quinta-feira, 1 de maio de 2025

Asas da Poesia * 15 *


 Soneto de 
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

E o carnaval começa

Rompem-se os diques da alma. Nas retinas,
confundem-se as visões do Bem e o Mal.
Momo sacode os guizos! Nas esquinas
e nos salões, estronda a bacanal!

No entanto, há mais Pierrôs e Colombinas,
Palhaços e Arlequins, na vida real,
que os que atiram confetes... serpentinas,
alegria a fingir no Carnaval!

Cinzas! Máscaras rolam! Mas... só a morte,
a derradeira máscara é quem tira.
Momo sorri - talvez da própria sorte!

E o amargor numa dúvida se expressa:
- O Carnaval findou?! - Cruel mentira!
– A vida marcha... E o Carnaval começa!...
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Soneto de 
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Se quiseres

Se quiseres palmilhar o meu caminho
abandona tuas asas e teu ninho
que impedem teu livre caminhar.

Se quiseres pernoitar na minha tenda
retira, antes de entrar, a venda
que não te deixa ver a estrela-guia.

Se quiseres repousar na minha cama
remove do teu corpo a lama
comprada no igapó das ilusões.

Se quiseres meu amor, rasga teu peito
e arranca dele o preconceito
que não te deixa ver-me como sou.

E se afinal quiseres decifrar meu canto,
destrói na sarça ardente o cetro e o manto
e só então verás a essência do meu ser.
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

O meu sertão IV

O meu sertão virou quase cidade:
as terras divididas em herança
vão partindo os talhões pela metade 
e aproximando, assim, a vizinhança.

Ganhou a noite tanta claridade
e incrivelmente chega a insegurança,
na gente que era só simplicidade
e sofre o destempero da mudança.

Os vagalumes, feito lamparinas,
faziam noites tão mais genuínas,
o céu mais parecia um véu de estrelas…

Mas já não vejo tantas qual outrora,
com tanta luz, eu acho, vão-se embora…
e eu olho o céu e não  consigo vê-las!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Coração de pedra dura,
da mais dura que houver;
eu jurei de te amar,
enquanto vida tiver.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Canção do boêmio

Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vós?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.
A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro, que filei na escola...

Tudo no quarto de Nini me fala
Embalde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me o relógio cinicando a um canto
"Onde está ela que não veio ainda?"
Diz-me a poltrona "por que tardas tanto?
Quero aquecer-te rapariga linda."

Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo Garcia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo— no teu seio quente...
Pego o compêndio... inspiração sublime
Pra adormecer... inquietações tamanhas...

Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...
Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa,

Dizei se há dor, que se compare à minha!...
Nini! o horror deste sofrer pungente
Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.
Deus do Boêmio!... São da mesma raça

As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro...
E tu fugiste, pressentindo o inverno.
Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno

Mesmo eu tomara a primavera a prêmio..
No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...
Se tu viesses... de meus lábios tristes

Rompera o canto... Que esperança inglória...
Ela esqueceu o que jurar lhe vistes
Ó Paulicéia, ó Ponte-grande' ó Glória!...
Batem!... que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!

Sejam teus braços... do martírio a cruz!…
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Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Desespero inevitável

Queria fugir de mim,
dos meus desencantos,
e não consigo...
Melhor seria assim
Do que viver pelos cantos
na triste espera do fim.
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Poema de
CRIS ANVAGO
Setúbal/ Portugal

A música faz sonhar
Lembrar, sorrir
Ficar sentada
Fluir no oceano
Que nos acolhe
E escolhe o que merecemos
E queremos tudo de bom
Porque queremos
Ser como somos
Ser nós!

Com os abraços amigos
Sem estarmos sós
Queremos o som
E, na madrugada
Saborear fruto bom
Antes de irmos para a estrada
Somos quem somos
E, não temos de ser mais nada!

Chegamos, partimos
Andamos a deambular pela estrada
Sempre pensamos em quem nos ama
Sempre somos acarinhados pelos amigos
Somos nós 
Com todas as imperfeições
e. se não estivermos sós
somos bons nas nossas relações
de amizade, da amor e carinho
assim vamos caminhando
nesta estrada dura do destino!
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Aquele sem teto,
que tem a noite por leito,
precisa de afeto! 
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Dos gestos com que amor se manifeste
(Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés" p. 206)

Dos gestos com que Amor se manifeste
De todos o sorriso é tão primeiro
Que sendo puro, aberto e verdadeiro
Parece a luz que vem do azul celeste.

Se de um sorriso o olhar se enfeita e veste
O nosso coração bate ligeiro
Parece o peito ser quente braseiro
E de rubor o rosto se reveste.

Quando o sorriso nasce nada é feio
E as almas ficam presas nesse enleio
Que tanta coisa diz sem dizer nada.

Ficam palavras presas na garganta
E aquela que de todas mais encanta
É no fundo da alma que é guardada.
= = = = = = = = = 

Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Tente mais tarde

O destino, às vezes, contraria
aquilo que imaginamos ser o certo
e transfere sempre para outro dia
tudo que imaginávamos estar perto.

Achamos que é defeito do destino,
mas no final as coisas vão mostrando
que nos faltava o principal: o tino
para saber o quê, o onde e o quando.

O que termina foi melhor assim,
e  sábio, o destino armou o fim
que de algum jeito foi anunciado.

Veja o exemplo que ocorre a mim,
que tento te ligar e ouço enfim
que está fora do ar ou desligado.
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Persistência

Sou persistente como o garimpeiro
que busca a joia rara e deslumbrante,
cavando a terra, construindo aceiro,
para encontrar, altivo, o diamante.

Sou incansável pelo tempo inteiro,
busco a palavra e o brilho fascinante
do verso ardente, puro e verdadeiro
que brilha como o sol, inebriante.

Ninguém me deterá neste garimpo,
irei, se for preciso até o Olimpo
buscar minha divina inspiração.

E nestes versos pobres, mas floridos
meus sonhos ficarão mais coloridos,
oriundos do Amor, do coração!
= = = = = = = = =  

Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Ninguém é grande
sozinho.
Mesmo o Amazonas,
gigante,
de afluentes precisou. 
= = = = = = = = =  

Poema de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Herança poética
(Homenagem a Mário Quintana)

Pede cautela a razão,
no labirinto da vida...
mas, sei que o meu coração
também conhece a saída.
* * *
Na sua ruazinha sonolenta,
a velha casa, onde nasceu, resiste.
Da porta aberta quando à noite, venta
do "catavento" eu ouço o canto triste.

Sua "cadeira de balanço" tenta
ninar meus sonhos... quanto pede e insiste!
Mas, a saudade chega e ciumenta
ocupa o seu lugar e não desiste.

Abro o "baú de espantos", comovida!...
Seu "sapato florido", ao ganhar vida,
vai procurar seu dono... e, por instinto,

eu levo o seu "espelho com magia",
que me fará cativo da poesia
e hei de encontrar você no "labirinto".
= = = = = = = = =  

Poema de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

Plangência

Disseste adeus, pereci nesse instante,
Faltou-me o chão, foi-se o brilho da vida,
Senti cravado um punhal lacerante,
Resta aqui dentro a saudade doída.

Os arrebóis não mais têm formosura,
Lágrimas rubras me escorrem na face
Extravasando a perversa tristura,
Sofro lembrando o cruel desenlace.

Sem teus afagos decerto definho,
Prevejo ser a ruína completa,
Um negro manto recobre o caminho
Em que vagueio, princesa dileta.

Eis o meu brado plangente, sincero
Se decidires voltar, inda espero.
= = = = = = = = =  

Poema de
MILTON S. SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Nem sei porque sou assim

Nem sei porque sou assim:
Cada sonho que acalento
Se agarra tanto aqui dentro
Que vira parte de mim.

Fui assim desde criança
Sonhadora incorrigível
Procurando no impossível
Uma luz ... uma esperança.
Pareço pombinha mansa
Mar não gosto de enganar
Se um sonho me faz voa
Nem um corisco me alcança.

O sonho nos assegura
Que o céu não é tão distante
Ele grita... e nos garante
Que vale a pena a procura.
Quem sonha se transfigura
Mudando o brilho do olhar,
Que sonha pode mudar
Qualquer sorte... por mais dura.

Nem sei porque sou assim:
cada sonho que acalento
se agarra tanto aqui dentro
que vira parte de mim.

Por isso é que choro tanto
Ao ver um sonho morrer
Sonhar é mais que viver:
É da vida ter o encanto.
Cada sonho é um acalanto
Que embala nossa alma...E traz
Um misto de guerra e paz
No feitiço do seu canto.

Um sonho pode fazer
O inverno virar verão,
Pode entrar num coração
Quietinho...sem ninguém ver
Pode até mesmo acender
Alguma estrela apagada,
E as vezes, sem trazer nada
Enche a gente de prazer.

Sonhar é uma forma bonita
De atender o que a alma exige
Somente um sonho corrige
qualquer vida mal escrita.
E quando agente acredita
Torna reto o rumo torto
E até mesmo um sonho morto
Muitas vezes ressuscita.

Se sonhando eu sempre vim
Porque é assim meu coração,
Pouco me importa a razão
Desse meu sonhar sem fim.
Nem sei porque sou assim:
cada sonho que acalento
se agarra tanto aqui dentro
que vira parte de mim.
= = = = = = = = =  

Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Serenando tua dor

Tu serenas, quando o verso que tu traças, 
descompassa tua dor e harmoniza 
todo amor que ainda tens e que suaviza 
teu silêncio, pois desfaz tuas mordaças.

E são  tantas... tantas vezes te calaste
ante cada infeliz perspectiva
de viver uma aventura expressiva,
quando nela, muito mais te aprofundaste.

O nostálgico  sentir te dissocia 
do amor que tu precisas despertar.
mas se a dor é a artéria da poesia,

tua doce fantasia há de mostrar 
o caminho que produz toda magia 
que conjuga, na poesia, o verbo... amar.
= = = = = = = = =  

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Estanca teu pranto!

Não!... Não chores, estanca teu pranto;
Doutro Plano, não sejas omisso!
Tinhas que sofrer o desencanto
Pra quitar, de vez, um compromisso.

Nesta tão prematura partida
De alguém muito querido em teu lar,
Não te olvides, é etapa vencida
De um pretérito a se resgatar.

Apesar de profunda essa dor
Do trespasse de um filho querido,
Agradece aos Céus, ao Criador,
O ditoso resgate assumido.

A agonia que sentes agora
Não é síndrome que te convém.
Calma, pois o ser que foi embora
Certamente te espera no Além!

A presente Passagem é acúmulo
De um saber tal que se perpetua.
E ele mostra que além do vil túmulo,
Nossa vida, por Deus, continua...
= = = = = = = = =

Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
= = = = = = = = =

Sextilha de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Podemos trocar carinhos
por e-mails todo dia,
e podemos divulgar
mensagens, versos, poesia,
repartindo com o mundo
a nossa eterna alegria!
= = = = = = = = = = =


Newton Sampaio (Quinze minutos)


Para falar verdade, a ruazinha é bem insignificante. Mas é simpática. Simpática, comprida, estreitíssima. É comprida e vai terminar nos fundos de uma igreja muito velha. O que, aliás, não tem importância, porque, desgraçadamente, eu não sei mais entrar em igrejas. Não sei entrar nas igrejas nem pela porta grandiosa, nem pela porta dos fundos. Por isso, eu entro, mas é no estabelecimento Élite, muito embora o meu sangue seja bem ordinário e provenha de um cabo da polícia pernambucana que se casou de supetão com a filha de uma quitandeira baiana muito gorda. O estabelecimento Élite é campeão no gênero, põe saltinhos em cinco minutos e meias-solas garantidas num simples quarto de hora. 

O freguês entra, esconde só as pernas no cubículo, dá o sapato pra o italiano proprietário, o qual distribui o serviço pra os brasileiros sapateiros. Eu agora estou preso em um dos cubículos, e fico espiando o movimento, desde que não tenho um só jornal vespertino cheio de grandes títulos onde possa conhecer a mais recente cena de sangue de qualquer subúrbio abandonado. 

A meu lado, um homem de imensos bigodes pitorescos recebe o sapatão de cano alto, acha que o serviço não prestou, paga só quatro mil e quinhentos, vai embora pisando duro. Estamos em março (quer dizer que, até fins de junho, não precisarei voltar aqui), pergunto que horas são, me respondem que são duas horas e quinze.

Os sapateiros brasileiros suam sem parar, o ambiente continua abafado, cheirando a couro, a suor, a tinta. Todos os três cheiros são fortes e nenhum deles me é agradável.

Presto atenção e concluo que o dono do estabelecimento usa camisa preta. Sinto ganas de dar um viva à Abissínia (só para anarquizar a geografia) mas tenho medo de ser posto na rua descalço e de meia furada.

Entra uma radiosa mocinha, que põe o embrulho em cima do balcão e dá instruções ao homem. Um dos artífices conhece a mocinha e diz:

— Como vai, sérrgipana? (abre o e e carrega no r).

Ela sorri, olha pra mim não sei por que, me acha simpático. Eu lhe pergunto:

— Conhece o Tobias Barreto?

A mocinha fala:

— Em que time joga esse bicho?

Dou uma bruta gargalhada, fico sério de uma hora pra outra, todos pensam que eu sou louco, mas eu não sou louco não. O que eu sou é um homem triste, desesperado, desesperadíssimo, porque minha mulher geme com pneumonia, meu garoto sofre com sarampo, meu sapato está cheio de buracos. Eu sou um homem desesperado, desesperadíssimo, que quer sair do cubículo, que está doente de amor pela mulher pneumônica, pelo filho sarampento, que não aguenta mais o calor, nem o estabelecimento Élite, nem a rua comprida e estreitíssima.

A sergipana foi embora, não sei nada do que se passou, todos estão agora me olhando, o italiano proprietário até me vem ajudar, mas eu não aceito o favor e enfio sozinho a botina consertada. Não digo até logo, piso a rua comprida.

A rua é comprida, vai dar no fundo de uma igreja muito velha, mas isso não tem importância porque eu não sei mais entrar nas igrejas. Nem pela porta gloriosa, nem pela porta dos fundos.

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing

Antonio Juraci Siqueira (O vaga-lume e o sol)

(Texto baseado no soneto Círculo Vicioso" de Machado de Assis).


 Numa densa floresta vivia um vaga-lume que quando a noite caía, ficava pirilampeando pra lá e pra cá em companhia de outros vaga-lumes com suas luzinhas esverdeadas. Mas ele não estava nem um pouco satisfeito com sua vida de pirilampo, vagalumeando livre pelas matas e campos, por isso vivia resmungando para si mesmo:

 – Eita, vidinha mais besta e sem graça esta minha!... De que me adianta ter luz própria e liberdade para voar se ninguém me vê no meio desta mata? Bem que eu queria ser uma estrela para ficar piscando no céu e ser visto por todo mundo...

 Mal sabia o vaga-lume que na imensidão do céu,  uma daquelas estrelas piscava que piscava de descontentamento e tristeza, enquanto pensava:

 – Ai de mim... Que sina ingrata a minha: ficar eternamente piscando anonimamente ao lado de zilhões de estrelas. De que me vale ter brilho próprio e ficar aqui no céu se ninguém sequer sabe o meu nome? Feliz, mesmo, é a lua, que além de ter nome próprio e ser a musa dos namorados ainda serve de inspiração para poetas, músicos, pintores...

 Enquanto a estrela assim divagava, a lua  vagava solitária pelos mares do céu, mergulhada em luares de tédio e melancolia.

 – Pobre de mim, como sou infeliz – dizia de si para si a bela Selene –  de que adianta ser a musa dos namorados, interferir no ciclo das marés e servir de inspiração para os artistas se nem consigo ser eu mesma o tempo todo, se estou sempre mudando de fase, perambulando de quarto em quarto e nem luz própria eu tenho? Feliz eu seria se fosse o sol, senhor da vida e da morte, o astro-rei a reinar absoluto no céu sobre tudo e sobre todos!...

 Não sabiam, entretanto, o vaga-lume, a estrela e a lua, que o sol também não estava satisfeito com o seu destino de astro-rei, que sofria entre o poder e a impotência, matutando sobre seu próprio brilho:

 – Como eu gostaria de não ser quem sou!... Como seria bom não viver preso a uma órbita e assim poder ir aonde eu quisesse... Ah, se não pesasse sobre mim a responsabilidade pela vida e a culpa por tanta morte advinda das secas que provoco, mesmo não passando de uma estrela de quinta grandeza... Daria tudo para ser um simples vaga-lume a voar livre, dono tão somente do meu destino, sem levar nas costas o fardo da responsabilidade e do remorso... 

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
ANTÔNIO JURACI ALMEIDA SIQUEIRA, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948). Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

Fontes:
Antonio Juraci Siqueira. O devorador de metáforas e outras histórias. Belém/PA: 2014.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Figueiredo Pimentel (A rainha das águas)


O reino da Pérsia foi há séculos passados governado pelo rei Nebul.

Esse rei, que vivia muito feliz governando o povo com sabedoria, um dia ficou cego.

Mandou chamar todos os médicos do seu reino, todos os curandeiros, todas as feiticeiras, para lhe darem algum remédio que o curasse.

Nada puderam conseguir.

Já estava Nebul desanimado, e conformado com a sua triste vida, quando um dia, apareceu uma velhinha, pedindo esmola.

Sabendo que o rei havia cegado, pediu para lhe ensinar o remédio que o havia de curar.

O rei mandou entrar a velhinha, que lhe disse:

– Saiba vossa real majestade que no mundo só existe um remédio capaz de o fazer recobrar a vossa preciosa vista. Existe num reino muitíssimo distante daqui, uma fonte chamada de rainha das Águas. Se alguém conseguir um pouco dessa água, e colocá-la sobre os olhos, imediatamente verá tão bem como um pássaro. Mas é muito difícil ir a esse reino. Quem for buscar a água deve se entender com uma velhinha que mora perto da fonte. Essa velhinha é quem há de informar se o dragão que vigia a entrada da fonte está dormindo ou acordado, porque a fonte está situada atrás de umas montanhas muito altas, e, se alguém for visto pelo terrível bicho, morrerá no mesmo instante.

O rei Nebul deu à velhinha grande quantia e retirou-se para os seus aposentos.

Mandou preparar uma grande esquadra composta de duzentos navios, e enviou seu filho mais velho, o príncipe Agar, para buscar a água, dizendo que lhe dava o prazo de um ano para estar de volta, aconselhando-o que não saltasse em país algum, para não se distrair; e que, se naquele prazo não voltasse, considerá-lo-ia morto pelo dragão.

O moço partiu: e depois de viajar muito, foi aportar a um país estranho e mito rico.

Saltou em terra, e começou a se divertir a ponto de gastar todo o dinheiro que levava, e a contrair dívidas, pelo que ficou preso.

Passado o ano, Nebul, não o vendo voltar, ficou triste, julgando-o morto.

Mandou preparar nova esquadra de quinhentos navios, porque supunha que seu filho morrera na guerra que travara no reino das Águas, em busca do remédio para a sua cegueira.

Enviou seu segundo filho, o príncipe André.

Fez-lhe a mesma recomendação:

– Se no prazo de um ano, meu filho, não estiveres de volta, terei que chorar a tua morte.

Partiu André e, depois de muito viajar, aportou ao mesmo país que seu irmão Agar.

Aí, fascinado pelas festas, gastou tudo quanto levara, contraiu grandes dívidas, e, como seu irmão, ficou preso.

Passado um ano, vendo o rei que o seu outro filho não voltava, ficou desanimado, e sem esperanças de recuperar a vista, pois supunha que André houvesse tido o mesmo fim que o primeiro.

Então, o mais moço, o jovem Oscar, que ainda era menino, foi se oferecer para ir buscar o remédio.

– Agora, quero ir eu, meu pai; e se for, garanto que lhe trarei a água.

O rei começou a brincar.

– Como queres tu ir, meu filho? Não vês a sorte de teus irmãos mais velhos? Que é feito deles? Morreram. Como posso eu deixar que faças semelhante viagem? Seria até um contrassenso.

O menino tanto insistiu, tanto pediu, tanto rogou, que, afinal, o rei, para o contentar, lhe concedeu a licença pedida.

Mandou preparar uma esquadra de cem navios, menor que a dos outros dois príncipes, e disse a Oscar que partisse quando quisesse.

O menino, antes de partir, foi assistir à missa no palácio, e pediu com todo o fervor a Nossa Senhora que o protegesse na empresa a que ia se arriscar.

Partiu no dia seguinte, e, depois de muito navegar, foi aportar no mesmo país onde estavam seus irmãos presos por causa das dívidas.

Pagou-as e soltou-os.

Os dois irmãos aconselharam-lhe que não continuasse a viagem o que era tempo perdido, pois aquele país era muito divertido, e que se deixasse ficar por ali.

O menino nada quis ouvir, e, embarcando de novo, partiu em direção ao reino das Águas.

Chegando aí, desembarcou sozinho, e foi procurar a velhinha, que morava perto da fonte, a qual, quando o viu, ficou admirada e disse:

– Ó meu netinho, que veio cá fazer? Olhe que você corre grande perigo. O dragão, guarda da fonte, que fica por trás daquelas montanhas, é uma princesa encantada, que tudo devora. Procure uma ocasião em que esteja dormindo, para entrar, e repare bem que, quando estiver com os olhos abertos, é que está dormindo; mas, se estiver com os olhos fechados, acautele-se, senão morre.

O menino tomou as suas precauções, de modo que, ao chegar à fonte encontrou a fera com os olhos abertos.

Aproximou-se da fonte, e encheu a garrafa que levava.

Já ia se retirando, quando o dragão acordou, e avançou sobre ele.

– Que atrevimento é esse, menino mortal, que faz com que tenhas a audácia de vir aos meus reinos?

O moço só teve tempo de desembainhar a espada.

Em um dos botes a fera foi ferida, e, com o sangue que gotejava, se desencantou numa formosa princesa.

– Devo casar-me com o homem que me desencantou. Dou-te um ano, jovem príncipe, para me vires buscar. Leva a água a teu pai, e volta. Se dentro deste prazo não estiveres aqui, irei buscar-te, onde estiveres.

Como sinal de ser reconhecido, deu-lhe a princesa um anel com um brilhante enorme.

O príncipe Oscar voltou ao país, passando pelo reino onde estavam seus irmãos, levou-os para bordo, com o fim de os conduzir ao palácio do rei Nebul, seu pai.

Quando os dois irmãos mais velhos souberam que o principezinho tinha se saído bem da empresa, ficaram invejosos e planejaram roubar a garrafa que continha a preciosa água.

Essa garrafa estava na mala do príncipe Oscar, que não a deixava um minuto sequer, guardando consigo a chave, quando se ia deitar.

Propuseram ao irmãozinho dar um grande banquete a bordo do navio, convidando para isso toda a oficialidade, banquete esse em regozijo por se ter encontrado a água que havia de dar a vista ao velho rei Nebul.

O príncipe Oscar consentiu, e os irmãos, cujo fim era embebedá-lo, durante as saúdes que se fizessem, ficaram contentes com a aquiescência do principezinho.

Fizeram a coisa tão bem-feita que o jovem Oscar se excedeu nas saúdes, a ponto de ficar embriagado.

Os dois irmãos, assim que o viram naquele estado, correram à mala, e trocaram a garrafa da fonte por uma de água do mar.

Oscar, assim que ficou bom, tratou de ver a sua mala, e, como a achou intacta, não desconfiou da troca.

Quando a esquadra se apresentou no porto da cidade onde vivia o rei Nebul, houve satisfação geral, sendo o principezinho recebido entre gerais aplausos.

Assim que deitou a água nos olhos de seu pai, este ficou desesperado de dor. Então, os dois irmãos, chamando o mais moço de impostor, trouxeram a garrafa que haviam roubado, e puseram a água nos olhos do ei, que recuperou imediatamente a vista.

Começaram as festas em regozijo ao grande acontecimento de haver Nebul recobrado a vista.

Agar e André recebiam aplausos de todo o mundo, que admirava a sua intrepidez, arriscando a vida em uma viagem tão perigosa.

O rei Nebul não quis que o príncipe Oscar assistisse às festas. Mandou matá-lo, dizendo que um impostor como ele, merecia ser queimado vivo.

No dia em que devia começar a festa em homenagem a tão valentes príncipes, seguiu de manhã cedo, para uma floresta muito longe do castelo, o príncipe Oscar, acompanhado de um batalhão enorme que devia matá-lo.

Os soldados, assim que chegaram no meio da floresta, tiveram pena do principezinho, e, em vez de matá-lo, cortaram-lhe um dedo, que foram levar ao rei Nebul, como prova de sua morte.

Oscar, assim que se viu livre da morte, começou a procurar a vida, porque naquele lugar, tão deserto, morreria de fome ou nas garras de algum animal feroz, dos que ali havia em quantidade.

Depois de andar muito, foi ter à casa de um lavrador, a quem ofereceu os seus serviços.

O lavrador, vendo aquele menino, só, naquele lugar deserto, tomou-o para escravo, e o maltratava todos os dias.

Já havia passado um ano, e era esse o tempo marcado pela rainha das Águas para o príncipe Oscar ir buscá-la, e efetuarem o casamento.

Não aparecendo, resolveu ir buscá-lo.

Mandou preparar uma esquadra de cem navios, e partiu em direção ao reino do rei Nebul.

Aí chegando, mandou um de seus generais avisar ao rei que lhe mandasse o príncipe que, um ano antes, havia ido aos eu reino buscar água de uma fonte que lhe havia de restituir a vista, e que tendo o príncipe lhe prometido casamento, e não voltando, ia à sua procura.

Mandava dizer ainda que se o príncipe não viesse, arrasaria a cidade em meia hora, com os poderosos canhões de sua esquadra.

Nebul, à vista da intimação, ficou aflito, e mandou que o príncipe Agar fosse a bordo se apresentar à princesa.

Chegando a bordo, lhe disse ela:

– Homem atrevido, como tens coragem de aparecer aqui? Onde está o sinal que te dei para o nosso reconhecimento?

O príncipe, que não tinha ciência de sinal algum, voltou para terra, envergonhado de ter feito figura tão triste diante de uma formosa dama.

A princesa enviou nova intimação ao rei Nebul, e este, cada vez mais aflito, fez ir seu filho André à presença da princesa.

O segundo filho foi tão infeliz como seu irmão. Não tendo o reconhecimento da princesa, voltou envergonhado pelo fiasco que havia feito.

A princesa mandou nova intimação à terra, dizendo que, se em vinte e quatro horas o príncipe que lhe prometera casamento não lhe aparecesse, mandaria arrasar a cidade, e depois incendiá-la.

O rei ficou aflitíssimo, pois não tendo mais nenhum outro filho, esperava com ânsia o prazo marcado para o extermínio de seu povo.

Já estava arrependido de ter mandado matar Oscar, quando um dos soldados do batalhão que acompanhou o menino à floresta disse que eles não tinham tido coragem de matar o jovem moço, e só lhe haviam cortado o dedo.

Quando o rei soube disso, teve um raio de esperança. Mandou emissários por todo o seu grande reino, à procura do jovem príncipe Oscar, dando a todo mundo os sinais do moço, e prometendo uma grande fortuna a quem o trouxesse ao seu palácio.

Pediu à princesa que lhe desse cinco dias de espera, dizendo que seu filho Oscar, que lhe tinha prometido casamento, estava em viagem, mas que já o havia mandado chamar com urgência.

A princesa concedeu o prazo pedido, dizendo que mais um segundo não concedia, e que se, contados os cinco dias, o príncipe não chegasse, não responderia pela vida de ninguém daquela cidade.

Havendo tanta gente a procurar o príncipe Oscar, muito fácil foi encontrá-lo como escravo do lavrador, onde trabalhava todo o dia, fazendo serões até alta noite.

Quando o lavrador soube que o seu escravo era um príncipe, ficou mais morto do que vivo.

Carregou o mocinho nas costas, e foi chorando levá-lo ao palácio do rei Nebul.

Estava terminado o prazo, e a princesa já tinha mandado preparar os canhões para bombardear a cidade, quando o príncipe lhe fez sinal que esperasse, porque ia ter com ela.

Assim que o jovem chegou a bordo do navio onde estava a Rainha das Águas, colocou no dedo o anel de ouro.

Esta, reconhecendo o príncipe, mandou o general avisar ao rei Nebul que era aquele o seu noivo, e que podia ficar descansado porque não mais bombardearia a cidade, e que partiria no dia seguinte, com o noivo para seu reino.

O rei convidou, então, a rainha das Águas para vir visitá-lo, porque queria conhecer sua nora.

Estavam todos no palácio, quando apareceu uma velhinha pedindo uma esmola.

Oscar, vendo que era a mesma que lhe tinha ensinado o remédio para seu pai recuperar a vista, voltou-se para a noiva, e disse:

– É esta a velhinha, formosa princesa, a quem devo a felicidade de me casar e de ver meu pai com a vista que tinha perdido.

A rainha das Águas voltou para o seu reino e casou-se com Oscar, que ficou sendo o rei que governava o país mais rico e mais formoso do mundo.

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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896. 
Disponível em Domínio Público. 
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