tinha aconselhado e pegou tanto peixe que amanheceu o dia e não pudera carregar tudo para casa.

Nunca mais viu a Mãe-d’Água mas, no tempo da lua, vinha pescar e foi ficando mais aliviado da pobreza. Os meses iam passando e ele ficando com saudade daquela formosura. 

Uma noite de luar, estando na pesca, ouviu o canto da Mãe-d’Água e, largando tudo, correu na confrontação da cantiga. Quando a Mãe-d’Água botou as mãos em cima da pedra o rapaz chegou para junto e, assim que ela se calou, o pescador agradeceu o benefício recebido e perguntou como pagaria tanta bondade.

– Quer casar comigo? – disse a Mãe-d’Água.

O rapaz nem titubeou:

– Quero muito!

A Mãe-d’Água deu uma risada e continuou:

– Então vamos casar. Na noite da quinta para sexta-feira, na outra lua, venha me buscar. Traga roupa para mim. Só traga roupa de cor branca, azul, ou verde. Veja que não venha alfinete, agulha ou coisa alguma que seja de ferro. Só tenho uma condição para fazer. Nunca arrenegue de mim nem dos entes que vivem no mar. Promete?

O rapaz, que estava enamorado por demais, prometeu tudo e deixou a Mãe-d’Água, que desapareceu nas ondas e cantou até sumir-se.

Na noite citada o pescador compareceu ao lugar, trazendo roupa branca, sem alfinete, agulha ou coisa que fosse ferro. Antes de o galo cantar, a Mãe-d’Água saiu do mar. O rapaz estava com um lençol bem grande, todo aberto. A Mãe-d’Água era uma moça tão bonita que os olhos do rapaz ficaram incendiados. Enrolou-a no lençol e foi para casa com ela.

Viveram como Deus com os Santos. A casa ficou uma beleza de arrumada, com roupa, mobília, dinheiro. Comida, água, nada faltava. O rapaz ficou rico da noite para o dia. O povo vivia assombrado com aquela felicidade que parecia milagre.

Passou-se um ano, dois anos, três anos. O rapaz gostava muito da Mãe-d’Água, mas de umas coisas ia se aborrecendo. A moça não tinha falta, mas, na noite da quinta para a sexta-feira, sendo luar, ficava até o quebrar da barra na janela, olhando o mar. Às vezes cantava baixinho que fazia saudade até às pedras e aos bichos do mato. Às vezes chorava devagarinho. O rapaz tratava de consolar a mulher, mas, com o correr dos tempos, acabou ficando enjoado daquela penitência e principiou a discutir com ela.

– Deixe essa janela, mulher! Venha dormir! Deixe de fazer assombração!

A Mãe-d’Água nem respondia, chorando, cantando ou suspirando na sina que Deus lhe dera.

Todo mês sucedia o mesmo. O rapaz ia ficando de mal a pior.

– Venha logo dormir, mulher presepeira! Que quisila idiota é essa? Largue essa mania de cantiga e choro virada para o mar! Você é gente ou é peixe?

E como o melhor já possuía em casa, deu para procurar vadiação do lado de fora, chegando tarde. A Mãe-d’Água recebia-o bem, não se queixando de nada e tudo ia correndo com satisfação e agrado da parte dela.

Numa noite o rapaz foi a um baile e ficou a noite inteira dançando, animado como se fosse solteiro. Nem se lembrava da beleza que esperava por ele em casa.

Só voltou de manhã e foi logo gritando pelo café, leite, bolos e mais coisas para comer. A Mãe-d’Água, com paciência, começou fazendo mais que depressa o que ele dissera, mas não vinha na rapidez do corisco.

O mal-agradecido, sentando-se numa cadeira, de cara franzida, não tendo o que dizer, começou a resmungar.

– Bem feito! Quem me mandou casar com mulher do mar em vez de gente da terra? Bem feito. É tudo misterioso, cheio de histórias. Coisas do mar... hi... eu te arrenego!

Logo que disse essas palavras, a Mãe-d’Água deu um gemido comprido e ficou da cor da cal da parede. Levantou as duas mãos e as águas do mar avançaram como um castigo, numa onda grande, coberta de espuma, roncando como um bicho feroz. 

O rapaz, morrendo de medo, deu uma carreira, subindo um monte perto da casa. Lá de cima se virou para ver. Casa, varanda, cercado, animais, tudo desaparecera. No lugar estava uma lagoa muito calma, pegada a um braço de mar. Ao longe ouviu uma cantiga triste, triste como quem está se despedindo do mundo.

Nunca mais viu a Mãe-d’Água.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
Fontes:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Solicito que coloque o seu nome após o comentário, para que o mesmo seja publicado.