sábado, 11 de agosto de 2012

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Cabo Verde – 3. Drama, 4. Biunguismo Cabo-Verdiano)

3.    DRAMA

Uma das formas menos expressivas desta literatura é a área do teatro. O que não deixa de encontrar um correspondente histórico na formação da literatura portuguesa e também brasileira. Isto, de uma maneira geral, aplica-se a todas as ex-colónias portuguesas. Pode dizer-se que, em Cabo Verde, no domínio da arte teatral, há apenas «Terra de sôdade — argumento para bailado folclórico», de Jaime de Figueiredo, publicado na revista Atlântico, em 1946, [98] até hoje à espera de merecer as atenções de uma encenação.

4.    BIUNGUISMO CABO-VERDIANO

É bilingue o povo cabo-verdiano, já anteriormente o dissemos.   Além   da   língua   portuguesa   exprime-se também através do seu dialecto ou da língua crioula que, no plano das relações quotidianas, possui uma total implantação que falece à língua portuguesa.

E se foi longo o tempo necessário para o escritor cabo-verdiano alcançar uma consciência regional enquanto autor de língua portuguesa, cedo porém ele a revelou intuitivamente enquanto autor dialectal, facto que o distingue dos outros povos dos novos países africanos. Vem de tempos recuados e desenvolve-se no século XIX, paralelamente às criações em língua portuguesa, a produção popular em dialecto crioulo, sobretudo veiculada através da morna (mais de dois séculos de existência?) — a grande expressão artística do homem crioulo — das canções populares, das finançons (canções de batuque), do curcutiçans (canções de desafio — ilha do Fogo), de que se podem encontrar alguns exemplos na revista Claridade. Há, assim, um importante substracto dialectal popular que estimularia a produção literária, hoje também enriquecida com a recente exploração da coladeira.

Um dos pioneiros, o cónego António Manuel Teixeira, do Seminário-Liceu da ilha de S. Nicolau, responsável pelo Almanache Luso-Africano, (2 volumes: 1894 e 1899) neste fez publicar algumas tentativas literárias dialectais. Em 1910 José Bernardo Alfama publica Canções crioulas. Saliente-se, no entanto, um Eugênio Tavares (Momos — cantigas crioulas, 1932) [99], um Pedro Cardoso (poeta bilingue), Folcolore cabo-verdeano (1933), de facto dos primeiros a elegerem o crioulo à dignidade de língua literária. Mais perto do nosso tempo, apontam-se Sérgio Frusoni (1901-1975), um caso interessante de aculturação, já que é filho de italianos; Mário Macedo Barbosa, Jorge Pedro, Ovídio Martins (Caminhada, 1962: parte em dialecto crioulo), Luís Romano (Ljçimparim-Negrume, 1973), Gabriel Mariano, Kaoberdiano Dambará (Notí, s/d, [1968?]), Artur Vieira, Sukre D'sal, Tacalhe, Oswaldo Osório, Corsino Fortes, Arménio Vieira, etc.

Instrumento essencialmente afeiçoado à recriação de manifestações de índole lírica, o caso de Beleza, um dos mais populares troveiros do Arquipélago, nestes últimos anos é notório o esforço para a sua utilização cada vez mais ampla. No fundo, a produção literária em crioulo, do ponto de vista ideológico, descreve sensivelmente uma curva evolutiva próxima da língua portuguesa; a uma fase lírica e, por vezes, de conotação social sucede uma fase marcadamente ideológica: protesto e intervenção política. «Ca tem nada na es bida/Más grande que amor» " diz Eugênio Tavares. Ou Pedro Cardoso na apropriação de raiz popular, com intencionalidade social: «Coitado quem dixâ sê terra,/Sêl dixâ nél sê coraçam» 10°. Sérgio Frusoni, uma voz apaixonada do quotidiano ínfimo, adensado por recursos de subtil ironia: «Exe spancadura que bo titã uvi,/ca ê roncadura de pomba, nem vôo de pardal.» (in Claridade, n.° 9, 1960, p. 77).

Com Ovídio Martins o corte ideológico é de vez: «Hora titã tchgá/nhas gente», que Kaoberdiano Dambará persegue em Noii, num deliberado apelo à revolução, e vamos encontrar ainda em Kwame Kondá (Kordá Kaobardi, 1974). Veiculando quase exclusivamente a poesia, cabe a Luís Romano, um dos que de modo apaixonado reclamam a integral cidadania do dialecto, ensaiar com pertinácia a primeira experiência de tomo: L^mparim-Negrume (1973), já citado, que reúne não só poesias como vários contos em crioulo de Santo Antão, acompanhados da tradução livre em português.

Acrescentaríamos ainda que, apesar de tudo quanto dissemos sobre o que aproxima ou afasta Claridade e Certeza, enquanto a primeira logo no seu primeiro número abre a primeira página com uma canção de Beleza, numa evidente preocupação de consagrar o dialecto crioulo, e em números posteriores essa preocupação ganha volume, Certeza desconhece o dialecto crioulo. Travado e combatido pelas entidades coloniais, nem por isso esta raiz vivaz feneceu. Acreditamos estar-lhe reservado, no futuro, papel de relevo na representação de muitos aspectos do homem cabo-verdiano. E mais: estamos, de consciência, convictos de que a longa e radiosa caminhada do dialecto crioulo, com ou sem escolaridade, irá provocar uma correcção, nos domínios da sociolinguística e da psicolinguística que parecem admitir ou predizer o desaparecimento de uma língua quando ela, não sendo ensinada, tem de suportar a concorrência falada de outra ou outras que o são [101].

Se o dialecto crioulo é, como se sabe, a língua-mãe do cabo-verdiano e a língua portuguesa, em muitos casos, a língua aprendida supletivamente, seria de admitir que, ao nível da competência, o escritor cabo-verdiano se sentisse mais seguro na expressão literária dialectal. Porém, isso só acontece, em termos gerais, e com algumas excepções (Eugênio Tavares e Sérgio Frusoni podem ser dois exemplos), no plano da poesia popular. Tal paradoxo (aparente? ou provisório?) provém não só da carência de organização estrutural teórica da língua cabo-verdiana, como também de uma prolongada e fecunda tradição literária escrita sem a qual uma língua não alcança a maleabilidade e a ductilidade que a autêntica criação literária exige [102].

RAÍZES (nota final)

Por fim, uma palavra para a revista Raízes, 1977 *. E porque se trata de um acontecimento na vida cultural do Cabo Verde libertado se transcreve a nota de abertura: «De um encontro de intelectuais cabo-verdianos, irmanados pelo ideal da libertação, da independência e do progresso da sua Pátria, e vivificados pela seiva haurida de raízes comuns aprofundadas no seu chão, nasceu a ideia da publicação que hoje se apresenta, limitada pelo condicionalismo do meio mas aberta pelo espírito generoso dos seus colaboradores, vindos das tendências mais díspares mas unidos pelo ideal comum que da revista é signo: — uma condição cabo-verdiana, africana e de cidadania do Mundo; uma autenticidade nascida da liberdade dessa condição; uma independência assente nas comuns RAÍZES».

A novidade está em que o ideário de Raízes se cumpre na isotopia de uma longa jornada já nossa conhecida: Claridade, Certeza, Suplemento Cultural, «Sèló». Os cabo-verdianos que neste número se inscrevem, com excepção para Tacalhe e Jorge Carlos da Fonseca, foram colaboradores de uma ou de outra daquelas publicações. Neste espaço breve diremos, em jeito de síntese que, tudo quanto enunciámos, de um modo geral se confirma em relação aos autores agora presentes em Raízes (e de novo chamamos a atenção para Arménio Vieira e Mário Fonseca).

Que a Revolução, obviamente, é enunciado de muitos textos. Que Ovídio Martins, atento à mudança da «situação de discurso», transfere a prática poética, que se centrava no contexto violentado e repressivo, para a reconstrução nacional («Devagar a reconstrução nacional avança. Ilha a ilha. Dor a dor. Amor a amor») na opção de uma prática pedagógica (Guillén do após a revolução cubana é o nome que nos ocorre). Que Osvaldo Alcântara nos parece ter agora a seu lado um companheiro de jornada (estética): Jorge Carlos da Fonseca, pelo menos um certo Osvaldo Alcântara e um certo J. Carlos da Fonseca. Que um novo poeta se anuncia: Pedro Duarte, e um novo narrador se vai confirmando: Osvaldo Osório. Que o drama continua à espera de dramaturgos. Que dos vinte e três poemas publicados, apenas um é em crioulo. Que Raízes, sendo um acto de qualidade e inteligência é, também, uma decisão revolucionária.

* Chega-nos às mãos em cima da revisão das provas deste trabalho. Editada na cidade da Praia, ilha de Santiago, dirigida por Arnaldo França, tem como colaboradores: ensaio — Mário de Andrade e Arnaldo França, Jaime de Figueiredo; ficção — António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Oswaldo Alcântara, Ovídio Martins, Corsino Fortes, Mário Fonseca, Tacalhe, Arménio Vieira, Jorge Carlos da Fonseca, Pedro Duarte e Jorge Miranda Alfama. Ilustração de Manuel Figueira e Osvaldo Azevedo. Capa de Pedro Gregório.
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Notas:
98 Jaime de Figueiredo, Terra de sôdade — argumento para bailado folclórico em quatro quadros, in Atlântico, nova série, n.° 3. Lisboa, 1946, pp. 24-42.

99    Eugênio Tavares, Mornas — cantigas crioulas, 1932, p. 27.

100    Pedro Cardoso, Folclore caboverdiano, 1933, p. 71.

101    Os principais trabalhos de autores cabo-verdianos sobre o dialecto  crioulo  são:  Baltasar Lopes:  «Uma experiência românica nos trópicos», I e II in Claridade, n.° 4, 1947, pp. 15-22, e n.° 5, 1947, pp. 1-10; O dialecto crioulo de Cabo Verde, 1957; Maria Dulce de Oliveira Almada; Cabo Verde — Contribuição
para o estudo do dialecto falado no seu Arquipélago, 1961.

102    Após a independência, nos dois actuais jornais cabo-verdianos: Voz di Vovô (Santiago) e Nossa Terra (Fogo), para além de inúmeros versos em dialecto, vêm sendo publicados vários   textos   em   prosa,   deixando-nos   a   impressão   de subscritos, uns e outros, na generalidade, por quem pela primeira vez experimenta a mão. De qualquer modo, o facto surpreende    e    exige    ser    acompanhado    com    atenção. Surpreende, mas relativamente, claro. Deverá ter-se em conta a circunstância de anteriormente à independência, o mensário Repique do Sino (ilha da Brava) ter sido durante muito tempo repositório de textos dialectais, sobretudo em verso.


Continua…

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

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