Emília dirigiu-se sozinha para o bairro onde a Ortografia Etimológica se havia entrincheirado.
— Onde está a interventora disto por aqui? — perguntou a uma sentinela com dois LL, porque ali todas as palavras se conservavam vestidas à moda de dantes.
— Naquela casinhola feita de raízes gregas e latinas — respondeu a sentinela.
A boneca encaminhou-se para a casinha e bateu na porta um toque, toque, toque enérgico.
— Entre! — gritou uma voz fanhosa.
Emília entrou e deu com uma velha de nariz de papagaio e ar rabugentíssimo, que tomava rape em companhia dum bando de velhotes mais rabugentos ainda, chamados os Carrancas.
— Com que então — foi dizendo a boneca — a senhora está de briga com a ORTOGRAFIA SIMPLIFICADA e não admite que estas pobres palavras se vistam pelo figurino moderno?
— Sim — rosnou a velha. — As palavras sempre usaram este modo de vestir, e eu não "admito" que dum momento para outro mudem e virem aí umas sirigaitas "fonéticas". As palavras têm uma origem e devem trajar-se de modo que quem as lê veja logo donde procedem.
-— Tudo isso está muito bem — replicou Emília —, mas a senhora sabe que existe uma contínua mudança nas coisas. As palavras, como tudo mais, também têm de mudar. Quindim já me explicou isso.
— Mas mudam lentissimamente — declarou a velha —, e não assim do pé para a mão, como querem os reformadores. Mudam por si, e não por vontade dum grupo de homens.
— A senhora canta muito bem, mas não entoa. Talvez tenha até carradas de razão. Entretanto, ignora a maçada que é para as crianças estarem decorando, um por um, o modo de se escreverem as palavras pelo sistema antigo. Os velhos Carrancas é natural que estejam do seu lado, porque já aprenderam pelo sistema antigo e têm preguiça de mudar; mas as crianças estão aprendendo agora e não há razão para que aprendam pelo sistema velho, muito mais difícil. Eu falo aqui em nome da criançada. Queremos a Ortografia Nova porque ela nos facilita a vida. Quanto menos complicações, melhor. Por isso vim cá conversar com as palavras para conhecer-lhes a opiniãozinha.
— Quem governa as palavras sou eu, e só eu falo em nome delas.
— Pois a sua opinião de modo nenhum me interessa. Eu já a conheço. Quero agora conhecer a opinião das palavras, está ouvindo? Se elas pensarem como a senhora, nesse caso já não está aqui quem falou. Mas se pensarem como eu, ah, então a senhora tem de ver fogo com o meu Quindim. . .
— Quem é esse Quindim? — perguntou a velha, de testa franzida.
— A senhora saberá no momento oportuno, com um P só, está ouvindo? E agora, com ou sem sua licença, vou conversar com as palavras deste acampamento.
A velha ficou de tal modo desnorteada com a rompância de Emília que nem pôde abrir a boca com dois cc. Limitou-se a botar-lhe a língua (uma língua muito preta) e a recolher-se, batendo a porta.
Emília acenou para uma das palavras que andavam por ali. Era a palavra Sabbado, com dois BB.
— Senhor Sabbado, venha cá. Sabbado aproximou-se.
— Diga-me; por que é que traz no lombo dois BB quando poderia passar muito bem com um só?
Sabbado olhou para o lado da casinha da velha, com expressão de terror nos olhos. Emília viu que ele estava com medo de manifestar-se livremente, e levou-o para mais longe dali. Sabbado então disse:
— É por causa da bruxa velha. Como venho do latim Sabbatum, que, por sua vez, veio do hebraico Sabbat, ela não consente que eu me alivie deste B inútil. Há séculos que trago no lombo semelhante parasito, que nenhum serviço me presta.
— Quer dizer que para você seria muito melhor andar com um B só?
— Está claro! O meu sonho é ver-me livre deste trambolho. Mas a velha não deixa. . .
Emília arrancou-lhe o B inútil e disse:
— Pois fique com um B só. A velha está caducando e só olha para os interesses de si própria e dos Carrancas que lhe vêm filar o rape. Estou aqui representando os interesses das crianças, que constituem o futuro da humanidade — e as crianças preferem Sábados com um B só. Vá passear e nunca mais me ponha o segundo B!. . .
A palavra simplificada saiu lampeiríssima, pulando que nem um cabritinho novo que pilha aberta a porta do curral. Sentia-se leve, leve. . Emília chamou outra palavra. Veio a palavra Sceptro.
— Como é a pronúncia do seu nome? — perguntou-lhe.
— Cetro — respondeu ela.
— Então por que traz esse S e esse P inúteis?
— Ordens da velha.
— Só por causa disso ou também porque sente prazer em trajar-se assim?
— Que prazer poderei sentir em levar vida de burro de carga? Pensa que letra inútil não pesa? Sou um Sceptro bem pesado. . .
Emília arrancou as duas letras inúteis e mandou Cetro passear — e lá se foi ele, pulando que nem tico-tico.
— E diga às suas companheiras de peso inútil que façam o mesmo — recomendou Emília, de longe. — Que botem no lixo as letras mudas.
Depois chamou outra palavra. Veio Thesouro.
— Para que esse H aí dentro?
— Isto é um enfeite etimológico, que a velha exige.
— Fora com ele! Acabou-se o tempo dos enfeites etimológicos. A velha não manda mais. E diga a todas as palavras com HH inúteis que se limpem disso.
— E as de H no começo?
— Essas ficam assim mesmo. E olhe: também não fica o H dentro da palavra quando se trata de palavra composta, como Desabitar, que é composta de Des e Habitar. Excetuando aquele caso, olho da rua com todos os HH mudos! Vá!. . .
Emília chamou outra. Veio Machina.
— Como é o seu nome, Máquina ou Machina?
— Máquina. Este meu CH tem o som de Q.
— Então por que não o troca duma vez por um Q?
— A velha não deixa. Diz que eu sou uma palavra de origem grega, e que no grego o CH vale Q. É a Etimologia. . .
— Sebo para a Etimologia. Bote fora o CH e passe a usar o Q — e diga a todas as suas companheiras de CH que façam o mesmo. Chispa!. . .
Emília chamou outra. Veio Kágado.
— Esse K que você usa não tem o mesmo som de CA? — perguntou ela.
— Tem, sim. . .
— Pois então bote fora o K e vista o CA. Desde que o tal K tem o mesmo som de CA, ele é demais na língua e deve ser expulso do Alfabeto. Avise todos os KK que o tempo deles se acabou. Suma-se!. . .
O velho Kágado lá se foi, de nariz comprido, achando muito perigosa aquela sua transformação em Cágado. . .
— Não fica bonito — murmurou Emília ao vê-lo afastar-se — mas simplifica. Estamos na era da simplificação.
Depois chamou outra. Veio Wagão.
— Que letra é essa que você usa no frontispício? — perguntou.
— É o W, ou Dabliú, uma letra do Alfabeto inglês que vale por dois vv entrelaçados. Letra muito importante em Anglópolis, mas pouco usada aqui.
— Pois não há mais Dabliú em português, sabe? Foi expulso do nosso Alfabeto. Troque-o por um V e raspe-se!. . .
E lá se foi Wagão, transformado em Vagão, rolando muito mais leve sobre os seus trilhos.
Emília chamou outra. Veio Pery.
— Que Y é esse que você usa em vez do I comum? — perguntou-lhe.
— Todas as palavras de origem tupi, como eu, sempre foram escritas assim, com Y.
— Mas os índios tinham linguagem escrita?
— Não. Só a tinham falada.
— Nesse caso não há razão nenhuma para vocês andarem a fingir-se de gregas usando esse Y. Tire isso e bote um I simples. Avise a todas as mais para que façam o mesmo. Rua!. . .
Emília chamou outra. Veio a palavra Phosphoro, e com ela a palavra Phthisica.
— Como se lê o seu nome? — perguntou Emília a Phosphoro.
— Lê-se Fósforo. O meu PH soa como F.
— Então não seja idiota. Use F que até acenderá melhor, e não complicará a vida das crianças. Avise os seus colegas que o PH morreu para sempre. Roda!...
— E a senhora? — disse depois, dirigindo-se a Phthisica. — Sabe que está tuberculosa de tanto carregar letras inúteis? Liberte-se dos parasitos do corpo que garanto a sua cura. Suma-se!. . .
Emília chamou outra. Veio a palavra Inglez.
— Meu caro — disse ela —, acho que você está muito bem assim, com esse Z atrás. Mas o governo fez um decreto expulsando os zz de inúmeras palavras, de modo que a sua forma daqui por diante vai ser Inglês. Eu lamento muito, mas lei é lei. . .
Inglez, transformado em Inglês, lá se foi, teso como um cabo de vassoura, sem sequer murmurar um Yes.
Emília chamou outra. Veio Egreja.
— Saiba que foi resolvido que de agora em diante todas as palavras que uns escreviam com E e outros com I serão escritas unicamente com I. Escrevê-las com E fica sendo erro.
— E por que decidiram conservar o I em vez de mim? — protestou o E de Egreja.
— Não sei, nem quero saber — respondeu a boneca. — Resolveram assim e acabou-se. Tiraram a sorte, com certeza — ou então o I soube apadrinhar-se melhor. Vá embora!. . .
Emília chamou outra. Veio Prompto.
— Não há mais P mudo dentro das palavras. Fora com esse e suma-se!. . .
E Prompto lá se foi, muito sem jeito, transformado em Pronto.
Emília chamou outra. Veio a palavra Cançar.
— Uns escrevem você com S e outros com Ç. Ora, isso constitui uma trapalhada, e portanto foi decidido que todas as palavras nessas condições passem a ser escritas só com S. Roda!. . .
Emília chamou outra. Veio a palavra Maçan.
— Tire o AN — disse a boneca. — Ponha à e vá avisar a todas da mesma família. E diga às terminadas em AM que a moda agora é Ão.
Emília chamou outra. Veio a palavra Pao.
— Avise às suas companheiras de que os Ditongos Ai, Au e oi, só se escreverão dora em diante assim, e não AE, AO e OE. Foi resolvido e acabou-se, entende? Palavras como Pao, Ceo, Chapeo, etc, passam a escrever-se Pau, Céu, Chapéu. E nada de rezinga. Manda quem pode. Suma-se.
— E eu como fico? — murmurou a palavra Rio, aproximando-se.
— Você fica assim mesmo, boba! O seu final 10 nunca foi Ditongo, não sabe disso? Roda! Venha outra.
Apresentou-se a palavra Geito.
— Uns escrevem você com G e outros com J — disse a boneca. — Fique sabendo que a moda agora é com J, e quem a escrever com G vai para o xadrez. Pode ir.
— E eu? — disse a palavra Jibóia, silvando como fazem as cobras.
— Você fica com J porque é de origem americana. Se fosse africana também ficaria com J, como aquela que lá vai — e apontou para a palavra Quijila, que andava passeando muito lampeira.
— Venha outra. Aproximou-se a palavra Amal-o.
— O governo — disse Emília — resolveu que doravante você e suas companheiras devem ser escritas assim — Amá-lo. Vá avisar às outras.
— Mas isso é um absurdo! — protestou Amal-o. — Eu. . .
Emília arrumou-lhe com o decreto do governo na cabeça, gritando:
— Vá avisar as outras e não me aborreça. Chispa! Amal-o, transformado em Amá-lo, lá se foi com um galo na testa, fungando.
Emília chamou a palavra Subscrever, que estivera assistindo à cena.
— Como é que a senhora divide as suas Sílabas? — perguntou-lhe.
— Divido-as pelo sistema etimológico, assim: sub-scre-ver.
— Pois vai mudar isso. De hoje em diante dividirá deste modo: Subs-cre-ver. As razoes etimológicas acabaram-se. Estamos em tempo de fonéticas. A divisão das Sílabas será de acordo com a fonética, ou com os sons apenas. Vá avisar a todas. Já!. . .
Subscrever saiu correndo.
— E pronto! — exclamou Emília dando um pontapé no montinho de KK e YY e CH e mais letras mudas e dobradas que ficaram no chão. — Prontérrimo! Quero agora ver a cara da tal Ortografia Etimológica. . .
E viu. Logo depois a velha deixou a casinha de raízes e veio passar em revista as palavras do acampamento. Assim que avistou o Sábado com um B só, o Cetro sem o S e o P etimológicos, e Máquina sem CH, teve um faniquito. Depois berrou, arrancou os cabelos e apelou para os Carrancas que havia deixado na casinha tomando pitadas de rapé.
— Acudam! Corram todos aqui!. . .
Os Carrancas acudiram, espirrando atchim! e a assoarem- se em grandes lenços vermelhos.
— Venham ajudar-me a "endireitar" as palavras que a pestinha da boneca estragou.
A primeira vítima foi Sábado, que entre berros teve de abrir a barriga para receber o B arrancado pela Emília. O coitadinho já se habituara a viver sem a letra inútil, de modo que resistiu e pôs a boca no mundo.
Emília, que estava observando a cena, teve dó dele. Chamou Quindim e disse-lhe:
—Vamos, Quindim! Avance e espalhe aqueles peludos complicadores da língua. Chifre neles!. . .
O rinoceronte não esperou segunda ordem. Avançou de chifre baixo, a roncar que nem locomotiva.
Os Carrancas sumiram-se como baratas tontas, e a velha Ortografia Etimológica, juntando as saias, trepou, que nem macaca, por uma árvore acima.
Emília ria-se, ria-se.
Depois gritou-lhe:
— Você, sua diaba, viveu muito tempo a complicar a vida das crianças sem que nada lhe acontecesse. Mas agora tudo mudou. Agora estou eu aqui — e o Quindim ao meu lado!
Quero ver quem pode com esse "binômio gramatical". . .
Depois da tremenda revolução ortográfica da Emília, o Brasil ficou envergonhado de estar mais atrasado que uma bonequinha e resolveu aceitar as suas idéias. E o governo e as academias de letras realizaram a reforma ortográfica. Não saiu coisa muito boa, mas serviu. Infelizmente cometeram um grande deslize: resolveram adotar uma porção de acentos absolutamente injustificáveis. Acento em tudo! Palavras que sempre existiram sem acentos e jamais precisaram deles, passaram a enfeitar-se com esses risquinhos. O coitado do "ha" do verbo haver, passou a escrever-se com acento agudo — "há", sem que nada no mundo justificasse semelhante burrice. E introduziram acentos novos, como o tal acento grave (`), que, por mais que a gente faça, não distingue do acento agudo (´). O "a" com crase passou a "à", embora conservasse exatamente o mesmo som! E apareceu até um tal trema (••), que é implicantíssimo. A pobre palavra "freqüência", que toda a vida foi escrita sem acento nenhum, passou a escrever-se assim: "freqüência"!. . . Emília danou.
— Não quero! Não admito isso. É besteira da grossa. Eu fiz a reforma ortográfica para simplificar as coisas, e eles com tais acentos estão complicando tudo. Não quero, não quero e não quero.
Quindim interveio.
— Você tem razão, Emília. A tendência natural duma língua é para a simplificação, por causa da grande lei do menor esforço. Se a gente pode fazer-se perfeitamente entendida dizendo, por exemplo, "tísica", por que dizer "phthisica" como nos tempos da ortografia etimológica? A forma "tísica" entrou na língua por efeito da lei do menor esforço. Mas a tal acentuação inútil vem contrariar essa lei. Em vez de simplificar, complica. Em vez de exigir menor esforço, exige maior esforço. Logo, é um absurdo.
— Mas é obrigatório hoje escrever-se assim, com dez mil acentos — observou Pedrinho.
Quindim não concordou.
— Est modus in rebus — disse ele. — A língua é uma criação popular na qual ninguém manda. Quem a orienta é o uso e só ele. E o uso irá dando cabo de todos esses acentos inúteis. Note que os jornais já os mandaram às favas, e muitos escritores continuam a escrever sem acentos, isto é, só usam os antigos e só nos casos em que a clareza os exige. Temos, por exemplo, "fora" e "fora" . O acento circunflexo serve para distinguir o "fora" advérbio do "fora" verbo. Nada mais aceitável que esse acento no O. O que vai acontecer com a nova acentuação é isso: as pessoas de bom senso não a adotam e ela acaba sendo suprimida. O uso aceita as reformas simplificadoras, mas repele as reformas complicadoras.
Emília ficou radiante com as explicações de Quindim e pôs em votação o caso. Todos votaram contra os acentos, inclusive Dona Benta, a qual declarou peremptoriamente:
— Nunca admiti nem admitirei imbecilidades aqui em casa.
______________________
Continua ... Capítulo XXVII (final): Epílogo
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource
— Onde está a interventora disto por aqui? — perguntou a uma sentinela com dois LL, porque ali todas as palavras se conservavam vestidas à moda de dantes.
— Naquela casinhola feita de raízes gregas e latinas — respondeu a sentinela.
A boneca encaminhou-se para a casinha e bateu na porta um toque, toque, toque enérgico.
— Entre! — gritou uma voz fanhosa.
Emília entrou e deu com uma velha de nariz de papagaio e ar rabugentíssimo, que tomava rape em companhia dum bando de velhotes mais rabugentos ainda, chamados os Carrancas.
— Com que então — foi dizendo a boneca — a senhora está de briga com a ORTOGRAFIA SIMPLIFICADA e não admite que estas pobres palavras se vistam pelo figurino moderno?
— Sim — rosnou a velha. — As palavras sempre usaram este modo de vestir, e eu não "admito" que dum momento para outro mudem e virem aí umas sirigaitas "fonéticas". As palavras têm uma origem e devem trajar-se de modo que quem as lê veja logo donde procedem.
-— Tudo isso está muito bem — replicou Emília —, mas a senhora sabe que existe uma contínua mudança nas coisas. As palavras, como tudo mais, também têm de mudar. Quindim já me explicou isso.
— Mas mudam lentissimamente — declarou a velha —, e não assim do pé para a mão, como querem os reformadores. Mudam por si, e não por vontade dum grupo de homens.
— A senhora canta muito bem, mas não entoa. Talvez tenha até carradas de razão. Entretanto, ignora a maçada que é para as crianças estarem decorando, um por um, o modo de se escreverem as palavras pelo sistema antigo. Os velhos Carrancas é natural que estejam do seu lado, porque já aprenderam pelo sistema antigo e têm preguiça de mudar; mas as crianças estão aprendendo agora e não há razão para que aprendam pelo sistema velho, muito mais difícil. Eu falo aqui em nome da criançada. Queremos a Ortografia Nova porque ela nos facilita a vida. Quanto menos complicações, melhor. Por isso vim cá conversar com as palavras para conhecer-lhes a opiniãozinha.
— Quem governa as palavras sou eu, e só eu falo em nome delas.
— Pois a sua opinião de modo nenhum me interessa. Eu já a conheço. Quero agora conhecer a opinião das palavras, está ouvindo? Se elas pensarem como a senhora, nesse caso já não está aqui quem falou. Mas se pensarem como eu, ah, então a senhora tem de ver fogo com o meu Quindim. . .
— Quem é esse Quindim? — perguntou a velha, de testa franzida.
— A senhora saberá no momento oportuno, com um P só, está ouvindo? E agora, com ou sem sua licença, vou conversar com as palavras deste acampamento.
A velha ficou de tal modo desnorteada com a rompância de Emília que nem pôde abrir a boca com dois cc. Limitou-se a botar-lhe a língua (uma língua muito preta) e a recolher-se, batendo a porta.
Emília acenou para uma das palavras que andavam por ali. Era a palavra Sabbado, com dois BB.
— Senhor Sabbado, venha cá. Sabbado aproximou-se.
— Diga-me; por que é que traz no lombo dois BB quando poderia passar muito bem com um só?
Sabbado olhou para o lado da casinha da velha, com expressão de terror nos olhos. Emília viu que ele estava com medo de manifestar-se livremente, e levou-o para mais longe dali. Sabbado então disse:
— É por causa da bruxa velha. Como venho do latim Sabbatum, que, por sua vez, veio do hebraico Sabbat, ela não consente que eu me alivie deste B inútil. Há séculos que trago no lombo semelhante parasito, que nenhum serviço me presta.
— Quer dizer que para você seria muito melhor andar com um B só?
— Está claro! O meu sonho é ver-me livre deste trambolho. Mas a velha não deixa. . .
Emília arrancou-lhe o B inútil e disse:
— Pois fique com um B só. A velha está caducando e só olha para os interesses de si própria e dos Carrancas que lhe vêm filar o rape. Estou aqui representando os interesses das crianças, que constituem o futuro da humanidade — e as crianças preferem Sábados com um B só. Vá passear e nunca mais me ponha o segundo B!. . .
A palavra simplificada saiu lampeiríssima, pulando que nem um cabritinho novo que pilha aberta a porta do curral. Sentia-se leve, leve. . Emília chamou outra palavra. Veio a palavra Sceptro.
— Como é a pronúncia do seu nome? — perguntou-lhe.
— Cetro — respondeu ela.
— Então por que traz esse S e esse P inúteis?
— Ordens da velha.
— Só por causa disso ou também porque sente prazer em trajar-se assim?
— Que prazer poderei sentir em levar vida de burro de carga? Pensa que letra inútil não pesa? Sou um Sceptro bem pesado. . .
Emília arrancou as duas letras inúteis e mandou Cetro passear — e lá se foi ele, pulando que nem tico-tico.
— E diga às suas companheiras de peso inútil que façam o mesmo — recomendou Emília, de longe. — Que botem no lixo as letras mudas.
Depois chamou outra palavra. Veio Thesouro.
— Para que esse H aí dentro?
— Isto é um enfeite etimológico, que a velha exige.
— Fora com ele! Acabou-se o tempo dos enfeites etimológicos. A velha não manda mais. E diga a todas as palavras com HH inúteis que se limpem disso.
— E as de H no começo?
— Essas ficam assim mesmo. E olhe: também não fica o H dentro da palavra quando se trata de palavra composta, como Desabitar, que é composta de Des e Habitar. Excetuando aquele caso, olho da rua com todos os HH mudos! Vá!. . .
Emília chamou outra. Veio Machina.
— Como é o seu nome, Máquina ou Machina?
— Máquina. Este meu CH tem o som de Q.
— Então por que não o troca duma vez por um Q?
— A velha não deixa. Diz que eu sou uma palavra de origem grega, e que no grego o CH vale Q. É a Etimologia. . .
— Sebo para a Etimologia. Bote fora o CH e passe a usar o Q — e diga a todas as suas companheiras de CH que façam o mesmo. Chispa!. . .
Emília chamou outra. Veio Kágado.
— Esse K que você usa não tem o mesmo som de CA? — perguntou ela.
— Tem, sim. . .
— Pois então bote fora o K e vista o CA. Desde que o tal K tem o mesmo som de CA, ele é demais na língua e deve ser expulso do Alfabeto. Avise todos os KK que o tempo deles se acabou. Suma-se!. . .
O velho Kágado lá se foi, de nariz comprido, achando muito perigosa aquela sua transformação em Cágado. . .
— Não fica bonito — murmurou Emília ao vê-lo afastar-se — mas simplifica. Estamos na era da simplificação.
Depois chamou outra. Veio Wagão.
— Que letra é essa que você usa no frontispício? — perguntou.
— É o W, ou Dabliú, uma letra do Alfabeto inglês que vale por dois vv entrelaçados. Letra muito importante em Anglópolis, mas pouco usada aqui.
— Pois não há mais Dabliú em português, sabe? Foi expulso do nosso Alfabeto. Troque-o por um V e raspe-se!. . .
E lá se foi Wagão, transformado em Vagão, rolando muito mais leve sobre os seus trilhos.
Emília chamou outra. Veio Pery.
— Que Y é esse que você usa em vez do I comum? — perguntou-lhe.
— Todas as palavras de origem tupi, como eu, sempre foram escritas assim, com Y.
— Mas os índios tinham linguagem escrita?
— Não. Só a tinham falada.
— Nesse caso não há razão nenhuma para vocês andarem a fingir-se de gregas usando esse Y. Tire isso e bote um I simples. Avise a todas as mais para que façam o mesmo. Rua!. . .
Emília chamou outra. Veio a palavra Phosphoro, e com ela a palavra Phthisica.
— Como se lê o seu nome? — perguntou Emília a Phosphoro.
— Lê-se Fósforo. O meu PH soa como F.
— Então não seja idiota. Use F que até acenderá melhor, e não complicará a vida das crianças. Avise os seus colegas que o PH morreu para sempre. Roda!...
— E a senhora? — disse depois, dirigindo-se a Phthisica. — Sabe que está tuberculosa de tanto carregar letras inúteis? Liberte-se dos parasitos do corpo que garanto a sua cura. Suma-se!. . .
Emília chamou outra. Veio a palavra Inglez.
— Meu caro — disse ela —, acho que você está muito bem assim, com esse Z atrás. Mas o governo fez um decreto expulsando os zz de inúmeras palavras, de modo que a sua forma daqui por diante vai ser Inglês. Eu lamento muito, mas lei é lei. . .
Inglez, transformado em Inglês, lá se foi, teso como um cabo de vassoura, sem sequer murmurar um Yes.
Emília chamou outra. Veio Egreja.
— Saiba que foi resolvido que de agora em diante todas as palavras que uns escreviam com E e outros com I serão escritas unicamente com I. Escrevê-las com E fica sendo erro.
— E por que decidiram conservar o I em vez de mim? — protestou o E de Egreja.
— Não sei, nem quero saber — respondeu a boneca. — Resolveram assim e acabou-se. Tiraram a sorte, com certeza — ou então o I soube apadrinhar-se melhor. Vá embora!. . .
Emília chamou outra. Veio Prompto.
— Não há mais P mudo dentro das palavras. Fora com esse e suma-se!. . .
E Prompto lá se foi, muito sem jeito, transformado em Pronto.
Emília chamou outra. Veio a palavra Cançar.
— Uns escrevem você com S e outros com Ç. Ora, isso constitui uma trapalhada, e portanto foi decidido que todas as palavras nessas condições passem a ser escritas só com S. Roda!. . .
Emília chamou outra. Veio a palavra Maçan.
— Tire o AN — disse a boneca. — Ponha à e vá avisar a todas da mesma família. E diga às terminadas em AM que a moda agora é Ão.
Emília chamou outra. Veio a palavra Pao.
— Avise às suas companheiras de que os Ditongos Ai, Au e oi, só se escreverão dora em diante assim, e não AE, AO e OE. Foi resolvido e acabou-se, entende? Palavras como Pao, Ceo, Chapeo, etc, passam a escrever-se Pau, Céu, Chapéu. E nada de rezinga. Manda quem pode. Suma-se.
— E eu como fico? — murmurou a palavra Rio, aproximando-se.
— Você fica assim mesmo, boba! O seu final 10 nunca foi Ditongo, não sabe disso? Roda! Venha outra.
Apresentou-se a palavra Geito.
— Uns escrevem você com G e outros com J — disse a boneca. — Fique sabendo que a moda agora é com J, e quem a escrever com G vai para o xadrez. Pode ir.
— E eu? — disse a palavra Jibóia, silvando como fazem as cobras.
— Você fica com J porque é de origem americana. Se fosse africana também ficaria com J, como aquela que lá vai — e apontou para a palavra Quijila, que andava passeando muito lampeira.
— Venha outra. Aproximou-se a palavra Amal-o.
— O governo — disse Emília — resolveu que doravante você e suas companheiras devem ser escritas assim — Amá-lo. Vá avisar às outras.
— Mas isso é um absurdo! — protestou Amal-o. — Eu. . .
Emília arrumou-lhe com o decreto do governo na cabeça, gritando:
— Vá avisar as outras e não me aborreça. Chispa! Amal-o, transformado em Amá-lo, lá se foi com um galo na testa, fungando.
Emília chamou a palavra Subscrever, que estivera assistindo à cena.
— Como é que a senhora divide as suas Sílabas? — perguntou-lhe.
— Divido-as pelo sistema etimológico, assim: sub-scre-ver.
— Pois vai mudar isso. De hoje em diante dividirá deste modo: Subs-cre-ver. As razoes etimológicas acabaram-se. Estamos em tempo de fonéticas. A divisão das Sílabas será de acordo com a fonética, ou com os sons apenas. Vá avisar a todas. Já!. . .
Subscrever saiu correndo.
— E pronto! — exclamou Emília dando um pontapé no montinho de KK e YY e CH e mais letras mudas e dobradas que ficaram no chão. — Prontérrimo! Quero agora ver a cara da tal Ortografia Etimológica. . .
E viu. Logo depois a velha deixou a casinha de raízes e veio passar em revista as palavras do acampamento. Assim que avistou o Sábado com um B só, o Cetro sem o S e o P etimológicos, e Máquina sem CH, teve um faniquito. Depois berrou, arrancou os cabelos e apelou para os Carrancas que havia deixado na casinha tomando pitadas de rapé.
— Acudam! Corram todos aqui!. . .
Os Carrancas acudiram, espirrando atchim! e a assoarem- se em grandes lenços vermelhos.
— Venham ajudar-me a "endireitar" as palavras que a pestinha da boneca estragou.
A primeira vítima foi Sábado, que entre berros teve de abrir a barriga para receber o B arrancado pela Emília. O coitadinho já se habituara a viver sem a letra inútil, de modo que resistiu e pôs a boca no mundo.
Emília, que estava observando a cena, teve dó dele. Chamou Quindim e disse-lhe:
—Vamos, Quindim! Avance e espalhe aqueles peludos complicadores da língua. Chifre neles!. . .
O rinoceronte não esperou segunda ordem. Avançou de chifre baixo, a roncar que nem locomotiva.
Os Carrancas sumiram-se como baratas tontas, e a velha Ortografia Etimológica, juntando as saias, trepou, que nem macaca, por uma árvore acima.
Emília ria-se, ria-se.
Depois gritou-lhe:
— Você, sua diaba, viveu muito tempo a complicar a vida das crianças sem que nada lhe acontecesse. Mas agora tudo mudou. Agora estou eu aqui — e o Quindim ao meu lado!
Quero ver quem pode com esse "binômio gramatical". . .
Depois da tremenda revolução ortográfica da Emília, o Brasil ficou envergonhado de estar mais atrasado que uma bonequinha e resolveu aceitar as suas idéias. E o governo e as academias de letras realizaram a reforma ortográfica. Não saiu coisa muito boa, mas serviu. Infelizmente cometeram um grande deslize: resolveram adotar uma porção de acentos absolutamente injustificáveis. Acento em tudo! Palavras que sempre existiram sem acentos e jamais precisaram deles, passaram a enfeitar-se com esses risquinhos. O coitado do "ha" do verbo haver, passou a escrever-se com acento agudo — "há", sem que nada no mundo justificasse semelhante burrice. E introduziram acentos novos, como o tal acento grave (`), que, por mais que a gente faça, não distingue do acento agudo (´). O "a" com crase passou a "à", embora conservasse exatamente o mesmo som! E apareceu até um tal trema (••), que é implicantíssimo. A pobre palavra "freqüência", que toda a vida foi escrita sem acento nenhum, passou a escrever-se assim: "freqüência"!. . . Emília danou.
— Não quero! Não admito isso. É besteira da grossa. Eu fiz a reforma ortográfica para simplificar as coisas, e eles com tais acentos estão complicando tudo. Não quero, não quero e não quero.
Quindim interveio.
— Você tem razão, Emília. A tendência natural duma língua é para a simplificação, por causa da grande lei do menor esforço. Se a gente pode fazer-se perfeitamente entendida dizendo, por exemplo, "tísica", por que dizer "phthisica" como nos tempos da ortografia etimológica? A forma "tísica" entrou na língua por efeito da lei do menor esforço. Mas a tal acentuação inútil vem contrariar essa lei. Em vez de simplificar, complica. Em vez de exigir menor esforço, exige maior esforço. Logo, é um absurdo.
— Mas é obrigatório hoje escrever-se assim, com dez mil acentos — observou Pedrinho.
Quindim não concordou.
— Est modus in rebus — disse ele. — A língua é uma criação popular na qual ninguém manda. Quem a orienta é o uso e só ele. E o uso irá dando cabo de todos esses acentos inúteis. Note que os jornais já os mandaram às favas, e muitos escritores continuam a escrever sem acentos, isto é, só usam os antigos e só nos casos em que a clareza os exige. Temos, por exemplo, "fora" e "fora" . O acento circunflexo serve para distinguir o "fora" advérbio do "fora" verbo. Nada mais aceitável que esse acento no O. O que vai acontecer com a nova acentuação é isso: as pessoas de bom senso não a adotam e ela acaba sendo suprimida. O uso aceita as reformas simplificadoras, mas repele as reformas complicadoras.
Emília ficou radiante com as explicações de Quindim e pôs em votação o caso. Todos votaram contra os acentos, inclusive Dona Benta, a qual declarou peremptoriamente:
— Nunca admiti nem admitirei imbecilidades aqui em casa.
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Continua ... Capítulo XXVII (final): Epílogo
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource
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