sábado, 15 de novembro de 2025

Manuel de Oliveira Paiva (Corda sensível)


Um fardão de coronel estava enfiado sobre o espaldar da cadeira de balanço, e a pequena Maria, apertando na mão uma fatia de pão com manteiga, olhava extasiada. A cor azul escura da casimira (tecido leve de lã), sob a claridade noturna que enchia a sala, modelava macieza de veludo e fingia reflexos de roxo. Nas ombreiras do fardão pousavam as dragonas maciças, de grande gala, com o seu chuveiro de torçais de ouro; e na frente o papo se escancarava, deixando ver a tela de crochê, com que se costuma proteger as mobílias. A um lado corriam-lhe os oito botões, cada um crescido como um olho-de-boi...

Mas, quando a pequena deu com o empastamento de condecorações que encobria lado a lado o peito ao fardão, não pôde resistir ao chamariz, e pondo um joelho à beira do assento e com os bracinhos estirados agarrando-se aos braços da cadeira, subiu, apesar do balanço. As mangas da farda começaram então um movimento de pêndulo, roçando no tapete os canhões encastoados pelas pesadas divisas de coronel. O amor ao equilíbrio forçou a pequena Maria a ir com a mão ao topo da cadeira, e aí, olha lá manteiga pelas abas.

Acode naquela cabecinha castanha uma ligeira ideia de remorso, e o que há de mais simples é deixar as coisas como estavam. A esse tempo brilhavam no escuro da rua, à altura do peitoril da janela, os olhos da filha do cabo de ordens, que espiava para dentro, pode ser que arrastada pelo cheiro da ceia, cujos tirlintintins se ouvia. Que ótimo desvio! E as duas começaram a conversar-se na janela, como pessoas sisudas; bem entendido, a pequena do cabo de ordens comendo o enfastiado pão com manteiga, a célebre fatia.

No dia seguinte, quando a criada veio sacudir os móveis, caiu das nuvens, coitada! Cada rombo deste tamanho, afora uma porção de rendinhas, na casimira do fardão, de modo que a intertela e os recheios do peitilho estava tudo estripado e esbrugado.

Consequência: um ódio entranhado aos ratos. Os cantos da casa povoaram-se de ratoeiras. Era um nunca acabar.

Pois, senhores, roerem a mais linda, a mais garbosa, a mais rica, a mais nobre farda da província?! Ah! se o coronel pudesse estrepar toda a ratagem unânime das nações na ponta de seu gládio!

Em um amanhecer de abril, sofrivelmente belo, a criada, deixando para mais tarde a visita às ratoeiras, aconteceu que ajuntaram-se à pequena Maria o pequeno Manuel e o caçula, e foram despescar, por sua conta e risco, as da despensa.

O cabeça do motim, que todos sabem ser a senhora dona Maria, como lhe chama a mãe quando se enfeza, não teve mais o que fazer, e, cercada pelos dois bargados consócios (companheiros espertos), assentou-se no chão, depondo a ratoeira sobre o pano do vestido que se fazia entre as duas perninhas abertas.

A ratoeira não era mais de que uma cúpula de arame cozida a uma rodelazinha de pinho. Dentro, porém, havia era um bicho cinzento e uma porção de bichinhos vermelhos, da cor dos dedinhos do caçula: fenômeno raro, que provocou uma gritaria hilariante, aliás inconveniente, porque atrás acudiram a criada, a mamãe e até o coronel, a ver o que fazia aquela troça de quenquéns.

Maria estava metendo a mão para abocanhar a bicharada — em tempo de ser mordida! — e o Manuel procurava também se havia outro buraco onde ele pudesse meter a dele.

— Virgem Maria! — vozeava a criada.

— Isto é o diabo! — roncava o coronel.

Recuaram todas as mãos, e a curiosidade das criancinhas foi achar nos olhos delas o desejado e inviolável refúgio.

A mamãe, porém, encarando o caso, juntou as mãos enternecidamente, e, cobrindo o marido e os três filhinhos com um daqueles olhares que só em mulheres se depara, exclamou cheia de profundo sentimento materno:

— Espera, que é uma ratinha que deu à luz na ratoeira!

O duro militar ficou embasbacado. Enquanto a rata puérpera, impunemente, pacatamente, com o salvo-conduto de sua boa estrela de mãe, saía, como um anão no meio de enormes gigantes de conto de fada, e galgava novamente as prateleiras prenhes de queijo. A ninhada se amontoava no regaço da pequena Maria, — uma porção de bichinhos vermelhos, da cor das carnes tenras do caçula, cujo corpinho nu estava ali acocorado, a alma de criança aberta nuns olhos admirativos, exclamando Com jubilosa admiração:

— Uói! — apontando para os ratinhos com o dedinho vermelho.
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MANUEL DE OLIVEIRA PAIVA (Fortaleza/CE, 1861 – 1892) foi um escritor cearense. Colaborou no periódico A Quinzena, publicação da agremiação cearense Clube Literário, do qual participavam João Lopes, Virgílio Brígido, Justiniano de Serpa, entre outros. Também publicou no jornal carioca A Cruzada e O Libertador, órgão da Sociedade Libertadora Cearense, período em que pública dois poemetos (Zabelinha ou a Tacha Maldita e 25 de Março) e um romance (A Afilhada). Sua obra de maior renome, Dona Guidinha do Poço, foi publicada postumamente, em 1952, por inciativa da pesquisadora e crítica literária Lucia Miguel Pereira. Cursou o seminário do Crato, mas trocou a vida eclesiástica pela militar, indo estudar na Escola Militar do Rio de Janeiro, retornando à terra natal em 1883, devido a problemas pulmonares. Teve participação ativa na campanha abolicionista, colaborando no jornal Libertador. Destacou-se, também, como membro do Clube Literário. Sua única obra publicada em vida foi A Afilhada, novela que saiu em folhetins no Libertador em 1889. Neste jornal e em A Quinzena saíram alguns de seus poemas abolicionistas e seus contos realistas. Em livro, porém, seus escritos só seriam publicados postumamente, algumas dezenas de anos depois da sua morte. Sua obra-prima, Dona Guidinha do Poço, escrita em 1892, é um dos maiores romances do Naturalismo brasileiro e possui uma história interessante: seus originais foram entregues pelo próprio autor ao amigo Antônio Sales, que entregou uma cópia a Lopes Filho, que a perde, e outra a José Veríssimo, que iniciou a publicação, interrompida com a falência da sua Revista Brasileira; no fim dos anos 40, porém, Lúcia Miguel-Pereira encontra uma cópia com Américo Facó, depois de intensa pesquisa. Ela publicou, finalmente, Dona Guidinha do Poço em 1952. A Afilhada ganhou edição em livro em 1961, e seus contos foram publicados pela Academia Cearense de Letras em 1976.

Fontes:
Manuel de Oliveira Paiva. Contos. Publicado originalmente em 1888. Disponível em Domínio Público.
Biografia = https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Oliveira_Paiva 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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