sábado, 29 de março de 2025
José Feldman (O Livro Mais Chato do Mundo)
Era uma vez um escritor chamado Joaquim que sonhava em publicar seu grande romance. Ele passava horas em seu pequeno escritório, cercado por pilhas de papéis e canecas de café esfriando. A ideia era brilhante: um livro repleto de histórias sobre a vida de formigas, suas rotinas diárias e os desafios de encontrar migalhas. Joaquim estava convencido de que seu livro seria um sucesso.
Após meses de trabalho árduo, Joaquim enviou seu manuscrito para várias editoras. No entanto, as respostas foram desanimadoras. Uma editora até escreveu: “Agradecemos, mas suas histórias sobre formigas são... bem... formigáveis.”
Ele ficou chateado, mas não desanimou. Ele acreditava que um dia alguém veria a genialidade de seu trabalho.
Finalmente, um dia, Joaquim recebeu uma notícia que o deixou radiante. Ele correu para o bar onde seus amigos costumavam se reunir e, com um sorriso de orelha a orelha, anunciou:
— Pessoal! Tenho uma novidade incrível! Recebi um pagamento por meu livro!
Os amigos pararam de conversar e olharam para ele com curiosidade.
— Uau! Que legal, Joaquim! — disse Pedro, um dos amigos. — Finalmente, alguém reconheceu seu talento!
— Qual editora finalmente decidiu publicar seu trabalho? — perguntou Maria, entusiasmada.
— A Editora Formiguinha! Eles disseram que meu livro está prestes a ser lançado! — exclamou Joaquim, batendo palmas de alegria.
Os amigos começaram a aplaudir e a brindar em sua homenagem.
— Às formigas! — gritaram, rindo.
No entanto, Joaquim, ainda em seu estado de euforia, não percebeu que havia uma pequena sombra de dúvida pairando sobre a mesa.
— Isso é ótimo, mas como você conseguiu um pagamento antes mesmo do lançamento? — perguntou Carlos, franzindo a testa.
Joaquim, um pouco desconcertado, explicou que havia enviado o manuscrito há meses e que, por algum motivo, a editora decidiu pagar adiantado. Ele estava tão feliz que não via a necessidade de esclarecer mais.
Os amigos, animados, começaram a fazer planos para uma grande festa de lançamento. Joaquim estava nas nuvens, sonhando com o sucesso e as vendas.
No entanto, quando a empolgação começou a se acalmar, uma dúvida surgiu na mente de Joaquim.
— Espera um pouco... — ele pensou. — Como seria possível receber um pagamento sem ter um contrato assinado?
Com isso, decidiu entrar em contato com a editora. Após várias tentativas, finalmente conseguiu falar com alguém.
— Olá, aqui é Joaquim, o autor de “As Aventuras das Formigas”. Eu recebi um pagamento, mas não estou certo sobre o motivo... — começou ele.
Do outro lado da linha, uma voz muito profissional respondeu:
— Ah, sim, Joaquim! O pagamento foi referente ao reembolso...
— Reembolso? — perguntou Joaquim, perplexo.
— Sim, seu manuscrito foi extraviado pelos correios e, por isso, decidimos reembolsá-lo. Pedimos desculpas pela confusão.
Joaquim ficou em silêncio, tentando processar a informação. Ele havia confundido um reembolso por extravio com um pagamento por publicação. Com o coração na mão, ele desligou o telefone.
Desesperado e um pouco envergonhado, decidiu voltar ao bar, onde seus amigos ainda estavam celebrando. Ao entrar, a música parou e todos olharam para ele.
— E então, Joaquim? — gritou Maria, toda empolgada. — Vai ser uma grande festa, não é?
Joaquim respirou fundo e, com um sorriso amarelo, confessou:
— Na verdade, pessoal, eu não recebi um pagamento... O que aconteceu foi que os correios perderam meu livro e eles me reembolsaram!
O silêncio tomou conta da mesa, seguido por uma explosão de risadas.
— Então, você está dizendo que seu livro é tão chato que até os correios não conseguiram se interessar? — brincou Pedro, quase se engasgando.
Joaquim respondeu:
— É, parece que minha obra-prima não estava destinada a ser lida... nem pelos correios!
E assim, entre risadas e piadas sobre formigas, Joaquim decidiu que, talvez, fosse hora de reavaliar suas histórias e, quem sabe, escrever sobre algo mais emocionante. Afinal, ele já tinha experiência com histórias que ninguém queria.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, escritor e gestor cultural nasceu em São Paulo, mas se radicou no Paraná desde 1999. Trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas em São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos. Diretor cultural. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, Assina seus escritos pela cidade de Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.
Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Vereda da Poesia = 236
CAROLINA RAMOS
Santos/SP
ARREPENDIMENTOS
Erraste... e quem não erra neste mundo,
repleto de sofismas e ciladas?!
Basta-nos, para errar, um vil segundo,
que o demônio nos tece, às gargalhadas!
A vida abismos cava... explora a fundo,
as faltas pequeninas, simples nadas;
absolve, purifica um charco imundo,
de linhas retas, faz encruzilhadas!
Vês? A vida é também contraditória!
Não te anule a opressão de um desatino!
Ponto final! E enceta nova história,
repetindo, a evitar outros tormentos;
- Assento os alicerces do destino,
"nos meus fecundos arrependimentos" (*]
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(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
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Poema de
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA
JUVÊNCIO
Assim vai Juvêncio
na sua aventura.
Da mata, o silêncio,
suave langor...
- Que motivo tanto
pra tanta bravura?
- Vai atrás do encanto
do seu santo amor.
Um riso escondido
no rosto moreno.
Herói das entranhas
das matas em flor.
No olhar sereno,
uma luz estranha...
Coisas do Cupido,
ciladas do amor!
Vai rasgando as águas
revoltas e turvas,
afogando as mágoas,
sufocando a dor.
Vai dobrando as curvas
do rio e da vida,
esquecendo a lida.
Vai ver seu amor!
A noite já avança,
o sol já descansa,
remar, seu ofício,
sua sina, lutar.
A canoa balança,
o remo lhe cansa.
Tanto sacrifício
pelo verbo amar!...
Não sente pavor
de fera ou visagem,
só pensa na imagem
da Rosa a esperar.
Vai pensando nela,
tão meiga, tão bela,
repleta de amor
e beijos pra dar.
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO
Quem ama não tem vergonha,
faz das tripas coração,
faz que não vê muita coisa,
sofre cada ingratidão!
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Soneto de
VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980
SONETO DA SEPARAÇÃO
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA
CREPÚSCULO SERTANEJO
A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
Sussurro profundo! Marulho gigante!
Tal vez um silêncio!... Tal vez uma orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto ...
Do átomo à estrela... do verme - à floresta!...
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas - da brisa ao açoite;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!
Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos - um touro selvagem.
Então as marrecas, em torno boiando,
O voo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!…
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Poema de
CRIS ANVAGO
Setúbal/ Portugal
Estremeço nas palavras que não digo
Guardo-as numa caixa fechada, meu abrigo
O céu fica nu sem as estrelas
Ficam tristes os olhos que não conseguem vê-las
Sem ondas o mar adormece
A sereia, sem admirador não aparece
O sol não brilha por detrás das nuvens
A estrada é fácil se não existirem curvas
A chuva não cai se a nuvem não chora
Evapora-se o sorriso se o amor demora...
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Soneto de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937
Beijos no Ar
No silêncio da noite, alta e deserta,
inebriante, férvido sintoma,
uma fragrância feminina assoma
e tentadoramente me desperta.
Entrou-me, em ondas, a janela aberta,
como se se quebrara uma redoma,
da qual fugira o delirante aroma,
que o mistério do amor assim me oferta.
De que dama-da-noite ou jasmineiro,
de que magnólia em flor, em fevereiro,
se exala esse cálido desejo?
Ela sonha comigo: esse perfume
vem da sua saudade, que presume,
embora em sonho, ter-me dado um beijo!
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN
Longe dos meus campos,
das outonais primaveras,
não há pirilampos!
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal
SINTO O SANGUE GELAR-SE-ME NAS VEIAS
(Verso de José Barreto)
Sinto o sangue gelar-se-me nas veias
Quando no peito morre uma esperança
Ou se solta um cabelo de uma trança
Onde o ouro brilhava sem ter peias;
E quando a luz que havia nas ideias
Se extingue sem deixar qualquer herança
Que no futuro seja uma lembrança
Dos povos que cantaram epopeias.
E o meu corpo minado pelo frio
Ganha a dureza gélida de um rio
A que os polos dão alma de glaciar.
Sou branca massa de água deslizando
Que sobre um mar de mágoa abominando
Onde eu não sou capaz de me afogar.
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Soneto de
MACHADO DE ASSIS
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908
SPINOZA
Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante ideia.
E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.
Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas
Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP
Nas folhas do tempo
ouço o som do vento.
Às vezes lamento,
outras, só fragmento.
As folhas farfalham,
no vento gargalham.
Pedaços se espalham
no tempo, embaralham.
As folhas se agitam
no tempo, levitam
os restos, hesitam.
Os ventos, excitam.
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP
MINHA CASA
Em frente à minha casa há um jardim
onde os pássaros cantam saltitantes.
Lá dentro há café, beiju e aipim
e a mesa é farta para os visitantes.
A grama verde, as flores e o jasmim
acolhem beija-flores cintilantes.
Quatro palmeiras firmes dizem sim
e fazem sombra aos corações amantes.
Em minha casa tenho alguns armários,
e os livros - meus amigos necessários
que me ensinam a crer num sonho bom.
Creio no amor e em dias fulgurantes
enquanto os versos brotam abundantes,
vou escrevendo e assino Filemon.
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal
FALTA DE MIM
Não me sinto há muito,
desapareci,
voei.
Levei de bagagem de mão
o meu coração
e não prometi regressar.
Chorei,
gritei
e até à dor me dei,
sem me conseguir resignar.
O que sinto só eu sei,
não me quero enganar.
Por isso fui
e não voltei…
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Poema de
SILMAR BOHRER
Caçador/SC
AS NEBULOSAS
Ôba! o solzinho trigueiro
arrebentou as nebulosas,
aquelas nuvens grandiosas
que escondiam o dia inteiro.
Pequenas nesgas de céu
na vastidão das alturas
dão conta que iluminuras
vem chegando pra "dedéu".
Igualmente em nossas vidas
vivemos pedindo guaridas
com raios de esperança,
Átimos, faíscas, lampejos,
consolidando nossos desejos
de dias com mais bonança.
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Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR
Vaga
o vaga-lume.
Vaga luz
num vago mundo
procurando
vaga.
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Soneto de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO
DOCES SONHOS
Sem ti, percorro gélidas paragens
No olhar, nem mesmo há tímida flamância,
Tornou a vida vápida* a distância,
Mas sonho e vejo lúbricas imagens.
Por teres essa mélica fragrância
São belas as oníricas viagens.
Contigo erijo mágicas paisagens,
Deleito-me na fúlgida elegância.
Da seiva desses únicos instantes
Encerras nos teus ósculos vertentes.
Encontro em ti recôndito o alimento.
Nós dois, tal como indômitos amantes
Trocando afagos sôfregos e ardentes,
Assim, construo o tórrido momento.
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* vápida = insípida.
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Poetrix de
ROSA CLEMENT
Manaus/AM
BORBOLETA
centro da cidade
a mariposa entra no ônibus
e passa pela borboleta
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Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP
ESPERA
É na tua ausência que desfolho tristezas
e acaricio lembranças.
É nas horas de solidão
que ganho asas, te bebo e te navego.
Nos meus sonhos te encontro rarefeito,
envolto na volátil presença da noite que te engole.
O sonho passa, mas meu corpo refeito
é um profundo oceano à espera das tuas redes.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ
EN-CANTO
Mesmo sem voar, o passarinho
canta... que mistério há nesse encanto?
... posso vê-lo rir, sentindo o pranto
que acaricia o seu carinho.
Neste mundo há tanto desencanto...
mas quem é feliz sendo sozinho,
sabe que é na solidão do ninho
que o cantar se torna um acalanto.
Lindo!... alguém dirá... Como ele canta!
...sua solidão, embora tanta,
é a mais sincera companhia,
pois, no canto escuro da gaiola,
o cantar mais triste que o consola,
faz se canto, um toque de...poesia.
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Poema de
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ
A DOR MAIOR
Não quis julgar-te fútil nem banal
e chamei-te de criança tão-somente,
- reconheço, no entanto, infelizmente,
que, porque te quis bem, julguei-te mal.
Pensei até, ( e o fiz ingenuamente...)
ter encontrado a companheira ideal...
Quis julgar-te das outras diferente,
e és como as outras todas afinal...
Hoje, uma dor estranha me consome
e um sentimento a que não sei dar nome
faz-me sofrer, se lembro o amor perdido...
A dor maior... A maior dor, no entanto,
vem de pensar de Ter-te amado tanto
sem que ao menos tivesses merecido!...
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Soneto de
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP
FOI TEU ABRAÇO!
Foi teu abraço que, um dia,
Dos outros todos tirou
Qualquer graça que eu sentia
Doutros que o tempo levou.
Foi teu beijo que depois
Me afastou de quem beijei.
Ficaram só pra nós dois
Os demais beijos que eu dei.
À minh'alma, finalmente,
A alma gêmea apareceu.
E o amor se fez presente
A teu coração e ao meu!
Foi teu calor que acoplou
A meus carinhos os teus.
Foi nosso amor que alcançou
Beneplácito de Deus.
Este é o encontro atual,
Prescrito em nossos pretéritos;
Dos céus, chegam, afinal,
Dádivas por nossos méritos.
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES
EU CREIO
Eu sei que existe um mundo diferente
e Alguém que monitora e nos assiste
o tempo inteiro e minuciosamente.
Eu não sei onde, mas eu sei que existe!
Eu sei que existe um Deus Onipotente...
talvez não seja alguém com dedo em riste,
aspérrimo e que vai punir a gente,
franzindo o cenho a qualquer simples chiste.
Desconstruindo a história divinal,
não resta mais que um ciclo material...
princípio e fim da natureza humana.
Alguém criou o espaço, o firmamento;
controla este universo em movimento
e a criação... de forma soberana!
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964
ACEITAÇÃO
É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.
É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.
Não me interessam mais nem as estrelas,
nem as formas do mar, nem tu.
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
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Abbie Philips Walker (Lafayette)
Embora “Lafayette” possa parecer um nome pomposo para um cachorro, estou aqui para contar a história de um poodle francês chamado Lafayette, ou Fay, como era chamado carinhosamente. Um dia, Fay estava descansando sobre uma almofada de seda azul colocada em um assento de janela que dava vista para o quintal. Ao ouvir um latido lá fora, ele se levantou e espiou pela janela.
Era um cachorro amarelo e desgrenhado perseguindo um gato que chamou a atenção de Fay. Inicialmente, ele franziu o nariz diante da visão daquele cão de aparência comum, pronto para voltar à sua soneca. Mas algo o fez continuar assistindo ao que estava prestes a acontecer.
O cão amarelo latia e dava saltos em direção ao grande gato que estava empoleirado no topo de uma cerca, com as costas arqueadas e o rabo eriçado, expressando raiva. Por mais que tentasse, o cachorro não conseguia fazer o gato sair do lugar. De repente, Fay ouviu um latido alto e, para sua surpresa, seu próprio focinho bateu contra o vidro da janela. Foi ele quem latiu dessa vez, tomado por um entusiasmo inesperado. Fay tinha certeza de que, se o cachorro do lado de fora pulasse um pouco mais alto, o gato certamente fugiria.
Uma empregada correu para o lado de Fay, curiosa para entender o que estava causando toda aquela agitação.
“Ah, Fay, você não deve latir para esse gato horrível e esse cachorro com aparência suja”, ela reclamou, acariciando-o e ajeitando a almofada de seda para que ele voltasse a relaxar.
Com um suspiro, Fay se deitou novamente. Mas algo havia mudado dentro dele. Ele sentiu um desejo inexplicável de sair correndo para perseguir aquele gato. Ele também estava convencido de que poderia assustar o cachorro, afinal, aquele era o seu quintal.
Fay começou a refletir. “Lafayette”, murmurou. “Que nome para dar a um cachorro! Por que não me chamaram de Ned, ou Ted, ou até mesmo Bill? E minha pelagem, que coisa terrível – toda cacheada, longa e branca. Eu gostaria que algo acontecesse para que ela ficasse preta. Sempre que vou ao parque, todos os outros cachorros debocham de mim. Eu costumava pensar que eles estavam com inveja da minha aparência majestosa, mas agora percebo que eles estavam apenas zombando de mim. Eu não aguento mais isso!” Fay rosnou, frustrado.
“Mas o que há de errado com você esta manhã?” exclamou a empregada, correndo de volta ao lado de Fay. “Nunca ouvi você latir e rosnar assim antes.”
Fay apenas piscou os olhos, mas abanou o rabo de um jeito que indicava que mostraria à empregada exatamente como se sentia durante o passeio matinal. Eventualmente, a empregada voltou, vestida para levá-lo ao parque. Ela enfeitou a coleira de Fay com um laço e prendeu a guia.
Fay pulou do assento junto à janela e a seguiu com uma expressão abatida. Naquela manhã, ele não ergueu a cabeça nem desfilou como fazia normalmente. Sentia uma vergonha recém-descoberta sobre sua aparência. Quando chegaram ao parque, dois cães de rua emergiram dos arbustos, latindo e rosnando para Fay. Aquilo foi a gota d’água. Seu espírito de luta despertou, e, aproveitando-se de um momento de distração da empregada, Fay facilmente arrancou a guia das mãos dela e disparou. Apesar da guia limitar seus movimentos, Fay rapidamente fez os cães de rua de bobo, assustando-os e fazendo-os fugir com o rabo entre as pernas. “Que diversão!” pensou Fay. “Vou fugir, para onde a empregada nunca me encontrará. Ah, como eu gostaria de encontrar um gato!”
Com saltos e corridas, Fay cruzou o gramado, desaparecendo rapidamente da vista da empregada e de um policial que tentava persegui-lo. Em uma rua transversal, um jornaleiro tentou segurar Fay para ler o nome em sua bonita coleira, mas Fay conseguiu escapar dele, finalmente sentindo-se verdadeiramente livre.
O jornaleiro assustado entregou a coleira para o policial que tinha presenciado a tentativa frustrada de capturá-lo. Eles acreditavam que uma generosa recompensa estava esperando quem conseguisse trazer Fay de volta. No entanto, voltar era a última coisa na mente de Fay. O que ele realmente desejava naquele momento era encontrar um gato.
Fay continuou correndo, deixando para trás o bairro que ele chamava de lar havia tanto tempo. As ruas ficaram lamacentas e assim que ele se sentiu distante o suficiente da empregada, rolou, pleno de alegria, em uma poça de lama na sarjeta. Ele estava irreconhecível, muito longe do cão impecável e delicado que havia saído de casa naquela manhã.
Emergindo do esgoto, Fay parou por um momento para observar os arredores. Bem, ele não ficou realmente parado, ele saltitava e farejava, contemplando qual direção seguir. De repente, outro cachorro se aproximou.
“Olá”, cumprimentou Fay. “Não é este um mundo maravilhoso?”
“Não sei, é mesmo?” respondeu o outro cachorro.
“Mas é claro,” retrucou Fay. “Hoje de manhã, eu estava do outro lado do mundo, e agora fugi e vim parar aqui. Então, não é apenas ótimo, mas também um mundo esplêndido, como descobri.”
“Não sei se concordo com isso,” ponderou o cachorro desconhecido. “Às vezes parece bastante difícil, especialmente quando não consigo encontrar um osso.”
“O que é um osso?” indagou Fay, que durante sua vida só havia sido alimentado com carnes cozidas e restos de frango.
“Você não sabe o que é um osso?” perguntou o cachorro estranho, olhando para Fay com surpresa. “Você não tem dentes?”
“Claro que tenho,” respondeu Fay, mostrando seus dentes afiados. “Mas o que é um osso?”
“Suponho que você nunca tenha vivido por aqui,” comentou o outro cachorro. “Ossos são escassos, mas ocasionalmente encontramos um. Veja bem, ossos são para comer.”
Fay espiou pelo buraco na cerca, avistando a pilha de ossos, mas eles não o entusiasmaram nem um pouco.
“Para que servem?” ele perguntou.
“Para comer, é claro,” explicou o outro cachorro, observando com entusiasmo os ossos através do buraco. “Talvez não pareçam apetitosos para você, mas veja se você os gosta, por que não pega um?”
“Eu já mencionei que o cachorro que é dono deles é um briguento,” respondeu o cachorro estranho.
“Você tem medo dele?” perguntou Fay.
“Certamente não quero que ele me pegue,” confessou o outro cachorro.
“Bah,” desdenhou Fay. “Eu não tenho medo. Vou pegar um osso para você. Espere aqui.”
“Tome cuidado,” alertou o cachorro estranho. “Quando ele te ouvir, ele vai sair correndo daquela casa, e ele é maior do que você.”
Tamanho não importava para Fay; ele se considerava bastante imponente. Ele era mais alto do que a maioria dos cachorros que havia encontrado. Assim, ele se espremeu pelo buraco na cerca e rapidamente seguiu em direção à pilha de ossos.
Com um rosnado e um latido, o dono dos ossos apareceu. Fay manteve sua posição, encarando o cachorro grande.
“Saia daqui,” o cachorro ameaçou. “Eu vou lutar com você se não for.”
“Onde você conseguiu todos esses ossos?” Fay perguntou com coragem. “Tenho certeza de que você os roubou, e eu vou pegar um para um amigo meu.”
Não que isso fosse totalmente o certo, mas é assim que às vezes os cachorros raciocinam.
O cachorro grande ficou surpreso pelo fato de Fay não fugir, como todos os outros cachorros faziam. Ele não tinha certeza de como agir, mas quando Fay pegou um osso, aquilo foi demais para ele suportar sem tentar impedi-lo. Ele pulou em Fay, mordendo sua perna, mas assim que fez isso, Fay largou o osso e virou-se contra ele. Por um instante, parecia que haviam cachorros para todo lado. E então, com um forte ganido, o outro cachorro fugiu, deixando Fay sozinho com a pilha de ossos.
Fay sacudiu-se e olhou para o buraco na cerca. “Entre e pegue à vontade,” ele disse ao cachorro estranho do outro lado. “Agora você pode pegar quantos quiser. Ele não voltará.”
“Eu não achei que você fosse capaz disso,” disse o cachorro estranho, passando pelo buraco sem precisar de um segundo convite. “Qual é o seu nome?”
Essa foi a primeira vez que Fay sentiu algo além de prazer, mas agora ele parecia abatido — ele simplesmente não conseguia contar ao outro cachorro seu terrível nome.
“Ei, qual é o seu nome?” perguntou o cachorro novamente, enquanto mastigava um grande osso.
“Meu nome é Bill,” respondeu Fay, pensando rápido. “E o seu?”
“Tige,” respondeu o cachorro. “Eu odeio esse nome e queria que fosse Napoleão ou algo mais elegante.”
“Eu acho Tige um nome legal,” disse Fay, “melhor que Bill, até, e eu gosto bastante do meu.”
“Sim, é bom, mas alguns desses cachorros que vivem entre os ricos têm nomes elegantes. Eu encontro um deles no parque às vezes. Ele é branco, sempre tem uma empregada com ele, e às vezes usa um laço rosa ou azul no colar de prata. Acho que o nome dele é Fay ou algo assim. Nossa, ele é um sujeito bonito!” disse Tige, ainda roendo os ossos.
“Não acredito que ele seja mais feliz do que você — quero dizer, do que nós,” disse Fay, aliviado por estar livre do laço e do colar.
“Hum,” disse Tige, “aposto que ele é mais feliz do que jamais sonhamos ser. Veja bem, Bill, meu caro, esses cachorros ricos têm sua comida servida em pratos de prata, já ouvi dizer, e já cortada e pronta para comer, e ouvi dizer também que dormem em almofadas.”
“Em que você dorme?” perguntou Fay, sem pensar no que estava perguntando.
“No chão na maior parte do tempo. E você?” respondeu Tige.
“Ah, claro,” disse Fay. “Eu achei que talvez você dormisse em um tapete.”
“Parece que eu durmo?” perguntou Tige. “Nunca dormi em nada macio na minha vida. Mas por que você não tenta um desses ossos, Bill? Esta é sua festa, e você ainda não provou um osso.”
“Eu estava observando você comer,” disse Fay, “mas eu vou pegar um. Nunca comi um antes.”
“Nossa, eu não achei que algum cão pudesse ser mais miserável do que eu,” disse Tige. “Mas você deve ser, se nunca comeu um osso.”
O osso tinha um gosto muito melhor do que Fay esperava, e logo ele estava mastigando feliz, assim como Tige.
“Esse é o seu cachorro?” perguntou uma voz.
Fay largou seu osso e olhou ao redor, e lá estavam a empregada, o guarda do parque e outro policial.
A empregada olhou para Fay e então disse: “Fay, é você, seu cachorrinho malvado?”
Fay correu na direção do buraco na cerca, mas desta vez o guarda do parque foi rápido demais para ele.
“Claro que esse é o seu cachorro, Maggie,” disse ele. “Mas ele parece um brigão; não muito como aquele tufo branco e fofinho com um laço rosa que você passeia de manhã pelo parque.”
“Ah, o que a patroa vai fazer?” disse Maggie ao vê-lo. “E ainda por cima perdeu a linda coleira de prata.”
“Ah, eu sei onde ela está,” disse o outro policial. “Um amigo meu a encontrou, mas esse cachorro não é nenhum bichinho de estimação; ele é um brigão. Você devia ter visto ele enfrentar um cachorro grande que tinha todos aqueles ossos.”
“Ah, o que a patroa vai dizer ao saber que o cachorrinho dela esteve brigando?” choramingou Maggie. “Venha aqui, seu malvado Fay, e volte para casa comigo agora mesmo, e vou te dar um banho daqueles.”
Fay se contorceu e tentou escapar, mas uma corda foi amarrada em seu pescoço, e ele estava sendo levado embora quando pensou em Tige. Ele mal teve coragem de olhar para se despedir, temendo que isso o fizesse hesitar.
Tige, no entanto, estava apenas esperando por esse olhar, e assim que Fay se virou, Tige correu até ele e lambeu seu nariz.
“Saia daqui, seu cachorro sujo!” disse Maggie.
O policial riu. “Seu lindo poodle branco não está com uma aparência muito limpa,” ele disse.
Mas não adiantava. Fay não iria pacificamente sem Tige, e Tige também não queria ser afastado, então lá se foi Maggie, conduzindo Fay, enquanto Tige trotava ao lado dele.
Seria muito longa a história para contar tudo, mas vou resumir: Tige ficou rondando a casa de Fay depois que ele foi puxado para dentro pelo mordomo, e Fay ficou na janela uivando para Tige até que a dona de Fay acabou cedendo e deixou que Tige fosse trazido para dentro.
Deram um banho em Tige, colocaram uma coleira em seu pescoço, e Fay e Tige ficaram sentados na janela em dias chuvosos, quando a empregada não podia levá-los ao parque, olhando para o quintal em busca de gatos na cerca. Mas como os gatos não gostam muito de tempo chuvoso, Tige teve que contar a Fay tudo o que sabia sobre eles.
“E pensar que eu nunca tive a chance de perseguir um,” disse Fay. “Talvez algum dia possamos fugir de novo, e então você pode me mostrar onde encontrar um.”
“Não,” disse Tige, balançando a cabeça. “Não vai ter esse ‘algum dia’, Bill, meu amigo. Não vou arriscar perder este lar agradável, e você e eu vamos trotar ao lado da Maggie todos os dias no parque. Eu sei o que significa não ter um lar, e você não sabe, então ouça minhas histórias de gatos e pense à vontade sobre persegui-los, mas deixe isso por aí.”
E Fay, sendo um cachorro sensato e muito apegado ao seu novo amigo, fez o que ele disse.
Preciso te contar mais uma coisa: embora, entre eles, fossem Bill e Tige, para todos os outros eles eram Fay e Caesar, então Tige finalmente recebeu o nome elegante que merecia.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.
Fontes> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças.
Disponível em Domínio Público.
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