A poesia brasileira “erudita” também acolheu São Francisco. Se começarmos pelo Barroco, quando a literatura brasileira passa a existir como tal, vemos que, por exemplo, Botelho de
Oliveira a ele dedicou um soneto, seu livro Lira sacra . Um soneto blasfemo, como gostavam os barrocos, já que Botelho vê, no sofrimento do santo, sofrimento maior que o do próprio Cristo:
A São Francisco
Soneto XV
Excelso patriarca que ordenastes
Melhor arca no mundo em graças certas
Se esta foi ordenada em três cobertas
A vossa com três ordens fabricastes.
Como a paixão de Cristo tanto amastes
Vos deu no corpo as chagas descobertas
E estando vivas nele, estando abertas,
No mesmo Cristo em Cruz vos transformastes.
Tivestes melhor Cruz que Cristo amado
Nesta impressão das chagas, porque nisto
A Cristo pareceis avantajado.
Visto pois o favor, o empenho visto,
Cristo em um lenho foi crucificado,
Francisco foi crucificado em Cristo.
De Humberto de Campos, poeta parnasiano hoje totalmente esquecido, selecionamos a passagem em que São Francisco fala às aves, excerto do longo poema sobre o qual falamos acima. Neste trecho, São Francisco “passa um sermão” nas aves, que, parece, não dão valor à felicidade que têm, principalmente quando se assiste a tanto sofrimento humano:
O apóstolo das aves
No cimo do Subásio, ante a áspera caverna,
Em lugar que somente o sol visita e banha,
São Francisco de Assis sonha a vida ampla e eterna
Falando ao céu azul e às cousas da montanha.
Ante a morte do Sol fecha as asas o Dia.
O Vale, em derredor, é um turíbulo que arde;
Sobem, leves, da terra, entre a diurna agonia,
A alva bruma da fonte e os suspiros da Tarde.
São Francisco, entretanto, a loura barba ao vento,
Olhar vago, a beber o fogo o horizonte,
Mandando a asas e céus a voz e o pensamento,
Continua a pregar aos pássaros do monte.
Para ouvi-lo falar, tudo em roda se aquieta;
O vento, ainda a fugir, atenta o ouvido, e escuta.
A ave pára; a flor cisma; e aos seus surtos de poeta,
Trepida o coração da própria pedra bruta.
E ele fala, a voz doce: “Asas, irmãs desta alma,
Aves que me escutais neste alto de montanha,
Sede boas, cantai e amai, na vida calma
A árvore que vos dá fruto e a áurea luz que vos banha.
Sede humildes, e amai; a árvore anosa e o ramo
Do arbusto fraco, amai; amai a terra, cheia
De doçura e de paz; e amai, como eu vos amo,
A água que Deus dá à fonte e o grão que Deus semeia.
E amai-vos. A ninguém, Deus, o senhor do Espaço,
O criador do que hoje há nas águas e arvoredos,
Como a vós, dando a fronde, ergue um lar com o seu braço
E o alimento vem dar nas pontas dos seus dedos.
Olhai o homem rebelde, olhai o tigre, a fera
Sanguinária; acordai na alta noite tristonha,
E escutai o subir da queixa humana e austera,
As palavras de Dor do homem que vela ou sonha.
Escutai: tremereis ante o clamor que expande
A angústia humana; e haveis de abençoar a humildade,
Vendo, enfim, como é bela, alta, límpida, grande,
Junto à mágoa dos mais, vossa felicidade.
Por que os homens não são como vós sois? A gruta
Não seria, talvez, lar mais doce e risonho
Que o castelo e o palácio, onde morrem na luta
Que destrói todo Amor, que extingue todo sonho?
A mão sábia que abriu este velário pela
Altura, e a árvore pôs sobre o solo atro e bruto,
Se a terra tinha luz, por que pôs no alto a estrela?
E se o sangue é melhor, por que a bênção do fruto?
Não sereis, porventura, aves do espaço, amando
E cantando pelo ar, mais que os homens, felizes?
Pois, se tínhamos nós de viver batalhando,
Por que o ramo dá sombra e o tronco tem raízes?
O homem morre faminto, e vós, no entanto, vede:
Cantando a Sua glória e exaltando o Seu nome,
Já vistes um pardal a queixar-se de sede
Ou um frágil rouxinol expirando de fome?
Doces aves do céu, amai, portanto, a Vida,
Louvai, portanto, a Deus, que vos dá, neste monte,
Grande e anônimo, a abrir a ampla mão comovida,
A luz do sol, o grão da terra, a água da fonte!...”
E, assim, transfigurado, a loura barba ao vento,
São Francisco, a surgir da luz que o envolve e o banha,
Mandando a asas e céus a voz e o pensamento,
Continua a pregar às cousas da Montanha...
O momento simbolista no Brasil, nos deu, por exemplo, dois poemas “franciscanos”. O primeiro deles, um soneto de Durval de Moraes, tematiza os estigmas no Monte Alverne:
São Francisco
Mãos e pés a sangrar; o flanco, aberto; o gosto
Do fel no coração, e na alma a solitude...
À bruta bofetada, impassível o rosto!
O espírito sereno, ante o insulto mais rude!
O escarro, a negação, o abandono, o desgosto:
Dá-me tudo, Senhor, para que se transmude,
Na minha alma de vil, a amarugem do mosto
Fervente do Pecado, em vinho da Virtude!...
São Francisco, chorando, em êxtase exclama.
Desce, para colher-lhe as pérolas do pranto,
Vibrante Serafim de seis asas de chama!
Jardineiro do Amor, que abre em flores as fragas,
Jesus vinha plantar pelo corpo do Santo
O celeste rosal das Suas Cinco Chagas!
O segundo, poema à la Rimbaud de Pethion de Vilar, intitulado “Poema das Vogais”, insere o sofrimento de São Francisco quando vai “colorir” a vogal U:
U – lúgubres clarões agônicos de enxofre;
Cor do Mistério; cor das paixões sem consolo;
Soluço há muito preso, estourando de chofre;
Último beijo, olhar vesgo e triste de goulo.
Olheiras de Saudade; olheiras de Ciúme;
Chagas místicas de S. Francisco de Assis;
Clangores d’órgão que poeta algum resume;
Desilusões de amor que nenhum verso diz.
continua...
Fonte:
Revista do Centro de Estudos Portugueses. v. 29, n. 42. Belo Horizonte/MG: UFMG, jul./dez. 2009.
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