sábado, 18 de outubro de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (O milagre do fogão)

O SILVA GANHOU um fogão praticamente novo da Comunidade religiosa onde frequentava. De posse dele, os irmãos da confraria o ajudaram a colocar o presente em suas costas. Colado nele, com muito custo, o rapaz saiu com a carga seguindo seu destino. Os primeiros passos num andar meio devagar, quase parando. Apesar do desconforto, seguiu capengando, tentando se equilibrar daqui e dali se ajeitando meio que aos trancos e barrancos. Vez em quando, dava umas paradinhas básicas para descansar. E foi ganhando terreno. Nesse para aqui e para acolá, andou mais ou menos um quilômetro e meio. 

Para despistar as pessoas que certamente o veriam como um suposto ladrão, o infeliz entrou numa rua, se embrenhou por um beco, saiu numa travessa sem muito movimento. Tudo assim, contando com a sorte, na cara dura, como se carregar no lombo um fogão pelas ruas do bairro às sete horas da noite fosse a coisa mais natural do mundo. Logo à frente, ao galgar uma avenida intermediária mais movimentada que as demais, uma viatura da militar o interceptou. Quatro policias saíram às carreiras, empunhando suas armas e gritando de modo exasperado:

— Deita no chão, mãos na cabeça...

O coitado do Silva, assustado e sem saída, combaliu das pernas afrouxando o suor e o medo escorregou até a base dos sapatos:

— Como?

— Deita, deita, deita... não discute, deita...

Apavorado e tremelicando pior que caniço em ventania, ao tentar colocar o eletrodoméstico na calçada, se desequilibrou. O aparelho, foi com tudo fazendo um estardalhaço dos diabos, se espatifando no meio fio rente à rua.  A tampa de vidro se partiu, os queimadores saíram rolando, o mesmo acontecendo com outras peças internas.  

— Meu Deus, — gritou — e agora?

O policial se aproximou, arma em punho:

— Ta indo pra onde?

— Pra casa, senhor...

— Mora em que lugar?

— Na rua do Caco...

— Que caco?

— Ali no morro Cara do Cavalo Bombadão.

— E essa Brastemp?

— Qué isso, senhor?

— A marca do fogão, sua besta.

— Ah, eu ganhei...

— Cadê a prova?

— Que prova?

— A prova de que realmente não roubou de alguma loja... ou da invasão de alguma residência aqui pelas redondezas... 

— Nessa altura, que fogão?  Não tô vendo nenhum...

O policial inopinadamente lhe aplicou uma série de tapas no rosto: 

— Imbecil, tá me tirando?  Faço referência a esse fogão que você está levando e jogou no chão.  Cadê a nota?

— Não tem nota, seu guarda. Tem um papel que prova que eu ganhei... e quando eu disse que “não tô vendo nenhum fogão é porque... olha o que sobrou dele...”. 

— Mostra. Devagar, sem movimentos bruscos e suspeitos. Está armado?

— Sim. 

— Cadê a peça?

— Não tem nenhuma peça, senhor...

— Idiota, você disse que está armado. Cadê o berro, o trabuco, a arma, o cano?  

— Senhor, eu estou armado de boa vontade... 

Outros tapas zuniram em pleno ar.  O Silva foi ao chão: 

— Engraçadinho. Não tem arma?

— Não senhor... 

— Vamos, estou perdendo a paciência. Cadê a nota?

— Que nota, seu policial?

— A desse fogão, ladrãozinho barato. De onde você o roubou?

— Eu ganhei, seu policial. E fui buscar lá na comunidade...

— Que comunidade?

— Da igreja “Pé no Saco da Fome” que eu frequento...

— OK. Vamos supor que esteja falando a verdade. Tem alguma prova?

— Sim.

— Onde está?

— No meu bolso...

— Mostra... devagar...

A muito custo, o Silva se colocou em pé. Tirou um papel amassado do bolso. Exibiu aos representantes da ordem:

— Aqui... 

O policial passou a mão na tal nota e leu:

— Você está vindo desse endereço?

— Sim, senhor...

Colocaram o desgraçado na viatura, algemado. Solicitaram pelo rádio uma camionete. Coisa de vinte minutos pintou uma segunda viatura também da polícia, ou mais precisamente uma Montana 2010, 1.4 com carroceria e dois agentes. Nela colocaram os restos mortais do fogão. Seguiram para o endereço. Ao chegarem, os policiais viram um ajuntamento de pessoas que entravam e saiam. Mandaram chamar o responsável pelas doações. Uma leva de criaturas simples, saia com sacolas de roupas, sapatos, outras com aparelhos eletrodomésticos, cestas básicas e uma série de itens os mais variados.

— Quem é o responsável?

Uma senhora que estava no portão, respondeu:

— O Pastor Tobias Baygon...

Nem foi preciso anunciar. Com a chegada dos dois carros e a retirada do Silva de um deles algemado e do outro o fogão, o pastor se apresentou correndo:

— Pois não, cavalheiros?

— O senhor conhece esse rapaz?

— Sim, é o nosso irmão Silva. Ele é membro da nossa comunidade. Qual o problema?

Começou a juntar gente:

— O senhor deu a ele aquele fogão que acabamos de descer daquela viatura?

— Sim, seu tenente. Fizemos uma doação. Ele congrega aqui na comunidade, é pobre e resolvemos lhe agraciar com esse fogão. Como ele tinha urgência de chegar em casa e a esposa o esperava para preparar a comida dos filhos menores, o irmão Silva resolveu levar o aparelho nas costas. Só poderíamos fazer a entrega na segunda. E como hoje é sábado... mas o que houve, afinal?

— Ele nos pareceu suspeito, senhor. Ninguém sai com um fogão novo às costas em pleno sábado e ainda mais nesse horário...

O pastor Tobias Baygon não levava desaforos sem dar o troco. E pior, não se calava diante de certas barbaridades. Ao verificar o estado lastimoso do fogão, explicou:

— Senhores, eu dei a ele esse fogão. Ou melhor, a nossa “Comunidade” fez isso de bom grado. E pelo visto, creia no que vou lhe dizer, tenente, esse fogão não é o mesmo novinho que saiu daqui... 

— Ele tropeçou e o fogão foi ao chão, pastor...

— Tenente, com todo respeito. Se ele tropeçou vocês devem tê-lo assustado... ou, quem sabe...

— Senhor, o fogão...

O pastor Tobias Baygon interrompeu o que o policial pretendia dizer:

— Por gentileza, tenente, me aguarde um instante. Tenho aqui um pessoal da imprensa que veio filmar o nosso evento. Vou chamá-los para que registrem o ocorrido. E mais um detalhe, meu caro. Com todo respeito, me perdoa, temos por sorte, hoje, aqui na nossa comunidade, dois advogados. Me dê uns minutos. Vou pedir a eles que venham até aqui e o senhor, por gentileza, se entenda com esses profissionais e explica com mais detalhes a história do fogão...

O que aconteceu, a seguir foi um milagre. Os seis policias se entreolharam. Em seguida sem que fosse dito uma palavra, todos os fardados coçaram os bolsos. Na volta do pastor com a imprensa e os advogados, o tenente se antecipou e fez a entrega ao pastor de uma quantidade significativa em dinheiro que daria para ser comprado três ou quatro fogões:

— Pastor, – disse o tenente, se desculpando em nome dos colegas. – aqui está a nossa oferta. Providencie, por gentileza, um fogão novo para o nosso amigo. Como pode ver, estou, em nome dos seis colegas do destacamento militar deixando um valor a mais para a compra de um outro igual ou melhor. E se o senhor nos permitir, marque o dia e a hora que voltaremos aqui e faremos questão de disponibilizar aquela viatura ali com carroceria para que o presente seja, enfim, entregue na residência do seu Silva. Desculpe o transtorno. Boa noite. 

Os seis policias, saíram cabisbaixos, calados. E o melhor de tudo: com os rabinhos entre as pernas.
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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