Foi na imensa e fértil região das águas de montanhas e areias, que vem do Espírito Santo até o Rio de Janeiro, que apareceu Sumé, o venerando velho, pai da agricultura, cuja memória foi tão criminosamente perdida pela ingratidão dos homens.
Nessa larga faixa de terra, cujos cabos e promontórios rochosos invadem o mar, quase tocando ilhas fecundas, que verdejam ao sol, entre bancos de areia, — vivia um povo forte e valente, respeitado na paz e temido na guerra. Eram os Tamoios, cujas canoas guerreiras dominavam a costa, desde o cabo de S. Tomé até Angra dos Reis, guardando as aldeias, formadas de cabanas sólidas, cercadas de altas paliçadas inexpugnáveis. Quando as tribos vizinhas ousavam invadir a seu território, — o canto do pajé concitava (instigava) os filhos da grande nação. E, ao som dos chocalhos de pedras, das buzinas de madeira, dos tambores e das flautas de taquara, — os grandes exércitos tamoios abalavam em hostes cerradas, para repelir o invasor. E a nação não descansava, enquanto os inimigos não fugiam ao valoroso embate das suas armas de gloriosas, — maças pesadas feitas de lenho de palmeira, formidáveis machados chatos de madeira vermelha, flechas agudas, arcos da altura de um homem.
Mais de uma vez, assim, os Goitacazes e Goianazes tiveram de ver castigada a sua ousadia. Quando a guerra findava, toda a tribo comemorava com grande festa a vitória de seus filhos. E a música e a dança celebravam, em torno dos prisioneiros que tinham de ser comidos vivos, a derrota dos inimigos. Depois vinha de novo a livre e arriscada existência da paz, — a pesca, nas canoas ligeiras que voavam como as aves do mar à flor das águas, e a caça dentro dos matos bravos, povoados de feras.
Ora, um dia, em que uma grande multidão da tribo, à beira-mar, estava reunida, celebrando uma vitória, — viram todos que sobre o largo oceano, vinha, do lado em que o sol aponta, uma grande figura, que mais parecia de deus que de homem.
Era um grande velho, branco como a luz do dia, trazendo, espalhada no peito, como uma toalha de neve, até os pés, uma longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar. E houve um grande espanto entre os Tamoios, vendo assim um homem, como eles, caminhar sem receio sobre as ondas como sobre terra firme.
Era Sumé, enviado de Tupã, senhor do Céu e da Terra. E Sumé operava prodígios nunca vistos. Diante dele, os matos mais cerrados se abriam por si mesmos, para lhe dar passagem: a um aceno seu, acalmavam-se os ventos mais desencadeados: quando o mar furioso rugia, um simples gesto de sua mão lhe impunha obediência. A sua presença fazia abaterem as tempestades, cessarem as chuvas, abrandarem as secas. E até as feras quando o viam, vinham submissamente lamber-lhe os pés, arrastando-se, de rojo, na areia. E os Tamoios, cativos de sua bondade, conquistados pelo assombro dos seus milagres, tomaram Sumé para seu conselheiro. E todas as tardes, os chefes adiantavam-se para ele, — enquanto em roda, mulheres, homens e crianças paravam a escutar, — vinham contar-lhe a história de seu povo, e interrogá-lo sobre as suas crenças, e pedir-lhe conselhos e lições.
E diziam-lhe a sua religião: “Tupã, para fazer o céu e a terra, criou as mães para tudo. O sol é a mãe do dia e da noite. A lua é a mãe das plantas e dos animais. Os homens nasceram, e foram maus. Tupã, para castigar a sua maldade, mandou que as águas crescessem desmedidamente e cobrisse tudo. Então, viram-se os peixes nadando entre as folhagens das árvores, e os tigres afogados boiando sobre a vastidão das ondas crescidas. E os homens fugiam de monte em monte. E o céu se abria em relâmpagos e em quedas assombrosas de água. Mas um varão forte, que Tupã amava, — um varão de alma grande, que tinha o nome de Tamandaré, salvou a raça guardando dentro de uma canoa os seus filhos, e livrando-os do naufrágio espantoso. E de Tamandaré saímos nós, guerreiros que não tememos o trovejar das armas dos inimigos, quando o furor os assanha no campo de guerra, — mas que nos rojamos por terra, lembrando a antiga punição, quando ouvimos trovejar o céu, carregada de ameaças de maldição, a grande voz sagrada de Tupã, senhor e criador de todas as coisas e de todos os seres...”
Sumé amou aquela nação simples e sóbria, sem vícios e sem pecados. Louvou-lhe a bravura na guerra e a modéstia na paz. E quis torná-la feliz, ensinando-lhe o meio de viver na abundância. E ordenou que todos os homens válidos, depois de haverem abundantemente provido de caça e de pesca as cabanas, em que as mulheres e as crianças ficariam, seguissem com ele, para obrigar a terra a dar-lhes o sustento diário.
Disse-lhes Sumé: “A grande mãe é a terra: a grande mãe generosa; basta acariciá-la, basta amá-la e afagá-la, para que ela se abra logo prodigamente em toda a sorte de bens e de venturas.”
Mas um pajé, velho sábio, conhecedor das coisas que o comum dos mortais ignora, observou: “Como pois, grande Santo, até hoje só tem ela tido para nós espinhos e répteis?” E Sumé respondeu: “Porque até hoje não a amastes com fervor e trabalho. Cavai-a e suai sobre ele: se rasgará agradecida, não para vos engolir, mas para vos dar vidas novas. Vinde comigo e vereis!”
Seguiram-no eles. E a terra, por toda a parte, era nua e ingrata. Matagais crespos e impenetráveis subiam do seu seio. E, dentro deles, as cobras silvavam, as onças uivavam: e toda aquela natureza primitiva era inimiga do homem, inimiga sem piedade, que afiava contra ele os dentes de suas feras e as pontas agudas dos seus espinheiros. Mandou Sumé que desbastassem a terra, e tivessem, para destruir os matos fechados, a mesma bravura e o mesmo vigor que tinham para destruir as hostes dos inimigos.
Ordenou-lhe depois que amanhassem o solo, e, dando-lhes sementes várias, disse-lhes que as lançassem sem conta sobre o seio da grande mãe assim preparado.
Deste modo correu Sumé todo o litoral. E atrás dele todos os homens válidos da tribo seguiam. Os dias passavam. Passavam os meses. Passavam os anos. E de sol a sol, a febre do mesmo trabalho sacudia aquela multidão, que a virtude e a bondade de um só homem arrastavam seduzida e cativa.
Quando Sumé chegou à grande Angra, que fechava ao sul o domínio dos Tamoios, parou. E disse, reunindo os trabalhadores:
— É tempo de retroceder... Ides ver como a terra vos paga em abundância e ventura as bagas de suor que gastastes em seu favor!
Retrocederam. E, então, começou o deslumbramento da tribo. À medida que se aproximavam do ponto de partida, viam a terra mudada, de mais em mais, abrindo-se em folhagens que não conheciam, em frutos que nunca tinham visto. E, quando chegaram ao grande acampamento, as mulheres e as crianças dançavam e cantavam. Os celeiros da tribo regurgitavam. O céu parecia mais belo; mais belo parecia o mar; mais bela a natureza toda; porque a tribo toda via agora a natureza através dessa alegria que é a filha da felicidade. Das sementes que o Santo Sumé fornecera, tinham nascido, em touceiras imensas, s bananeiras fartas; tinham nascido os carás e as mandiocas; tinham nascido os milhos de espigas de ouro; tinham nascidos os algodoeiros, os feijões e as favas...
Sumé não achou bastante o que já tinha feito: e ensinou-lhes a arte de fabricar a farinha, moendo a mandioca: e revelou-lhes os segredos da navegação, aperfeiçoando as suas igaras rústicas, dando-lhes velas, que, como asas de pássaros, ajudassem a voar com o vento, e lemos que, como caudas de peixes, as ajudassem a cortar ondas. E toda a tribo abençoou Sumé.
E em honra sua, todas as tardes, quando o pôr-do-sol ensanguentava as águas, a tribo dançava, ao bater compassado dos tambores, em torno do grande velho, — filho querido de Tupã, pai da Agricultura, Gênio protetor dos Tamoios.
Mas os anos passaram. E, com o passar dos anos, passou a gratidão da tribo.
Os pajés, ciumentos do poder do Santo, envenenaram a alma da nação: “Como? Pois ela, tão forte, que, em todo arredor, só seu grito de guerra bastava para amedrontar todas as outras nações, ficaria sempre sob o domínio de um só homem, um estrangeiro, um homem de pele branca?”
E o rumor da maledicência crescia em torno do Santo. E, em torno dele, a rede da intriga se apertava.
E ele ouvia, e sorria. E a sua grande alma, toda sabedoria e bondade, compreendia e perdoava a ingratidão das gentes.
Uma madrugada, quando o Santo saía da sua cabana, viu formados todos os Tamoios, que vociferavam, ameaçando-o. E todos eles estavam armados. E as fisionomias de todos eles transpiravam ódio e rancor.
O Santo Sumé quis falar. Não pôde. Uma flecha certeira, partida das fileiras dos ingratos, veio cravar-se no seu peito. O Santo sorriu. E, arrancando o dardo das carnes, atirou-o ao chão, e foi andando, de costas, para o lado do mar. Então, o ataque recrudesceu. As setas voavam, às centenas, aos milhares, todas atingindo o alvo. Sumé, com o mesmo sorriso nos lábios, ia sempre caminhando de costas para o lado do mar, e, de uma em uma, ia arrancando do corpo as setas que não o magoavam.
Quando chegou à praia, entrou pela água, cresceu sobre ela, sobre ela se equilibrou, e, sempre de costas, foi fugindo, — e sorrindo, sem amaldiçoar os ingratos a quem dera fartura.
E toda a tribo, paralisada de assombro, via, oscilando de leve sobre as ondas que o nascer do sol ensanguentava, ir diminuindo, diminuindo, até sumir-se de todo na extrema do horizonte, aquela doce figura, de pele branca com o a luz do dia, trazendo espalhada sobre o peito, até os pés, como uma toalha de neve, a longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar…
Fonte: Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios. 1906.
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