sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Nilto Maciel (Restolhos de baú)

Não conhecíamos brinquedos industriais. As bonecas das meninas se faziam artesanalmente de pano e recheio de algodão ou trapos. Os meninos brincavam com castanhas de caju. Cada jogador utilizava uma tampa circular de lata. Tamanho médio de um pires. Recheava-se a tampa com cera de abelha ou vela derretida. Colocavam-se algumas castanhas nas extremidades de um triângulo riscado no chão. O primeiro jogador, postado a cinco ou mais metros de distância do desenho, lançava a latinha na direção das castanhas. Esse mecanismo se dava assim: um dedo fura-bolos, acionado pelo indicador da outra mão, atingia a lata, fazendo com que ela se locomovesse pelo chão e alcançasse as castanhas. O jogador que atingisse uma das castanhas, lançando-a fora do triângulo, teria direito a nova jogada. Venceria o jogo se deslocasse todas as castanhas. Se errasse o alvo, o outro jogador se agacharia para desferir o golpe na sua latinha. Ganhava quem conseguisse atingir maior número de castanhas. O vencedor se apossava das peças em jogo.

Brincava-se também com carrinhos de madeira, feitos de ripas, pregos, parafusos, borracha, sebo ou graxa para azeitar as rodas. Os choferes quase sempre necessitavam de ajudantes. Em troca das ajudas, viravam ajudantes. Sem isso, os carrinhos só rodavam nas descidas. Nos declives, atingiam velocidades espantosas. Só os bons choferes conseguiam escapar aos acidentes. Esse brinquedo seria a versão pobre ou rudimentar do velocípede.

Aconteciam também pequenas tragédias domésticas. Quando Edinardo caiu da rede, na casa de tia Nazaré, nada vi. Terá caído mesmo? Pode ter sido um sonho. Eu não sabia sequer onde ficava a casa dela. Devo ter imaginado os detalhes do acidente: meu irmão a balançar-se numa rede e, súbito, a queda. Teria levado forte pancada na cabeça e desmaiado.

Deu-se também a morte de um passarinho. Criava-o desde o surgimento da primeira plumagem. Não sei como ele chegou a mim. Imagino um ninho no quintal, o ovinho, o despertar para a vida, o sumiço da mãe. Andava pela casa, sob meus cuidados. Um dia, por descuido, balançava-me numa cadeira. Súbito o piado de agonizante. Acabava de esmagar o bichinho.

E as férias? Em 1957 viajei a Apuiarés, onde morava Alda. Algumas horas na boleia de um velho caminhão transformado em meio-ônibus. Passei a maior parte do tempo na mercearia de um amigo dela. Ao final da tarde, os cassacos (trabalhadores braçais contratados pelos governos em períodos de seca para construção de estradas e serviços afins) iam fazer compras, falar do trabalho pesado, da seca. Fui também ao rio, que, apesar da seca, corria volumoso.

Antes disso, conhecia apenas lugarejos e sítios ao redor de Baturité. Um deles chamava-se Olho d’Água. Por estreita trilha, coleante e em subida crescente, depois de uma hora de caminhada chegava-se lá. Terras dos jesuítas, onde mantinham a Escola Apostólica, imponente construção de pedra, perfeitamente visível desde a cidade. Mamãe frequentava a igreja desses padres com assiduidade, sobretudo para se confessar com padre Redondo, já velhinho. E quase sempre levava com ela os filhos pequenos. Divertíamo-nos muito ao redor do templo e da escola. E chupávamos mangas.

Em 57 se deu minha primeira viagem a Fortaleza. Com Ailton. De trem ou de ônibus. José morava num hotel à Rua Senador Pompeu. Manhã brilhante e nova para mim. Via o centro da capital pela primeira vez. Da janela de um hotel. Na rua, muitos carros. Um burburinho nunca imaginado. No quarto, uma cama e um armário.

No ano seguinte fomos morar na capital. Numa casinha da Rua Conrado Cabral, no Monte Castelo. Longe, Nelson Gonçalves não parava de cantar a “A volta do boêmio”. Não sei por que motivo, passamos pouco tempo nela, coisa de meses. Mudamo-nos para uma casa pequena, em Joaquim Távora. Íamos à missa todos os domingos. Acordávamos cedinho. Os galos cantavam nos quintais. As casas de portas fechadas. O frio da madrugada. Tudo quase escuro. Uma diversão, uma novidade naquela vida monótona de fome, jogo de botão e “tijolinhos” (docinhos feitos por mamãe para serem vendidos nas bodegas).

José aparecia de vez em quando. Ia nos visitar. Coisa de minutos. Sempre correndo. Morava na Vila União, com uma mulher. Dizia ser o dono da vila. Depois vendeu tudo e foi embora para Brasília. Enquanto conversava com mamãe ou almoçava, pedia para ficarmos de olho no ônibus. Subíamos ao muro e de cima dele avistávamos as ruas circunvizinhas. O ônibus fazia voltas, até chegar à esquina da rua onde morávamos.

Naquele ano meu grande desejo era ouvir as transmissões radiofônicas dos jogos do Brasil pela Copa do Mundo. Mas não tínhamos rádio em casa. As lojas de eletrodomésticos atraíam gente, rádios à mostra ligados. Vez por outra, eu parava para ouvir. Uns minutinhos, porque poderia perder o horário do ônibus. Morria de medo de voltar a pé, tarde da noite.

No final do ano, voltamos a Baturité. Para a mesma casa da Avenida Dom Bosco. Onde papai morava com Lúcia e parte da família de Tia Nazaré. José e Amadeu se haviam mudado para Brasília, com alguns primos. Alda continuava em Apuiarés; Izeida, em Recife.

Caminhões subiam e desciam a Av. Dom Bosco nos sábados de feira livre. Muita agitação nas ruas. A feira regurgitava de vendedores e compradores.

No colégio dos padres salesianos, num dia muito quente, fizemos, os alunos externos do colégio, um passeio a pé. Talvez a um sítio dos padres. Longe da cidade. Não lembro da ida. Pode ter ocorrido cedinho, antes de o sol raiar de todo. Não sei quanto tempo lá passamos e o que lá fizemos. Lembro bem da volta. Caminhamos por uma estrada durante mais de uma hora, debaixo de um sol de derreter os miolos. No mesmo dia ou no seguinte? Não, não lembro de termos dormido lá.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999). 
“Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa.” (José Feldman, em Nilto Maciel o mago das almas, 18/12/2010)
Fontes
Http://www.niltomaciel/229.htm Acesso 17.10.2011
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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