Valério sentia-se imensamente jubiloso.
— Arre! Que hoje vou ser pago de todos os meus esforços. E ia de um lado a outro, apressado.
De minuto em minuto, quase, sacava do bolso um velho relógio, envolto em surrada capa de couro, que punha a descoberta apenas o mostrador.
— Sete e meia! Já era tempo de estarem aqui. E percorrendo nervosamente a saleta em diagonal. — Daqui a pouco a campainha começa a tocar. 
A impaciência aumentava:
— Que diabos estarão fazendo os rapazes? 
Uma voz de mulher partiu do quarto:
— Valério, não está na hora, já?
— Está sim, Nhana. Mas ninguém chegou ainda. Pipocas! 
E adoçando a voz:
— Venha cá, Quinzinho. Pegue o pacote e fique esperando sentado.
Aquele que atendera por Quinzinho desencostou-se do umbral donde, chupando um caramelo qualquer, olhava, as largas passadas do outro. E obedeceu à indicação. Era um menino de quatro anos e tanto, de pele trigueira, barrigudo por causa das bichas. Trajava roupinha de brim, e, no cocuruto, um boné avermelhado.
Valério tinha cor mais carregada que a criança. O ventre também lhe sobressaía no corpo agigantado. Por alguns instantes, em silêncio, contemplou o filho, com bondade, com doçura.
Chegou-se depois à porta da rua. Pôs a cabeça para fora e, esfregando as mãos:
— Aí vêm eles.
Quinzinho demonstrou alegria por aquela notícia. Enterrou um pouco mais na cabeça o bonezinho modesto.
— Boa noite, seu Valério. Demoramos um pouco, não?
Os recém-vindos penetraram na sala.
— Falta alguém?
— O Juca e o Benedito. Mas eles já vêm.
Minutos depois transpunham a porta mais dois rapazes.
— Sabe por que nós atrasamos, Valério? Estivemos ouvindo uma conversa ali na esquina.
— Que foi?
— O seu Otávio dizia aos companheiros que era preciso pagar alguma coisa pra nós depois do cinema.
Chegou nesse momento até a saleta o retinir incessante de longínqua campainha.
— Eh! Rapaziada. Toca a andar.
Quinzinho pôs-se de pé em três tempos.
— Pai. É só isto pra levar?
— Só, menino. Não vá derrubar nenhuma folha.
Movimentaram-se todos imediatamente.
Com presteza foram tirando de cima da mesa os instrumentos de música que cada qual executava. Um, o trombone. Outro, o bombardino de larga campana. O terceiro, o pistão luzidio com seu minúsculo bocal.
Valério, de seu turno, empunhou o clarinete.
Nhana surgiu do quarto.
— Já fechou a casa, Nhana?
E, sem esperar resposta, virou-se para os companheiros:
— Olhem lá. Não façam feio, hein? Se hoje nós tocarmos direito, estamos feitos.
— Ah! Isso vai ser uma barbaridade. Calculem só: a “furiosa” do mestre Valério...
E o Benedito soltou uma risada gostosa.
Um a um foram saindo os rapazes, enquanto Valério pontificava:
— Logo que se acabe a novena, subiremos a rua, tocando. O Quinzinho vai levando ali as partituras das peças mais importantes.
— Seu Valério, que é que vamos tocar?
— O meu dobrado, primeiro. Mas, Durvico, preste atenção. Não se esqueça daquele trecho do si bemol. Atenção, todos. A terceira parte é bem mansa. Só eu e o Juca faremos o dueto. Os outros reforçam o acompanhamento.
Minutos depois os que saíam da novena ouviram uns acordes de marcha e, em pouco tempo, a filarmônica do Valério estava envolvida em um círculo de curiosos.
Cessada a peça, adiantou-se um rapaz.
— Parabéns, Valério. Gostei de ver.
E outro:
— Para você ver que os moços da terra não são ingratos, nós lhe queremos fazer surpresa depois da função.
Valério atarantado pela felicidade com que fora executada a marcha (nem mesmo o Durvico destoara a harmonia no pedaço encrencado, como de costume), não sabia o que fazer. Sorria e, apenas enrugava a comissura dos lábios, adquiria já expressão séria. Tentava agradecer. Vinha-lhe à flor da boca uma fartura de palavras contentes. Mas, qual! A emoção fora tanta que até a voz não queria sair.
É que, naquela noite, experimentava o mulato uma sensação inigualável. Conseguira apresentar ao povo de Tomazina o fruto de seus esforços titânicos — uma banda musical.
Tempos atrás o mulato Valério aparecera ali. Originário não se sabe donde, pelo nomadismo de sua vida, precedia-o, contudo, insistente fama de exímio clarinetista.
Mal dele, nunca ninguém falara. Espírito humilde, adaptável, jamais dera serviço às línguas viperinas do lugarejo. Apenas uma ou outra comentava com benevolência o temperamento boêmio do Valério, que não fazia outra coisa senão assoprar o instrumento.
Procuravam-no constantemente os rapazes, para serenatas. E, nisto, o mulato ganhava apenas conhaque ou cachaça.
Onde colhia os meios com que pudesse atender às despesas de pequena família, ele, a mulher e o Quinzinho, era nos bailes.
— Uma noitada de música? Vinte mil réis!
A respeito de sua vida particular pessoa alguma criara hipóteses menos favoráveis. Ao chegar, já viera acompanhado do filho e da Nhana.
Se bem que não houvesse certeza de serem casados legalmente, a aparência de pacata vida conjugal repelira, às profissionais do fuxico, a ideia de qualquer pesquisa. Sabia-se apenas que a Nhana brigava com o Valério, por alguns minutos, quando ele voltava bêbado, depois de uma tocata noturna.
Ao tempo que ali aportara Valério, o lugar sofria flagrante decadência. E, retrogradando, ia perdendo todas as provas do antigo progresso. Até a banda musical (outrora respeitada em todos os municípios vizinhos), perdera um a um os elementos, e o instrumental azinhavrado, sem lustro existente nas épocas passadas, lá repousava, coberto de pó, nos armários toscos da Prefeitura.
Logo de chegada, Valério reclamou:
— Onde já se viu uma cidade como esta, sem banda nem orquestra? Falta de vergonha...
E, sem mais demora, se pôs a atalhar o “abuso”, como dizia. Arranjou violonistas aqui, tocadores de cavaquinho ali, e em poucas semanas exibia o pequeno conjunto muito bem ensaiado em valsas e sambas. A estreia foi de sucesso. Desde então o “chorinho” do Valério começou a ser procurado por toda a parte.
Personalizou-se assim o mulato. Adquiriu nome. Tocando mais pelo gosto à música que por interesse, caiu na simpatia dos rapazes.
E rara a noite em que não ganhassem os ares os sons vagabundos do velho clarinete.
Depois deste primeiro passo, Valério almejou mais ainda. Quis ressuscitar a banda. Onde arranjar, porém, músicos e instrumentos? Estes últimos, conseguiu-os do prefeito. Mas, os tocadores? Sem desacorçoar, Valério convidou alguns rapazes para estudar música. Foi tiro e queda. A ideia triunfou imediatamente. Por cúmulo de sorte, um moço do lugar, chamado Otávio de Morais, muito bem apessoado, dava-lhe todo apoio, animando-o constantemente.
Iniciou Valério, pois, as modestas lições. Depois de inumeráveis esforços, de dias e noites passadas em contato com mínimas e semínimas, com claves e campanas, percebeu que sua ideia surtira efeito. Todas as tardes reunia, na sala humilde de sua morada, os oito companheiros, cada qual mais entusiasta que outro.
Meses depois estava preparada a corporação. Pronta para mostrar-se em público. E naquele domingo, o Valério resolvera exibir o fruto de seus esforços.
Já muito tempo antes a notícia percorrera a cidade. E acrescida, ainda, de outra circunstância. A marcha escolhida para a estreia seria uma composição especial do Valério, composição que lhe custara várias semanas de pertinaz trabalho e na qual pusera o charadístico título de “Boi lavrado”.
Vitorioso, Valério afeiçoara-se ao lugar. Ali não precisava cuidar de outra coisa, a não ser da música.
Quando não tinha contratos para tocar, metia-se, apesar das iras da Nhana, em barulhentas serenatas.
Em certos dias da semana, entretanto, minguavam os companheiros de estroinice. O mulato, então, dispensava os ensaios e deixava-se ficar em mangas de camisa, pacatamente assentado à porta da casa.
Nessas ocasiões era seu maior contentamento pôr ao colo o Quinzinho, acariciar-lhe os cabelos muito levemente encarapinhados, pousar-lhe no rosto olhares impregnados de imensa ternura, e com voz brandar-lhe dizendo:
— Quinzinho. Daqui a dois anos você vai começar a aprender. Começando cedo, quando você estiver com quinze anos já será cuera na execução. Quinzinho, logo que inteire as economias, vou mandar buscar em São Paulo um instrumento bem novinho, de double dó. Você deve saber, antes de pôr calça comprida, variações difíceis como o do “Girimeu”. E deve também tocar todas as semicolcheias melhor que o Cláudio Barroso. E quando você souber contraponto, comporá um dobrado bem bonito, pondo-lhe o nome do pai, ouviu, Quinzinho?
O menino abria desmesuradamente os olhos. Depois fitava o pai, sorrindo.
Valério considerava aquele olhar e aquele sorriso com a prova irrefutável de que o Quinzinho seria, no futuro, um homem acorde com o seu ideal. E com maior ternura ainda punha-se a afagar-lhe a cabeça, continuando a balbuciar nos ouvidos do filho tudo o que lhe ditava o amor de pai.
Foi em uma tarde dessas que o Otávio Morais resolveu dar um tico de prosa com o Valério. Eram ambos muito acamaradados. Otávio percebia em Valério acentuada bossa musical, atrofiada embora pelo desregramento da vida e viciada falta de cultura, e não escondia sua simpatia, com resquícios visíveis de compaixão, ao humilde clarinetista.
Apenas parou em frente à casa de Valério, foi dizendo:
— Então, mestre? Boa vida, hein? E depois dizem que a música não dá em nossa terra.
O outro sorriu, tirando Quinzinho do colo e trazendo uma cadeira da sala.
— Não se incomode. Estou de passagem.
E puseram a conversar.
Quinzinho olhava ora para um, ora para outro, mudamente, muito tristinho, coçando o nariz de vez em quando e pondo as mãos sobre a barriga, que se lhe desenvolvera bastante. A conversa recaiu sobre ele, num dado momento. Dizia com orgulho o pai:
— Seu Otávio, este meu filho é ladino como só ele. Assiste a todos os ensaios com atenção. E só o senhor vendo a alegria dele quando alguém me vem contratar. Fica de prontidão, disposto a me seguir e a carregar as partituras. Não vai também às serenatas porque a Nhana faz pé firme. Senão... Calcule o senhor que um dia destes o Quinzinho me disse: “Pai. Por que não compõe uma valsa com o meu nome?” E eu, que remédio!, tive que comprar mais papel pautado e apertar a cabeça.
E concluiu, ufano:
— Dentro de poucos dias vou ensaiar a valsa “Quinzinho”.
— Bravos. O seu menino demonstra ter gosto pela música. O senhor deve instruí-lo o mais cedo possível. Quem sabe lá, Valério, não será ele no futuro um grande compositor ou, pelo menos, um ótimo executor?
O outro tentou uma pilhéria:
— E como é que não? Pois na noite em que o Quinzinho nasceu, eu estava tocando na serenata mais histórica que fiz em Itaberá...
Ao despedir-se, Otávio quis fazer uma carícia ao Quinzinho. E reparou:
— Valério. Dê algum remédio ao menino. Veja como está pálido e pançudo. São as bichas, pode crer.
O mulato agradeceu a indicação daquela amizade que o lisonjeava e, apenas o moço ganhou a rua, mergulhou na sala em penumbra, escarafunchando a papelada que estava sobre a mesa.
Antes de dobrar a esquina, Otávio ouviu sons estrídulos de clarinete. Era o Valério que examinava a combinação de acordes em alguns trechos da sua nova composição.
Alguns dias depois a humilde morada de Valério regurgitava de gente.
De dentro, vinham lamentos de cortar o coração.
Descia, nesse momento, a rua, seriamente, o Otávio de Morais. Chegou-se à porta.
Apenas o viu, Valério, sem paletó, mal presos os suspensórios, os olhos marejados de lágrimas que lhe molhavam o rosto trigueiro, abriu largamente os braços. E estreitando o amigo, foi dizendo com voz entrecortada de soluços:
— Seu Otávio. Vejo só que desgraça! Agora que o Quinzinho estava nas vésperas de completar cinco anos... agora que eu queria ensinar o meu filho... as bichas o atacaram, sem dó nem piedade. Bem que o senhor me tinha dito noutro dia, seu Otávio... mas eu me esqueci, por causa de tanta tocata... eu me esqueci de procurar o remédio... e hoje o coitadinho do Quinzinho foi-se embora pro céu. Ah! Que desgraça! Agora, quando é que eu vejo um filho meu tocando clarinete? Quando, meu Deus? Que desgraça, seu Otávio! Que desgraça...
E Valério chorava como criança, sentando-se no banco e pondo o rosto entre as mãos.
De tempos a tempos, aumentando o pranto espalhafatoso, levanta os olhos para pousá-los no pequeno cadáver posto à mesa — o Quinzinho, o corpo inocente velado por quatro círios modestos, as órbitas muito dilatadas, a pele brilhante, o ventre formando um bojo enorme nos lenços sem luxo que cobria, o Quinzinho, que levava para o túmulo o grande e único ideal do mulato, carregando consigo, também, os últimos acordes do surrado clarinete.
Valério, na verdade, nunca mais tirou a boquilha do instrumento, desistindo por completo de fazer serenatas. E devolveu ao prefeito, além do instrumental, de novo condenado a azinhavrar-se nos armários poeirentos da Prefeitura, o arquivo da filarmônica, acrescido, porém, de mais duas partituras: a marcha “Boi Lavrado” e a sentimental valsa “Quinzinho”.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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