quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Sebastião de Magalhães Lima (Estrelas e nuvens)


Vou contar um romancezinho de amores — amores singelos, amores de aldeia.

É tão simples a nossa história, como a verdade que encerra, tão natural, como um sorriso de uma criança gentil, tão cândida, como a pombinha do deserto.

Ouvi-a, por uma noite de julho, sentado à margem de saudoso regato.

Foi uma hora solene: um momento augusto e santo!

A brisa que envolvia com o perfume da noite, foi segredá-la às florzinhas do vergel, e estas enviaram-na ao céu.

Na terra repercutiu-se o coro dos anjos, lamentando a desditosa sorte de seus adorados irmãos.

Por um momento, eclipsou-se o brilho das estrelas; deixou de refletir-se a lua no seu espelho de prata.

As avezinhas não tiveram gorjeios, cessou a viração no seu curso veloz.

Silêncio sepulcral! Sublime idílio! Majestoso quadro!

Falta-nos o pincel de Corregio; não possuímos os tesouros de Petrarca, nem tampouco a eloquência de Demóstenes.

E é pena, na verdade!...

Cada apóstolo tem a sua missão a cumprir sobre a terra.

Sublimar a desventura, prantear a miséria do mundo — nada mais grandioso, e tão sinceramente edificante!

É uma evangelização despretensiosa e nobre.

Choremos, corações ternos; choremos e choremos muito; não tenhamos pejo de assim fazer.

Levantemos os olhos ao céu e, com a fronte descoberta, ouçamos a fúnebre narrativa de dois mancebos desventurados!...

Quem não conheceu Maria, a flor das lavadeiras?

Quem não repararia naquele formoso querubim que, ao sol posto, ia todo engrinaldado de rosas e lírios, encher o seu cântarozinho de barro à fonte da terra?...

Oh!... Decerto ninguém poderia esquecer tão prontamente a linda morena, o anjo bendito?!...

Não sabe, leitor amigo, não se lembra já daquela casinha térrea, silenciosamente circundada de festões e madressilvas, que existe em Sintra, lá para as bandas do Castelo?...

Pois olhe, aí mesmo nasceu aquela rolinha, lá, coitadinha! Desferiu aos ecos a inocente lenda de seus amores e, por fim, lá agonizou também, sem que ninguém desse por ela, nem tão pouco imaginasse socorrê-la.

Pobre desgraçada!...

E eu não saber mais cedo a sua história!...

O prazer, como tudo o que é efêmero, tem seus encantos, as lágrimas também os têm.

Maria, muito prazenteira e jovial, vira um dia Gregório, que a esperava, junto da fonte, sempre à mesma hora, de súbito, anuviou-se aquele rosto, profundamente celestial e gentil, contraíram-se-lhe os músculos da face.

O amor havia penetrado em sua alma!

Desde esse momento nunca mais se tornou a divisar um raio de esperança e consolação naquele horizonte, outrora tão límpido e sereno.

E Gregório, o pobre lavrador, lá se foi triste e pensativo, a caminho da aldeia, sem outra ideia que não fosse Maria, sem outro cismar que não fosse a felicidade.

E tinha razão!...

Era jovem! Tinha aspirações!...

Assim decorreram dois anos — dois anos, cheios de muita esperança, e entrecortados por aflitivos suspiros!...

Gregório era tão ambicioso!...

O amor é muitas vezes caprichoso e louco!...

E quem o havia de imaginar?!...

Gregório queria ser rico, queria ver a sua amada reclinada num trono de esmeraldas!...

Entre as flores queria vê-la rainha! Entre os anjos, serafim! Entre as mulheres, majestade!

E com esta ideia, e com o demônio da ambição, lá se foi ele a terras longínquas, á cata de grandes haveres!

E a pobre Maria ficou só, sozinha, com as suas lágrimas!...

Ao menos... tinha esperança!...

Ai! Como é triste e pavorosa a ausência daqueles que amamos!...

Pobre Maria!...

Que saudades se lhe não avivaram na mente enlouquecida!...

Gregório tinha partido, havia dez anos, sem dar notícias!...

Teria naufragado o triste Gregório?...

Porem não, não era possível!

Maria queria torná-lo a ver junto de si.

Uma Virgem não abandona a súplica de outra virgem!

Mas, apesar de tudo isso, a rosa ia murchando a olhos vistos.

De dia para dia se desfolhava uma pétala, secava uma folha, até que, por fim, caiu de todo a haste, vergada apenas pela branda viração do crepúsculo!

O resto... levou-o o vento!...

Eram passados três mesas.

Quem observasse atentamente aquela pousada, onde estivera aninhada, por tantos anos, a terna andorinha, deveria reconhecê-la desguarnecida e quase em ruínas.

Um vulto, trajado de preto, percorria aqueles restos sem cessar.

Era Gregório, o pobre lavrador, que havia voltado rico, com o único fim de tornar Maria venturosa sobre a terra.

Chegara, porem, tarde o maná do Senhor!...

Um mês, mais tarde, ao lado do túmulo de Maria existia outro, igualmente modesto e lúgubre.

Gregório, tomado de incurável loucura, depois de haver arrojado toda a sua fortuna a um abismo, por ele cavado, para que ninguém mais a pudesse descobrir e gozar, foi por si mesmo procurar naquele precipício uma morte desastrosa e terrível!

O mais... só Deus o sabe!…
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Sebastião de Magalhães Lima nasceu em Santos/SP em 1850 e faleceu em Lisboa/Portugal em 1928. Foi advogado, jornalista, político, escritor, fundador da Liga Portuguesa dos Direitos do Homem e dos jornais "O Século" e "Comércio de Portugal". Republicano, maçon e pioneiro do socialismo português, fez parte da Geração de 70 e dirigiu os periódicos republicanos "A Folha do Povo" e "A Vanguarda". Em 1909 foi indicado para o Prémio Nobel da Paz e em 1919 foi Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Foi grão-mestre do Grande Oriente Lusitano Unido, com o mais longo mandato na história maçónica portuguesa, de 1907 até 1928. Magalhães Lima estreou-se como escritor publicando, durante os seus anos iniciais de estudo em Coimbra, um conjunto de obras de pendor romântico, com títulos como Miniaturas românticas, Martírio de um anjo, Amour et Champagne ou Um drama íntimo. Tais obras, inseridas na corrente tardia do romantismo português, não faziam adivinhar o apologista do republicanismo revolucionário em que o seu jovem autor se transformaria.

Fontes:
Sebastião de Magalhães Lima. Miniaturas românticas. Publicado originalmente em 1871. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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