O SILVA GANHOU um fogão praticamente novo da Comunidade religiosa onde frequentava. De posse dele, os irmãos da confraria o ajudaram a colocar o presente em suas costas. Colado nele, com muito custo, o rapaz saiu com a carga seguindo seu destino. Os primeiros passos num andar meio devagar, quase parando. Apesar do desconforto, seguiu capengando, tentando se equilibrar daqui e dali se ajeitando meio que aos trancos e barrancos. Vez em quando, dava umas paradinhas básicas para descansar. E foi ganhando terreno. Nesse para aqui e para acolá, andou mais ou menos um quilômetro e meio.
Para despistar as pessoas que certamente o veriam como um suposto ladrão, o infeliz entrou numa rua, se embrenhou por um beco, saiu numa travessa sem muito movimento. Tudo assim, contando com a sorte, na cara dura, como se carregar no lombo um fogão pelas ruas do bairro às sete horas da noite fosse a coisa mais natural do mundo. Logo à frente, ao galgar uma avenida intermediária mais movimentada que as demais, uma viatura da militar o interceptou. Quatro policias saíram às carreiras, empunhando suas armas e gritando de modo exasperado:
— Deita no chão, mãos na cabeça...
O coitado do Silva, assustado e sem saída, combaliu das pernas afrouxando o suor e o medo escorregou até a base dos sapatos:
— Como?
— Deita, deita, deita... não discute, deita...
Apavorado e tremelicando pior que caniço em ventania, ao tentar colocar o eletrodoméstico na calçada, se desequilibrou. O aparelho, foi com tudo fazendo um estardalhaço dos diabos, se espatifando no meio fio rente à rua. A tampa de vidro se partiu, os queimadores saíram rolando, o mesmo acontecendo com outras peças internas.
— Meu Deus, — gritou — e agora?
O policial se aproximou, arma em punho:
— Ta indo pra onde?
— Pra casa, senhor...
— Mora em que lugar?
— Na rua do Caco...
— Que caco?
— Ali no morro Cara do Cavalo Bombadão.
— E essa Brastemp?
— Qué isso, senhor?
— A marca do fogão, sua besta.
— Ah, eu ganhei...
— Cadê a prova?
— Que prova?
— A prova de que realmente não roubou de alguma loja... ou da invasão de alguma residência aqui pelas redondezas...
— Nessa altura, que fogão? Não tô vendo nenhum...
O policial inopinadamente lhe aplicou uma série de tapas no rosto:
— Imbecil, tá me tirando? Faço referência a esse fogão que você está levando e jogou no chão. Cadê a nota?
— Não tem nota, seu guarda. Tem um papel que prova que eu ganhei... e quando eu disse que “não tô vendo nenhum fogão é porque... olha o que sobrou dele...”.
— Mostra. Devagar, sem movimentos bruscos e suspeitos. Está armado?
— Sim.
— Cadê a peça?
— Não tem nenhuma peça, senhor...
— Idiota, você disse que está armado. Cadê o berro, o trabuco, a arma, o cano?
— Senhor, eu estou armado de boa vontade...
Outros tapas zuniram em pleno ar. O Silva foi ao chão:
— Engraçadinho. Não tem arma?
— Não senhor...
— Vamos, estou perdendo a paciência. Cadê a nota?
— Que nota, seu policial?
— A desse fogão, ladrãozinho barato. De onde você o roubou?
— Eu ganhei, seu policial. E fui buscar lá na comunidade...
— Que comunidade?
— Da igreja “Pé no Saco da Fome” que eu frequento...
— OK. Vamos supor que esteja falando a verdade. Tem alguma prova?
— Sim.
— Onde está?
— No meu bolso...
— Mostra... devagar...
A muito custo, o Silva se colocou em pé. Tirou um papel amassado do bolso. Exibiu aos representantes da ordem:
— Aqui...
O policial passou a mão na tal nota e leu:
— Você está vindo desse endereço?
— Sim, senhor...
Colocaram o desgraçado na viatura, algemado. Solicitaram pelo rádio uma camionete. Coisa de vinte minutos pintou uma segunda viatura também da polícia, ou mais precisamente uma Montana 2010, 1.4 com carroceria e dois agentes. Nela colocaram os restos mortais do fogão. Seguiram para o endereço. Ao chegarem, os policiais viram um ajuntamento de pessoas que entravam e saiam. Mandaram chamar o responsável pelas doações. Uma leva de criaturas simples, saia com sacolas de roupas, sapatos, outras com aparelhos eletrodomésticos, cestas básicas e uma série de itens os mais variados.
— Quem é o responsável?
Uma senhora que estava no portão, respondeu:
— O Pastor Tobias Baygon...
Nem foi preciso anunciar. Com a chegada dos dois carros e a retirada do Silva de um deles algemado e do outro o fogão, o pastor se apresentou correndo:
— Pois não, cavalheiros?
— O senhor conhece esse rapaz?
— Sim, é o nosso irmão Silva. Ele é membro da nossa comunidade. Qual o problema?
Começou a juntar gente:
— O senhor deu a ele aquele fogão que acabamos de descer daquela viatura?
— Sim, seu tenente. Fizemos uma doação. Ele congrega aqui na comunidade, é pobre e resolvemos lhe agraciar com esse fogão. Como ele tinha urgência de chegar em casa e a esposa o esperava para preparar a comida dos filhos menores, o irmão Silva resolveu levar o aparelho nas costas. Só poderíamos fazer a entrega na segunda. E como hoje é sábado... mas o que houve, afinal?
— Ele nos pareceu suspeito, senhor. Ninguém sai com um fogão novo às costas em pleno sábado e ainda mais nesse horário...
O pastor Tobias Baygon não levava desaforos sem dar o troco. E pior, não se calava diante de certas barbaridades. Ao verificar o estado lastimoso do fogão, explicou:
— Senhores, eu dei a ele esse fogão. Ou melhor, a nossa “Comunidade” fez isso de bom grado. E pelo visto, creia no que vou lhe dizer, tenente, esse fogão não é o mesmo novinho que saiu daqui...
— Ele tropeçou e o fogão foi ao chão, pastor...
— Tenente, com todo respeito. Se ele tropeçou vocês devem tê-lo assustado... ou, quem sabe...
— Senhor, o fogão...
O pastor Tobias Baygon interrompeu o que o policial pretendia dizer:
— Por gentileza, tenente, me aguarde um instante. Tenho aqui um pessoal da imprensa que veio filmar o nosso evento. Vou chamá-los para que registrem o ocorrido. E mais um detalhe, meu caro. Com todo respeito, me perdoa, temos por sorte, hoje, aqui na nossa comunidade, dois advogados. Me dê uns minutos. Vou pedir a eles que venham até aqui e o senhor, por gentileza, se entenda com esses profissionais e explica com mais detalhes a história do fogão...
O que aconteceu, a seguir foi um milagre. Os seis policias se entreolharam. Em seguida sem que fosse dito uma palavra, todos os fardados coçaram os bolsos. Na volta do pastor com a imprensa e os advogados, o tenente se antecipou e fez a entrega ao pastor de uma quantidade significativa em dinheiro que daria para ser comprado três ou quatro fogões:
— Pastor, – disse o tenente, se desculpando em nome dos colegas. – aqui está a nossa oferta. Providencie, por gentileza, um fogão novo para o nosso amigo. Como pode ver, estou, em nome dos seis colegas do destacamento militar deixando um valor a mais para a compra de um outro igual ou melhor. E se o senhor nos permitir, marque o dia e a hora que voltaremos aqui e faremos questão de disponibilizar aquela viatura ali com carroceria para que o presente seja, enfim, entregue na residência do seu Silva. Desculpe o transtorno. Boa noite.
Os seis policias, saíram cabisbaixos, calados. E o melhor de tudo: com os rabinhos entre as pernas.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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